‘O inimigo interno é, no conceito de pacificação de hoje, o povo todo das favelas. Entrevista com Maria Helena Moreira Alves
Rio de Janeiro, 02/07/2013 – Movimentos sociais protestam, em frente à favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, e na Avenida Brasil, contra ação da tropa do Bope na comunidade em junho, que resultou na morte de 10 pessoas. Foto de Tomaz Silva/ABr.
O Brasil inteiro se acostumou a assistir, por anos a fio, notícias da violência que caracterizava a vida de uma de suas cidades: em qualquer canto desse país, todo mundo sabia que, no Rio de Janeiro, traficantes de drogas instalados nas favelas imprimiam um clima de guerra à população. Em 2009, o Brasil inteiro recebeu, com otimismo, o anúncio de uma política que expulsaria o tráfico, ‘pacificando’ as favelas cariocas. Cinco anos depois, esse mesmo Brasil inteiro assiste, na tela da mesma TV, a cenas em que moradores dessas comunidades interditam ruas, queimam pneus em protesto e atacam a sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), chorando seus mortos – só que, agora, pela polícia.
Depois de passar seis meses visitando, conhecendo e entrevistando pessoas de diversas favelas cariocas, Maria Helena Moreira Alves, professora aposentada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), acaba de lançar o livro ‘Vivendo no fogo cruzado’, que ajuda a entender esse processo. Nesta entrevista, ela explica que o projeto de pacificação que chegou ao Brasil tem origens num programa norte-americano que foi aplicado durante a Guerra do Vietnã e que tem semelhança com a experiência de outros países, como a Colômbia. Ela localiza na ditadura o início da construção de um inimigo interno, que hoje se identifica com as populações de favela. E alerta: as pessoas reagem quando começam a perder seus filhos.
A política de ‘pacificação’ no Brasil vem desde Duque de Caxias, passa por Canudos e hoje é encontrada nas favelas. Como se deu isso historicamente e como você avalia o que temos hoje?
É claro que já temos todo um precedente que apoia isso, mas o que nós temos hoje, o programa da UPP e o termo pacificação, está ligado diretamente ao programa dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, que, aqui, está ligado à doutrina de segurança interna, que foi aplicada durante toda a ditadura militar. Isso foi criado durante a ditadura, não foi com Duque de Caxias nem com a escravidão. Apesar de podermos dizer que o Bope [Batalhão de Operações de Policias Especiais] parece o capitão do mato, na verdade ele é um soldado armado para enfrentar uma guerra interna, e o inimigo interno é, no conceito da pacificação de hoje, o povo todo das favelas.
Costuma-se dizer que a referência da UPP aqui no Brasil veio da Colômbia. Você diz que veio do Vietnã. O que há em comum na experiência de Brasil, Colômbia e Vietnã?
Têm em comum o cerco, a tomada do território, o trabalho primeiro militar, seguido de um trabalho social. No Rio o trabalho social nunca chegou, ficou só no repressivo. Em Bogotá sim, teve mais trabalho social, que também não foi adiante, mas a repressão foi mais intensa. O Vietnã foi o modelo, com um programa que se chamava Pacification Hamlets. Era o cerco das aldeias que eles achavam que estavam sob influência dos vietcongues, em áreas do Vietnã do Sul, que estava em guerra com o Vietnã do Norte. Os Estados Unidos apoiavam o Vietnã do Sul, mas havia várias áreas que estavam sob influência dos vietcongues. E nesses territórios eles fizeram o Pacification Hamlets, que seguia muito o modelo que agora a gente vê da UPP: primeiro uma invasão militar do território, seletivamente eliminando os líderes mais importantes; depois uma segunda onda de repressão que envolvia tortura não seletiva – já não eram os líderes, mas qualquer pessoa comum que eles pegavam, torturavam e jogavam para as outras verem, como parte do terror; e controle de modo que a aldeia ficasse pacificada pelo medo. Mas vinha uma segunda etapa que era para ganhar corações e mentes, com programas de educação, esportes em geral e saúde também, com muita coisa voltada para crianças. A ideia era dividir a comunidade, que algumas pessoas que estivessem envolvidas em programas sociais achassem bom e tentassem ignorar a parte repressiva. E a parte repressiva passava a ser mais escondida. No caso do Vietnã, quando houve o massacre muito famoso em My Lai, o povo se rebelou e os Estados Unidos tiveram que fugir quando perderam a guerra. E o mesmo vai acontecer no Brasil. Chega um momento em que a política de terror gera mais raiva do que medo. É parte da própria sobrevivência: qualquer animal quando está muito acuado se defende atacando. E essa reação vem quando você começa, por exemplo, a perder seus filhos.
Qual é o objetivo da pacificação e quem está sendo pacificado?
A população que está sofrendo esse processo é aquela que não é útil para o sistema econômico. Então, se eliminá-la, não faz falta. O que eles estão eliminando são os jovens pobres, negros, analfabetos que não servem para a mão de obra, aquela mão de obra fácil, que já tem muito. Em termos de direitos humanos, o Brasil é um dos piores países. É sempre importante lembrar que estamos em um país que não está em guerra declarada, embora o ex-governador do Rio de Janeiro tenha declarado guerra, mas isso foi da cabeça dele. O Brasil está em situação de rebelião popular, mas não é uma guerra civil, ainda. Espero que não venha a ser. Se continuar essa pressão, até pode vir a ser, como é o caso da Colômbia. Muitos casos, como o da Nicarágua, com o levante de Manágua, que eu vivi quando morei lá, foram causados também pelo terror, que controla até certo ponto. Depois, quando você não tem mais esperança, acaba o medo. O levante de Manágua
foi quando aconteceu a operação Herodes, no final do governo contra os sandinistas, na qual eles mandaram rodear certas áreas mais combativas de Manágua, retiraram à noite das casas os maiores de dez anos e metralharam na rua, com argumento de que eles já estavam entrando na Frente Sandinista de Libertação Nacional. É muito parecido com a forma como a polícia brasileira fala que o jovem vai virar traficante: ‘Nasceu, vira criminoso ’. E eles mataram tantas crianças, que houve uma rebelião total, as pessoas se juntaram aos sandinistas e fortaleceram o movimento, que ganhou a revolução. E as pessoas falaram que acabou o medo quando não tinham mais nada a perder. Hoje, o que temos? O Bope entra nas casas, arromba as portas, bate nas pessoas… Ouvi relatos de mulheres que falavam ‘Graças a Deus meu marido não estava em casa, porque quando tem homem eles matam’.
Mas, nos exemplos que você cita, como o da Nicarágua, havia forças de esquerda organizada com a qual a população revoltosa se aliou. Como isso se dá no Brasil?
Nós temos um exemplo histórico único no Brasil de organização de revolta popular, que são os quilombos. Infelizmente, não se trabalha muito com isso, mas somos um dos únicos países que teve uma revolução popular de escravos que chegaram a fundar cidades, foram mais de 8 mil quilombos. Eu acho que ainda temos essa cultura nas favelas pelo trabalho comunitário, o chamado mutirão. Existe muito dos quilombos nesse sentido. Fiquei admirada de ver que, quando começava um tiroteio nas favelas, apareciam pessoas de tudo quanto era lugar e esvaziavam a escola em 20 minutos. Retiravam mil crianças, não necessariamente deles, mas de vizinhos, e elas ficavam protegidas até os pais voltarem. É uma organização comunitária muito profunda de solidariedade. Não é que as pessoas estejam a favor do tráfico ou achem o tráfico melhor do que a polícia, mas diziam o seguinte: o traficante local é da comunidade, nós temos menos medo dele porque se você não for diretamente contra ele, ele não faz nada com você nem com a sua família, já a polícia não, vai contra todo mundo. A diretora de uma das escolas em que eu estive no Complexo do Alemão me contou que, durante um tiroteio muito grande, houve um momento em que o Bope entrou, com Caveirão e tudo, e começou a dar tiros de dentro da escola. Tiraram até telhas para dar tiro. E no dia seguinte veio o chefe do tráfico reclamar com ela, dizendo: ‘como é que você deixa uma coisa dessas? Eu tenho filho nessa escola’.
Agora, sobre rebelião popular, é outra coisa. Acho que você tem razão. Nós não temos condições hoje de organizar nenhuma resistência – eu nem diria rebelião – com caminhos dirigidos, como tínhamos esperança, quando fundamos o PT, de que o partido fizesse esse papel. Seria o caminho da classe trabalhadora guiada pelo PT para um jeito petista de governar, mudando todas as referências, não fazendo alianças, inclusive com uma coisa que também não aconteceu, e que é triste, que era o novo movimento sindical ser autônomo, não ligado a nenhum governo. Durante um tempo isso foi muito forte, mas hoje a CUT tem dirigentes no governo, acabou a autonomia do movimento sindical e, de certa maneira, de outros movimentos também. Então, diminuíram os movimentos sociais como uma corrente que possa organizar o povo e não existe partido que possa organizar o povo em geral, porque todos estão vinculados a uma política de interesses. Isso é muito grave porque a população deixou de acreditar nas instituições. E o que pode ser uma rebelião popular, então? Pode ser uma explosão social, do tipo queima tudo, quebra tudo, sem direção, que pode virar fascista ou pode ser só quebra-quebra e ter um massacre geral de repressão e voltar à situação de repressão interna das comunidades mais pobres. Até ter outra explosão. Isso acontece em vários países. Tem que ter um grande líder carismático e todo um movimento por trás organizado para conseguir isso. E o Brasil não tem mais nem um líder carismático. Eu acho que o Lula ainda é, mas já não tem mais a força da condução de um movimento, como tinha antes. Ele podia ter feito isso em 2002, acho que tinha 80% de aprovação para fazer transformações profundas. Na hora em que não fez, em que começou a fazer alianças para governar dentro do modelo político que existe, tirou essa possibilidade. E hoje em dia acho que o povo está descrente. Então nós podemos ter uma situação de muita confusão, muita briga na rua, mas sem uma condução política.
Você disse que a política de segurança mudou muito pouco, mas muitas pessoas acreditaram nas UPPs. Por quê?
Acho que as pessoas tiveram uma esperança muito grande por chegarem outras coisas com a UPP. E foi-se vendo, com o passar do tempo, que não era isso. Lembro uma frase de uma moradora da Rocinha [favela do Rio de Janeiro] que, quando perguntada se era a favor da UPP, respondeu: ‘Estou em silêncio’. E foi indagada que, se estava em silêncio é porque estava gostando, e ela respondeu que o silêncio significava o medo. Se você mora lá, diante da violência, não é possível dizer que é contra, com sua família na mira de uma metralhadora em cada esquina. E essa população está em um fogo cruzado porque os donos do morro ainda estão lá, mas os mandantes estão fora da favela. No livro ‘Vivendo no fogo cruzado’, a entrevista com Beltrame [secretário de segurança do Rio de Janeiro] mostra que não tem traficante nas favelas, que eles moram fora das favelas, o que existe é o pequeno tráfico, vendido em envelopinho de R$ 300. O governo não está com véu nos olhos e sabe quem comanda o tráfico e quem comanda o tráfico é internacional.
Ainda é cedo para avaliar a estratégia adotada no Brasil, como defende o secretário de segurança pública do Rio de Janeiro José Mariano Beltrame? O que já dá para avaliar hoje?
A UPP está muito clara. É possível avaliar há muito tempo. O Beltrame, por ser um intelectual e ter uma certa vivência que vai além da UPP, ele não gosta muito do programa. Inclusive na entrevista do livro [‘Vivendo no fogo cruzado’] ele diz que não gosta do nome ‘pacificação’ por chamar muita atenção ao que realmente é. O que não está claro é por que o governo federal está apoiando. E por que a Ministra de Direitos Humanos chora quando vê uma notícia como a da mulher arrastada [Cláudia Silva Ferreira], a do Amarildo, e depois não faz nada de concreto. Não tem uma intervenção do Governo Federal. E tinha na época do Lula, isso eu tenho que dar crédito a ele, mas ele acabou se aliando ao Cabral, e a aliança com o Cabral foi mais importante do que os direitos humanos. Aliás, ele nos falou isso em uma das entrevistas: que faria aliança até com o diabo se fosse necessário para o Brasil aprovar as leis sociais para acabar com a pobreza. ‘E para passar as leis no Congresso, eu preciso do PMDB. E o PMDB no Rio é o Cabral. Eu tenho que me aliar ao Cabral’, ele disse. Era uma crítica dele mesmo ao sistema de governo. Ainda estávamos no Pronasci [Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania], mas ele já sabia que o programa iria morrer. O que precisamos é uma reforma geral, temos que rever a Constituição. Antes eu falava de desmilitarizar, mas agora eu defendo que a PM deve ser abolida. Precisamos de uma polícia civil para lidar com o povo, melhorá-la, treiná-la, trabalhar com inteligência, não pode ser os que estão aí hoje, mas acho muito difícil. A PM está nas mãos dos governadores.
Por que o Pronasci não vingou?
Eu acho que existem interesses por trás que estão vinculados ao crime organizado e que não querem que o programa dê certo. Realmente não interessa a muita gente poderosa – eu não diria que está no poder, diria poderosa – do crime organizado internacional, que está vinculado com o crime local, que isso dê certo. É mais fácil comprar a polícia, formar miliciano, do que ter uma polícia eficaz que trabalha com a comunidade e vai prevenir crime. Isso é bem claro. Os governadores não querem porque têm o Exército nas suas mãos e muitas vezes defendem interesses não só deles, mas interesses econômicos próprios. Vi uma notícia de que a senadora Kátia Abreu está apresentando um projeto no Congresso que elimina o cadastro das empresas que têm trabalho escravo. Isso é muito grave e mostra como ainda existem interesses até para manter a escravidão.
A investigação coordenada por Philipp Alston, relator especial da ONU sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, aponta diversas iniciativas como o fim da polícia militar e do caveirão, a instalação da ouvidoria da polícia de forma séria e a eliminação dos ‘autos de resistência’ ou ‘resistência seguida de morte’ para o avanço da segurança pública no país. Isso pode ajudar?
As sugestões do Philipp são importantes porque vêm da ONU, mas Luiz Eduardo Soares já falava isso e continua falando. Hoje a OAB já assumiu esse discurso. É importante que seja a ONU porque há possibilidade de sanções sobre o Governo Federal. E não vai ter esse papo de que não posso intervir porque a Constituição não deixa. Isso é difícil porque faz parte da geopolítica internacional não falar da violência do Brasil, não falar mal da UPP, não fazer sanção. Se o que está acontecendo no Brasil fosse na Ucrânia seria um escândalo internacional. Há todo um esquema internacional, porque querem que o Brasil continue fazendo o seu papel de subimpério. A doutrina de segurança nacional com desenvolvimento existe ainda e o papel geopolítico do Brasil como a Escola Superior de Guerra concedeu ainda está vigente dentro do contexto geopolítico internacional. Não é à toa que o Obama deu palmadinha nas costas do Lula e falou que ele é o cara. O Lula não entendeu o que isso quis dizer. Ele é o cara ideal para conduzir o país em uma geopolítica que interessa aos Estados Unidos, que nunca quiseram reformas políticas profundas no Brasil. Pode ter o Mujica no Uruguai que eles aguentam, dão prêmio, mas o Brasil é outro papo. O Brasil tem fronteira em quase toda a América Latina, domina o Atlântico inteiro, de lado a lado, com isso domina a África, e isso tudo está dentro da concepção da doutrina de segurança nacional e internacional da Escola Superior de Guerra.
Por Viviane Tavares (Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz), em maio de 2014.
EcoDebate, 27/05/2014
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