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Jeitinho, artigo de Montserrat Martins

 

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Diversidade. Imagem: Geledés – Instituto da Mulher Negra

 

[EcoDebate] A divisão entre América espanhola e portuguesa não foi definida por tratados e sim pelos territórios dominados pelos tupis, que foram seguidos pelos portugueses, e pelos guaranis, onde se infiltraram os espanhóis. E o “jeitinho” brasileiro foi inventado pela família Sá, mediando as relações da Coroa portuguesa formalmente representada em Salvador, enquanto São Paulo na sua origem bandeirante tinha pecha de rebelde. Observações interessantes de “1565: enquanto o Brasil nascia”, do jornalista Pedro Doria, livro imperdível para os mais curiosos por nossas raízes.

O “jeitinho” ultimamente tão criticado, como se fosse uma falha em nosso caráter, tem sua origem numa qualidade que ajudou a moldar o país, a flexibilidade entre dois extremos. O norte da colônia há cinco séculos, de Salvador para cima, nascia à imagem de Lisboa e concentrava a riqueza da época. O sul, com seus bandeirantes paulistas, era rebelde e visto com desconfiança pela metrópole. O papel da família Sá foi de intermediar essa dicotomia, pois os Sá eram capazes tanto de frequentar as festas da Corte, quanto de se embrenhar no mato junto com os bandeirantes. Sua versatilidade, sua capacidade de ser flexível e vivenciar situações opostas, moldou o jeito de ser do Rio de Janeiro que surgia em 1565 e vem influenciando, séculos afora, nossa própria identidade nacional.

Ser brasileiro não é ser tão dedicado ao trabalho quanto japoneses ou alemães costumam ser, por exemplo, mas em contrapartida também não é ser tão rígido em seus padrões comportamentais quanto é habitual nestes países, cujas culturas tem alguns traços que poderiam ser descritos como obsessivos. Não é verdade, por outro lado, que somos um povo indolente como a ótica europeia nos quer fazer crer: no geral o trabalhador brasileiro tem uma carga horária extensa, ganhando pouco, e o país vem evoluindo economicamente há décadas, mais outros países sul-americanos.

Dos períodos de ufanismo propagandeado oficialmente (como a ditadura nos anos 70, do “Brasil: ame-o ou deixe-o”), ao momento atual de auto-desvalia democrática, o caráter nacional tem sido interpretado das mais diversas maneiras. Já nos vimos como um povo tolerante que seria relativamente menos racista que europeus ou norte-americanos, já nos vimos como um povo alegre e talentoso com nossos esportistas e artistas, já nos vimos como flexíveis e espertos graças ao nosso “jeitinho”. Hoje nos vemos como corruptos e maus eleitores, colocando no poder políticos da pior espécie, nos sentimos sem esperanças de evolução por ser essa nossa marca cultural, nossa identidade: o “jeitinho brasileiro”. Há uma apropriação histórica do que chamamos de “jeitinho”, que o interpreta hoje como corrupção, malandragem, falta de seriedade; porém o que esse traço carrega como flexibilidade, adaptabilidade, guardados limites éticos, pode ser considerado virtude.

É bom lembrar das qualidades – e não só dos possíveis defeitos – que vem juntos com essa maleabilidade, com essa capacidade de se adaptar ao contexto. Enquanto a América espanhola se esfacelou em múltiplos países rivais, sobrevivemos unidos num mesmo país mesmo com povos tão diversos num mesmo território. Os portugueses se miscigenaram sempre, mais flexíveis que os povos “puros”, e isso tem a ver com o nosso “jeitinho”, mesmo com todas suas distorções, um dos mais ricos em diversidade do mundo.

Montserrat Martins, Colunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra.

EcoDebate, 28/04/2014


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2 thoughts on “Jeitinho, artigo de Montserrat Martins

  • Bom início de um texto sobre o “jeitinho”. Em resumo vejo isso, o jeitinho, como algo maior, integrante de um pacote cultural tipicamente brasileiro, que pode ser utilizado para o bem e o mal fazer. Agora que mais do que nunca o nosso “complexo de vira-lata” está tão exacerbado, já não podemos ter Copa, Olimpíadas, etc, já somos o “bananão”, o tal do jeitinho é mau visto, algo indigno para qualquer povo, mas eu o enxergo como nosso maior diferencial nacional, nossa tábua de salvação. Pois se não existisse o nosso jogo de cintura certamente vivenciaríamos a barbárie, rodeados de revoltas e gente de cara amarrada e alma azeda, algo bem típico de outros povos.

  • Bruno Versiani

    Interessante que as colônias anglo-saxônicas onde não há o “jeitinho” têm índices sociais e de IDH muitos superiores ao do Brasil. Acredito que, no cômputo geral, o tal do “jeitinho” é pernicioso ao avanço da civilização.

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