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Artigo

As desigualdades de gênero na América Latina e Caribe, artigo de José Eustáquio Diniz Alves

 

esperança de vida na América Latina e Caribe

 

[EcoDebate] A relação entre população e desenvolvimento não é neutra em termos de gênero. Em geral, o desenvolvimento tende a reduzir as desigualdades de gênero e o empoderamento das mulheres tende a beneficiar o desenvolvimento. Os dados da América Latina e Caribe (ALC) confirmam a ocorrência de grandes transformações sociais e de gênero na região. Houve uma transição epidemiológica, com ganhos na esperança de vida ao nascer para ambos os sexos, mas com as mulheres ampliando a vantagem em relação aos homens. Houve uma grande migração rural-urbana e as mulheres são maioria crescente na população das cidades. Houve também redução das taxas de fecundidade.

Vivendo mais e tendo menos filhos, as mulheres avançaram na educação e no mercado de trabalho. No primeiro caso, houve uma reversão do hiato de gênero e as mulheres já superam os homens em todos os níveis educacionais. No segundo caso, houve uma redução das desigualdades, mas as mulheres ainda sofrem com a segregação ocupacional e a discriminação salarial. Os índices de pobreza e indigência têm diminuído, mas as desigualdades de gênero permanecem, ainda que em menores níveis. As conquistas têm se refletido em maiores níveis de participação feminina nos espaços de poder e a América Latina tem se tornado uma das regiões com maior presença feminina nos parlamentos. Uma agenda para atualização da revisão da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), o chamado processo Cairo + 20, deveria levar em considerar não somente as antigas desigualdades de gênero, mas também as desigualdades reversas.

A ALC é considerada a região mais desigual do mundo. Existem desigualdades regionais, de renda, de raça, de gênero, geração, etc. A novidade recente é que estas desigualdades estão em processo de redução. No caso das relações de gênero houve não somente redução das desigualdades, como reversão de algumas desigualdades, como na saúde e na educação, em que as mulheres alcançaram os homens e agora ampliam a diferença em termos de anos médios de estudo e em taxas de matricula em todos os níveis educacionais.

No mercado de trabalho existe uma parcela de mulheres que alcançaram altas posições ocupacionais e salariais, enquanto ainda existem muitas mulheres ocupadas em atividades de baixa produtividade e em ocupações não remuneradas. As desvantagens femininas decorrem da divisão sexual do trabalho, da segregação ocupacional e da discriminação salarial. Na política e nos espaços de poder os avanços foram substantivos, embora a participação esteja longe da paridade. Portanto, as desigualdades de gênero continuam existindo, mas não são unidirecionais, pois tem aumentado as “desigualdades reversas” na América Latina e Caribe.

O desenvolvimento econômico e social é um processo de transformação estrutural da economia que, quando bem-sucedido, gera um aumento do valor produzido por habitante – através da elevação da produtividade do trabalho – e possibilita o avanço na educação, na saúde, nas condições de moradia e no bem-estar da população. Em geral, o desenvolvimento acontece de forma concomitante à transição urbana e à transição demográfica (redução das taxas de mortalidade e natalidade). A mudança da estrutura produtiva é acompanhada pela mudança na estrutura dos arranjos familiares e nas relações de gênero. Particularmente importante são as mudanças da situação da mulher na economia e na sociedade. As mulheres são cerca da metade da população mundial e, como já dizia Charles Fourier, há quase 200 anos, não existe emancipação social sem a emancipação da mulher.

Participar do desenvolvimento é não apenas um direito das mulheres, mas também uma condição para o próprio desenvolvimento. A contribuição feminina para a economia é cada vez mais reconhecida, mesmo nos meios empresariais, como afirmou Klaus Schwab, fundador e Chefe-executivo do World Economic Fórum, de Davos, na Suíça, que fez a seguinte afirmação no prefácio do relatório do Global Gender Gap Index (GGGI), de 2009:

“É mais importante agora do que nunca que os países e as empresas prestem a atenção a um dos fundamentais pilares do crescimento econômico de que dispõem: as habilidades e os talentos dos recursos humanos do sexo feminino” (p. V).

A CIPD do Cairo deu bastante ênfase à necessidade de políticas para a promoção do empoderamento e da autonomia da mulher como forma de atingir a igualdade e a equidade entre os sexos, visando a construção de um desenvolvimento sustentável. O Plano de Ação da CIPD considerou que as mulheres estavam em desvantagem em todos os tipos de atividade na sociedade e que seria necessário assegurar o aumento da contribuição feminina para o desenvolvimento com seu pleno envolvimento nas seguintes áreas: Educação; Saúde; Mercado de trabalho; Participação social e política; Legislação que apoie a equidade e combata a discriminação de gênero.

Além disto, o Plano reforça a necessidade de se garantir a melhoria do status da mulher para aumentar sua capacidade de tomar decisões na área da sexualidade e da reprodução. Além de um direito, a maior autonomia da mulher nas questões reprodutivas facilitaria o processo de regulação da fecundidade e, consequentemente, contribuiria para a queda das taxas de natalidade. A transição demográfica foi considerada uma condição necessária para a decolagem do desenvolvimento sustentado e sustentável. Em relação às meninas, o Plano de Ação estabelece 3 objetivos:

1) Eliminar toda forma de discriminação contra a menina e as causas fundamentais da preferência por filho, o que resulta em práticas prejudiciais e antiéticas com referência ao infanticídio feminino e à seleção pré-natal do sexo;

2) Aumentar a conscientização pública do valor da menina e, ao mesmo tempo, fortalecer a auto-imagem, a auto-estima e o status da menina;

3) Melhorar o bem-estar da menina, especialmente com relação à saúde, alimentação e educação.

Em relação aos homens, o Plano de Ação considera que o sexo masculino estava em situação de vantagem na sociedade e que participava pouco da vida reprodutiva e da família, deixando os maiores encargos das atividades reprodutivas e domésticas para as mulheres. Assim estabelece: “O objetivo é promover a igualdade dos sexos em todas as esferas da vida, inclusive a vida familiar e comunitária, e incentivar e capacitar o homem a assumir a responsabilidade de seu comportamento sexual e reprodutivo e de seus papéis na sociedade e na família” (p.53).

Portanto, não há dúvidas de que a CIPD do Cairo foi muito firme na defesa do empoderamento e da autonomia das mulheres. O diagnóstico adotado foi que o sexo feminino estava em desvantagem em todos os aspectos da vida, em relação aos homens, e caberia ao sexo masculino uma maior participação nas atividades reprodutivas e dos afazeres domésticos no âmbito da família. Porém, os dados apresentados a seguir mostram que as mulheres já superavam os homens em várias áreas (especialmente educação e saúde) e que estas “desigualdades reversas” estão se acentuando. Uma atualização do Plano de Ação, portanto, precisa abordar as desigualdades de gênero em ambas as direções, pois nem as mulheres estão piores em tudo e nem os homens estão melhores em todas as áreas. Uma sociedade com equidade de gênero não pode se sustentar em desigualdades reversas, ou seja, desigualdades a favor das mulheres não compensam necessariamente desigualdades a favor dos homens.

Outro aspecto que merece mais atenção são as desigualdades entre as próprias mulheres. Por exemplo, mesmo que os rendimentos médios das mulheres sejam menores do que os dos homens, existe uma parcela das mulheres que ganham mais do que os seus companheiros. Existem também diferenças geracionais, sendo que algumas parcelas de mulheres jovens (25-34 anos), com curso superior, sem filhos, possuem rendimentos superiores ou semelhantes aos dos homens. Existem ainda diferenças de classe, raça e região entre as próprias mulheres, sendo que aquelas vivendo em famílias monoparentais, com filhos pequenos e no setor informal são, geralmente, as que estão em piores condições sociais. Os tipos de família e de conjugalidade afetam as relações de gênero.

Para elaborar políticas compatíveis com uma realidade, cada vez mais complexa, precisamos entender os dados e averiguar onde existem equidades e onde existem desigualdades de gênero, quer seja a favor das mulheres ou a favor dos homens. Considerando que gênero é um conceito relacional, seria preciso olhar não somente para o processo de empoderamento das mulheres, mas também para o processo de desempoderamento dos homens, já que as antigas desigualdades convivem hoje com desigualdades reversas. Na prática, a equidade de gênero tem sido a exceção. Mulheres e homens precisam ser objetos de políticas visando a uma situação de mais equilíbrio social, evitando elevados diferenciais, por sexo, nos diversos indicadores sociais.

Toda esta discussão é essencial para fundamentar o processo de revisão do “Cairo + 20” e o documento final que será apresentado na Assembleia Geral da ONU em setembro de 2014.

Referência:
ALVES, JED, CAVENAGHI, S. MARTINE, G. Population and changes in Gender Inequalities in Latin America. Anais da XXVII IUSSP International Population Conference, Busan, Korea, 26-31 August 2013.
http://www.iussp.org/en/event/17/programme/paper/3575

José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br

EcoDebate, 05/03/2014


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