Marajó – mundo de águas, açaizais e escravidão, por Rogério Almeida
[FURO] Faz um tempo o açaí tornou-se uma coqueluche mundial. É consumido em academias e restaurantes de luxo das principais capitais do país. A alta culinária o agenda em diferentes pratos e sobremesas. Para tanto, passou por um processo de ressignificação: antes fonte de proteína de pobres e esfarrapados; para produto de consumo de marombados, e ditos sofisticados.
Os surfistas da Califórnia o descobriram. Há uns 10 anos a empresa japonesa K.K. Eyela Corporation o patenteou, onde os produtores nativos eram obrigados a pagar à empresa pela venda de produtos como bombons e licores. Situação já equacionada.
Uma grande empresa de cosméticos fatura com uma coleção produzida a partir da palmeira amazônica, e contabiliza dividendos como social e ambientalmente responsável, graças à “mágica” publicitária. No pico da safra empresas europeias e estadunidenses buscam o fruto direto nas cidades produtoras.
No cenário nacional e mundial o Pará é o maior produtor do fruto. Em 2012 o estado exportou 6 mil toneladas, o equivalente a R$ 17,3 milhões. O estado responde por algo em torno de 80% a 90% da produção nacional do açaí, seguido por Amazonas e Maranhão, de acordo com o Levantamento Sistemático da Produção Agrícola, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A cidade de Igarapé-Miri é a principal produtora, exportando 360 toneladas/dia. O estado tem perto de 150 agroindústrias.
Quem consome a iguaria e seus subprodutos não imagina que em alguns locais de extração da fruta ou do palmito ainda ocorre situação de super exploração da população ribeirinha, extrativa e quilombola. Algo similar a trabalho escravo. Em alguns lugares o cotidiano é marcado pela coerção pública e privada, ameaça de despejo e morte.
No município de Afuá, situado no arquipélago do Marajó, localizado no delta do rio Amazonas, a situação ainda ocorre.
As terras do arquipélago foram de sesmarias, talvez esse aspecto histórico ajude a explicar que em algumas ilhas na cidade de Afuá, e outras que integram a região, ainda se mantenha a situação de aviamento e a presença de “patrão”, uma espécie de coronel.
Afuá – nasceu sobre palafitas no fim do século XIX. É uma típica cidade ribeirinha, marcada pela várzea e igapós. Cajuuna, Afuá e Marojozinho são os principais rios, e integram o estuário amazônico. Fica próxima ao município de Santana, Amapá, estado com que mantém uma relação mais próxima, em detrimento do Pará.
A cidade portuária que escoa minério de ferro, manganês e celulose, serve como ponto de referência para viajantes de outras cidades paraenses da região do Marajó.
Afuá abriga o Parque Estadual Charapucu, a unidade de conservação mede 65 mil hectares. 36.598 é a população estimada, conforme o censo do IBGE de 2010.
Marajó compreende o território mais empobrecido do Pará. A região é dona do pior índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em 2013 no Brasil. Melgaço é a cidade top. No ranking dos piores municípios do IDH do Brasil, a cidade de Afuá encontra-se entre os 30, ocupando o lugar 22.
No Furo dos Pardos, dona Maria José Carvalho foi flagrada escravizando 19 pessoas no processo de extração do palmito. O nome de Carvalho consta da Lista de Trabalho Escravo produzida pelo Ministério do Trabalho. Segundo Datasus, 3.534 famílias são beneficiadas com o Programa Bolsa Família.
Em 2012 a cidade produziu 5.280 toneladas de açaí e 116 toneladas de palmito, informa o Censo de Extração Vegetal do IBGE.
Marajó – entre ilhas, “patrões” e “fregueses” – Em diferentes ciclos e produtos do extrativismo na Amazônia (látex, castanha, açaí, etc) dos séculos passados a prática do aviamento se fez presente. Assim como da super exploração da mão de obra. O controle da terra de forma legal ou não é um componente que cristaliza a pessoa ou o tronco familiar sobre o domínio do território e os recursos existentes. Constitui-se como uma estratégia de reprodução econômica, social e política.
Assim a família Castro desponta no cenário do município de Cachoeira do Arari, e mantém uma situação de litígio com remanescentes quilombolas no rio Gurupá.
O derradeiro capítulo foi o assassinato em agosto deste ano na cidade de Belém, às vésperas de um encontro estadual, da liderança Teodoro Lalor. O crime foi considerado pelo setor de segurança pública como passional. Liberato é o patriarca da família Castro. A filha, Consuelo, é prefeita na cidade vizinha, Ponta de Pedras.
Já na ilha Carás – localizada no município de Afuá, as famílias que tensionam com os ribeirinhos pelo controle de açaizais são o casal Arlete Abdon Teixeira Moreira e o carioca Jorge Teixeira Moreira, – este coronel da reserva da PM no estado do Amapá -, a família Carvalho, a família Góes e a família Bastos.
Documentos de defensores dos direitos humanos do Amapá, que atendem algumas cidades do Pará explicam que os que escravizam, aqui, são chamados de “patrões”: são os que, ilegal e violentamente, grilaram grandes quantidades de terras, ilhas inteiras, sem que a União tome uma providência. É o caso da ilha de Carás.
Já os escravos são chamados “fregueses”: são famílias que os patrões põem nas “colocações” para tomar conta da terra. Eles extraem madeira, açaí, palmito e látex de borracha, sendo obrigados a vender aos patrões, pelo preço que o patrão quer, e existem ocasiões em que não paga nada.
Nos barracões do “patrão” o “freguês” é obrigado a trabalhar de meia. Conceder parte do que produz para o “dono” da terra, ou vender a produção a preço inferior ao de mercado. Os barracões e as terras são cuidados por capangas. Cobra D´água, apelido do Adilson, irmão de Arlete Moreira, tem notoriedade entre os moradores de rios e furos na ilha de Carás. A ele cabe a coerção privada, acusam moradores, que sofreram até ameaça de tomada de documentos.
Num lugar sem energia elétrica, sem posto de saúde, sem saneamento básico, com escolas precárias o “patrão” assume o papel de senhor da vida e da morte dos moradores desprovidos de “letras”, com famílias extensas, que tendem a pressionar ainda mais sobre os recursos naturais.
Litigio – A terra ocupada pela família Moreira é tida como grilada pelos setores alinhados aos ribeirinhos. A família tem acusado moradores de invasão e ameaça de morte. Eles foram notificados pela Secretaria de Justiça do Estado do Pará. Alguns chegaram a ser presos. Outros “avisados” que não podem produzir roçados, coletar açaí ou palmito fora do perímetro determinado pelo “patrão”.
Arlete e o coronel Moreira alegam que são donos de parte da ilha, que a matriarca Adélia tem negócios no local há anos, e que há uma década um cartório registrou a posse da terra em nome da família. Especialistas em questões fundiária na Amazônia informam que a prática de busca reconhecimento de terras em cartório é uma ferramenta típica do contexto rural amazônico.
Na ilha é comum um casal ter uma média de sete a 10 filhos. As famílias que vão sendo formadas são impedidas de construção de novas casas no local. E onde o estado não chega soa esdrúxulo a presença de um oficial de justiça e PM´s para notificar um ribeirinho, como já registrado no Furo dos Porcos e outros locais da ilha.
Ilha – Terra da União – Desde o Decreto-Lei nº 9760, de 1946 as ilhas consagradas como territórios sob a responsabilidade da União. Na Constituição de 1988, em seu artigo 20, inciso IV ratifica o decreto da década de 1940.
* Rogério Almeida é professor da Universidade da Amazônia (UNAMA), Belém-PA e publica o blogue FURO
** Artigo enviado pelo Autor ao EcoDebate, 20/12/2013
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Excelente comentario. Parabéns