Uma Ode à Intolerância: Amalou, Abrasel/Mg e suas orientações frente a População em situação de rua, por Pedro Paulo Gonçalves e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
Uma Ode à Intolerância: Amalou, Abrasel/Mg e suas orientações frente a População em situação de rua
Por Pedro Paulo Gonçalves1 e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro2
Moradores de rua, no Parque Dom Pedro 2º, em São Paulo. Foto de Valter Campanato/ABr.
[EcoDebate] No dia 02 de outubro de 2013, o jornal O Estado de Minas veiculou matéria intitulada “Bairro de Lourdes tenta evitar presença de mendigos”, que versa sobre o posicionamento e ações empreendidas pela Associação dos Moradores do Bairro de Lourdes (Amalou) e pela Associação de Bares e Restaurantes de Minas (Abrasel, MG) em relação à presença da população em situação de rua no bairro de Lourdes, em Belo Horizonte.
As ações empreendidas com o aval das associações ilustram e reforçam o modo extremamente agressivo e intolerante por meio do qual a população em situação de rua é vista e tratada por parte da sociedade brasileira. O título da matéria já começa com um tom injurioso e difamatório, o que contribui para legitimar as ações empreendidas por aquelas associações e, ademais, reforçar o preconceito embutido na palavra mendigo, se considerarmos sua origem etimológica: pessoa que possui algum defeito e que, por essa razão, é considerada inapta ao trabalho. A palavra é derivada do latim mendum e traz consigo a ideia de “defeito”, “vício”, que, inerentes à pessoa, precisam ser corrigidos, eliminados.
Ao contrário, tratar essas pessoas enquanto “pessoas em situação de rua”, desloca o entendimento incitando-nos a lançar luz sobre os processos que os levaram a viver nas ruas: não se trata de “mendigos”, “vândalos”, “viciados”, enfim, desestabilizadores da ordem social. Devem ser compreendidos, portanto, os processos por meio dos quais essas pessoas acabam fazendo das ruas seu espaço de sustento e moradia.
Em outras palavras, muda-se a forma como se entende a situação dessa população, não mais os compreendendo a partir de uma visão simplista que considera que esses se encontram nessa situação “porque querem” ou “porque são vagabundos por natureza” e outras explicações nessa direção. Trata-se, agora, de considerar os fenômenos estruturantes que fazem com que determinadas parcelas da população situem-se às margens da sociedade. Para compreender tais questões, é bom que se tenha como ponto de partida a seguinte consideração do sociólogo francês Robert Castel: “o processo através do qual uma sociedade expulsa alguns de seus membros obriga a que seja interrogado sobre aquilo que, em seu centro, impulsiona a sua dinâmica. É essa relação escondida do centro para a periferia que deve ser desvendada: o coração da problemática da exclusão não está lá onde encontramos os excluídos”.
Dito o que está por trás, de um lado, da noção de “mendigo” e, de outro, do conceito de “população em situação de rua”, passemos para os desdobramentos dessa diferenciação. Mais esguichos de água nos jardins, negar alimentos (inclusive os que estão prestes a vencer), deixar o lixo na rua no horário mais próximo da coleta (para evitar que os catadores de materiais recicláveis façam do lixo o seu sustento) reduzirá a população em situação de rua? Resolverá essa resistente questão social que é a existência das pessoas em situação de rua? Não. Tais iniciativas, incentivadas pela Amalou e pela Abrasel-MG, só ilustram a forma agressiva e intolerante por meio do qual a população em situação de rua é tratada principalmente nas regiões mais nobres das cidades. Ignoram o entendimento de que se trata de um público também sujeito de direitos, como todo ser humano. A postura dessas associações nos faz lembrar que todo direito se posiciona no campo dos conflitos, e que, nessas lutas para a garantia de direitos, costumeiramente, são os interesses das elites políticas e econômicas e daqueles situados nos estratos superiores de nossa pirâmide social que prevalecem. Essas ações, incentivadas pela Amalou e pela Abrasel-MG, negam a perspectiva do direito à cidade, que é um direito coletivo, de todos os citadinos, e que não há como ignorar a existência de sujeitos específicos, também produtores das cidades e que fazem parte dela, como é o caso da população em situação de rua.
Ademais, foi instituída em 2009, pelo Decreto Federal nº 7.053, a Política Nacional para a População em Situação de Rua, que estabelece diretrizes e ações para a construção de processos de saída das ruas. No nosso entendimento, qualquer pessoa ou grupo de pessoas que queira se organizar junto das pessoas em situação de rua deve o fazer para exercer sua cidadania no sentido de exigir a efetivação de políticas públicas estruturantes e intersetoriais para essas pessoas. E, para além da cidadania, faz-se urgente resgatar, em nossas ações individuais e coletivas, a dimensão ética que passa, necessariamente, pelo respeito ao outro, independentemente de sua condição social, nele reconhecendo um ser humano, detentor de direitos e de dignidade.
Reiterando, não há como ignorar os conflitos, os processos de produção e reprodução de desigualdades de nossas cidades. Para que se revertam esses processos mais amplos de precarização em curso no País, deve-se ter vontade política para tanto. E em relação à população em situação de rua, a implementação de políticas de moradia, geração de emprego e renda, e de saúde, considerando a especificidade desse público, deve estar na lista das prioridades. Aí sim contribuiremos para a construção de uma sociedade justa e menos desigual.
1 Técnico Cientista Social do Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua e dos Catadores de Materiais Recicláveis (CNDDH). Mestrando em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Contato:sociologiacnddh@gmail.com
2 Advogada do Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua e dos Catadores de Materiais Recicláveis (CNDDH). Contato:juridicocnddh@gmail.com
Colaboração de Gilvander Luís Moreira, para o EcoDebate, 21/11/2013
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