A universidade e a formação cidadã. Um divórcio. Entrevista com Franklin Leopoldo e Silva
“A universidade enfrenta dificuldade porque se vive numa época em que tudo o que é ética e politicamente necessário é considerado irrelevante”, constata o filósofo.
Foto: http://migre.me/fWqJy |
Confira a entrevista.
“A universidade praticamente já perdeu seu caráter de instituição política graças ao avanço da mentalidade mercantil e pragmática que dispensa a formação ético-política e privilegia a informação e o treinamento para o mercado”, pontua Franklin Leopoldo e Silva (foto abaixo) em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Segundo ele, isso acontece porque a universidade deixou de “se relacionar” com a sociedade e passou a “se subordinar a ela”, renunciando “à sua lógica interna e à sua natureza específica, assimilando de fora parâmetros que venham a inseri-la no modelo hegemônico de sociedade, que, na época atual, é o mercado”.
E acrescenta: “Esta recusa de si mesma a desfigura e a torna uma unidade produtiva na funcionalidade do mercado, sem qualquer referência ética e política que definiria seu perfil institucional”.
Na avaliação do filósofo, a universidade deveria “formar o indivíduo para que ele corresponda essencialmente à humanidade que o distingue”. Entretanto, pondera, a instituição caminha no “sentido de divorciar o treinamento profissional da formação do cidadão, o que pode produzir competências específicas e ao mesmo tempo prejudicar a cidadania, ou simplificá-la, adaptando-a às relações exclusivamente mercadológicas”. Por conta desse cenário, “as ciências humanas sofrem, evidentemente, uma pressão no sentido de se conformar a tais parâmetros, o que significa o esvaziamento de sua significação. A ‘sustentabilidade’ das áreas de ciências humanas fica assim dependendo daquelas que realmente importam: científicas e tecnológicas, criando modelos e referências que, se implantados, deformam o perfil das ciências humanas”.
O tema desta entrevista será abordado pelo professor Franklin Leopoldo e Silva na palestra intitulada “Da universidade logicamente necessária à universidade ética e politicamente necessária”, no dia 05-09-2013, às 17h30, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU.
Às 19h30, o professor ministrará a palestra intitulada “Heidegger e a questão da essência da técnica”, parte do II Seminário preparatório para o XIV Simpósio Internacional IHU: Revoluções tecnocientíficas, culturas, indivíduos e sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea.
Franklin Leopoldo e Silva é graduado, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP, onde leciona atualmente.
Foto: http://migre.me/fWqNO |
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor afirmou recentemente que a universidade vem perdendo seu caráter de instituição social produtora da diferença, do autêntico progresso e do avanço político. Pode descrever as evidências e os efeitos desse processo?
Franklin Leopoldo e Silva – A universidade praticamente já perdeu seu caráter de instituição política graças ao avanço da mentalidade mercantil e pragmática que dispensa a formação ético-política e privilegia a informação e o treinamento para o mercado.
O mercado não é uma representação autêntica da sociedade, mas se relaciona com ela apenas pelo viés da organização econômica.
Como, no entanto, prevalece a ideia de que a vida gira em torno do mercado, a sociedade e o social se reduzem à funcionalidade, e a universidade se insere neste contexto, que evidentemente não favorece a diferença ou a singularidade, mas a massificação dos indivíduos que, embora isolados, ainda assim formam uma totalidade homogênea. Neste sentido a sociedade é formal, porque não há relações reais entre sujeitos sociais e políticos pautada pela ética, que se transformou numa técnica de comportamento calcada na eficiência.
Neste sentido, os indivíduos passaram de sujeitos a administradores da própria imagem, numa espécie de gerenciamento da vida. Tal situação favorece o conformismo e a perspectiva conservadora, não por opção política consciente, mas pela falta de opção política, efeito da ausência de uma vida política e de um espaço público. A universidade reproduz, na sua organização, este estado da sociedade.
IHU On-Line – Qual o papel da universidade na sociedade moderna? Como lidar com o dilema de formar profissionais com um viés tecnocientífico e ao mesmo tempo sustentar os cursos das áreas de ciências humanas?
Franklin Leopoldo e Silva – O papel da universidade seria formar o indivíduo para que ele corresponda essencialmente à humanidade que o distingue. Esta formação, de caráter integral, se desdobra nas várias possibilidades que a universidade contempla em seus cursos. A ciência e a tecnologia dizem respeito às informações que o indivíduo deve obter para o exercício adequado de uma profissão. Mas o profissional precisa ser formado como indivíduo e cidadão, pois ele exerce seu trabalho num contexto social onde é responsável por si e pelos outros.
Caminhamos no sentido de divorciar o treinamento profissional da formação do cidadão, o que pode produzir competências específicas e ao mesmo tempo prejudicar a cidadania, ou simplificá-la, adaptando-a às relações exclusivamente mercadológicas. Sendo este o caráter geral do perfil atual da universidade, as ciências humanas sofrem evidentemente uma pressão no sentido de se conformar a tais parâmetros, o que significa o esvaziamento de sua significação.
A “sustentabilidade” das áreas de ciências humanas fica assim dependendo daquelas que realmente importam: científicas e tecnológicas, criando modelos e referências que, se implantados, deformam o perfil das ciências humanas. Esta oposição é o grande sinal de que a universidade já não consegue mais desempenhar o papel que lhe estaria destinado.
IHU On-Line – Qual a diferença entre a universidade ética e politicamente necessária e a universidade logicamente necessária? Por que há dificuldades em ser uma universidade ética e politicamente necessária?
Franklin Leopoldo e Silva – Toda instituição possui uma lógica interna que diz respeito não apenas ao seu funcionamento, mas principalmente à sua razão de ser e à definição de sua natureza. Nisto consiste, por exemplo, a assim chamada autonomia da universidade. Quando a instituição deixa de se relacionar com a sociedade e passa a se subordinar a ela, renuncia, por isto mesmo, à sua lógica interna e à sua natureza específica, assimilando de fora parâmetros que venham a inseri-la no modelo hegemônico de sociedade, que, na época atual, é o mercado. A lógica da universidade passa a ser a do mercado, e isto aparece como necessário para sua inserção em termos de eficácia. Esta recusa de si mesma a desfigura e a torna uma unidade produtiva na funcionalidade do mercado, sem qualquer referência ética e política que definiria seu perfil institucional. O apelo da produtividade e do consumismo passa então a funcionar como critérios da universidade, como de resto já são os critérios da sociedade em geral.
Ética e política se fazem ausentes da formação, o que significa a ausência de formação. Mas como isto representa uma adaptação ao status quo, a deformação aparece como uma necessidade natural, e se torna cada vez mais difícil resistir a ela. A universidade enfrenta esta dificuldade porque se vive numa época em que tudo o que é ética e politicamente necessário é considerado irrelevante.
IHU On-Line – Como garantir a autonomia das universidades?
Franklin Leopoldo e Silva – A autonomia das universidades é formal, e isto já ocorre há bastante tempo. A comunidade universitária introjetou a dependência de instâncias externas, notadamente as agências federais e estaduais de fomento, mas também as indústrias que têm interesse em pesquisas, como as farmacêuticas, por exemplo, e esta interferência do setor produtivo é um modo de controlar a universidade e organizar as prioridades por via do aporte de verbas vinculadas. É impossível reverter esta situação porque se trata de procedimentos já integrados ao sistema. Não há como garantir uma autonomia real, pelo menos dentro da atual estrutura. Quanto a mudanças que eventualmente poderiam ser feitas na estrutura de poder de modo a distribuir melhor as responsabilidades de decisão, apesar de desejável, não é certo que isto viria a modificar substancialmente a situação.
IHU On-Line – Que espaço e relevância as universidades brasileiras têm dado para as áreas humanas nos últimos anos?
Franklin Leopoldo e Silva – Nas universidades tradicionais, as humanidades sobrevivem por inércia e, principalmente, pela adoção de paradigmas alheios (ciências exatas e naturais) que satisfazem as exigências das instâncias avaliadoras. As empresas que decididamente optaram pela venda da educação se beneficiam do prestígio do diploma universitário que induz as pessoas a se conformarem com simulacros de cursos que não oferecem qualquer formação e, muitas vezes, nem mesmo informação. Excetuam-se algumas instituições que, por vocação, insistem na importância das humanidades, e um certo número de pessoas que ainda creem nos valores humanos.
IHU On-Line – Quais são os interesses hegemônicos impostos às universidades?
Franklin Leopoldo e Silva – O interesse principal é de ordem ideológica. Não convém aos poderes constituídos que os indivíduos recebam formação crítica que os levem a contestar os elementos fundamentais da situação vigente, correspondentes aos interesses da classe dominante e dos quais os governos cuidam com muito zelo. O que se desdobra a partir daí é a negligência com que a educação é tratada e que, no caso da educação superior, pode se travestir do oportunismo que tem como finalidade satisfazer ilusoriamente segmentos da população por via de uma pseudo-inclusão. O que se precisa é de indivíduos conformados, controlados e bem treinados, e não de cidadãos bem formados. Por isso a pessoa aprende, desde o ensino fundamental até a universidade, a cultivar contravalores: individualismo, narcisismo, egoísmo, a fim de se tornar um eficaz administrador de si e de seus bens, inclusive culturais.
IHU On-Line – Por causa da crise econômica de 2008, o governo estadunidense reduziu 13% do orçamento das verbas federais às artes e ciências humanas, enquanto a redução no orçamento das ciências exatas foi menor. Como vê esta política? Quais as consequências desse processo?
Franklin Leopoldo e Silva – Nada há de inesperado ou de surpreendente nesta medida, tendo em vista as prioridades que de fato orientam o governo norte-americano. Também é preciso dizer que o privilégio das ciências exatas, naturais e da tecnologia não se deve a qualquer interesse científico, mas à necessidade de manter e alimentar estudos e pesquisas direta ou indiretamente ligados às áreas militares e que sejam valorizados pela indústria bélica, cliente e fornecedor em grande escala e mola mestra do progresso técnico. As consequências deste processo são aquelas que já nos acostumamos a notar: um país que se dedica a impor pela força seus interesses não pode ver com bons olhos a formação humanística.
IHU On-Line – É possível comparar os recursos que o Estado brasileiro destina às áreas humanas e às áreas exatas? Como avalia o investimento financeiro do Estado nas universidades do país?
Franklin Leopoldo e Silva – O investimento em educação, aí compreendidos ensino e pesquisa nas universidades, é pequeno em todas as áreas. Naturalmente, certas áreas consideradas de interesse estratégico são mais bem servidas no que se refere à pesquisa e, neste sentido, as humanas levam a costumeira desvantagem. Até porque nelas ainda não se criou o hábito de desvincular completamente ensino e pesquisa. Mas, do ponto de vista global, o investimento é bem abaixo do que seria necessário para suprir as necessidades e aprimorar as atividades universitárias de modo geral.
(Por Patricia Fachin)
(Ecodebate, 13/09/2013) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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Esta falácia decantada nos quatro cantos de pressionar a Universidade para só produzir conhecimento científico, mesmo que seja “quem invernizou as antenas da barata”, é a forma desgraçada de produção de muita matéria imprestável e deteriorada. O que vale mesmo no finalismo urgente do protagonismo das Universidades é a extensividade, procurando dar a mão à sociedade em crise e em risco crescente. Fora disso é caminharmos juntos, independentes para o rotundo fracasso neste abismo infranqueável de falta de cooperativismo, solidarismo e compartilhamento para soluções.
Um sério problema:
A universidade virou uma forma de lavagem de $ – extremamente mercantilizada.