Fortaleza: acampamento de ativistas no Parque do Cocó já dura quase dois meses
Imagem no blogue do Comitê Metropolitano Xingu Vivo
Capital do Ceará atravessa momento de levante popular com a ocupação de ativistas no Parque do Cocó, em área desmatada pelo poder municipal. Prefeitura justifica devastação com obra de dois viadutos. A cidade vive momento único de debate sobre a cidade.
* Jornalismo Colaborativo por Júlia Lopes, Livino Neto e Raissa Veloso
Cocó: Juíza da 9º Vara da Fazenda Pública transfere decisão para Justiça Federal
A juíza da 9º Vara da Fazenda Pública Joriza Magalhães Pinheiro
declarou, na manhã desta segunda-feira, 2, que é de competência da
Justiça Federal julgar o processo que envolve a área do Parque do Cocó
atingida pela obra de viadutos da Prefeitura de Fortaleza. Por se
tratar de terreno de marinha, cabe à Justiça Federal decidir sobre o
interesse da União no local, nos termos da súmula 150 do Superior
Tribunal de Justiça. Segundo a decisão, a juíza encaminha o autos à
Justiça Federal “tendo em vista a expressa manifestação de interesse
da União na presente ação”.
Na última sexta-feira, 30, a Advocacia Geral da União (AGU) manteve a
suspensão da portaria 32, da Secretaria de Patrimônio da União, que
embasava a permissão para a construção dos viadutos do Cocó pela
Prefeitura de Fortaleza. Depois de pedido do Ministério Público
Federal, o juiz Roberto Machado determinou que a AGU fosse consultada,
e esta manteve a suspensão. A AGU colocou que até que a Prefeitura
demonstrar que não derrubou mais árvores que o permitido, a
autorização está suspensa.
Na manhã desta terça-feira, no entanto, a AGU esclareceu, para a
imprensa local, que a suspensão das obras não havia sido determinada.
“A Secretaria de Patrimônio da União autorizou, por meio da Portaria
SPU/CE nº 32/2013, o município de Fortaleza a construir o viaduto no
local, e essa autorização não foi suspensa. Continua válida, pois não
partiu dos advogados da União qualquer pedido de suspensão da referida
portaria”. A frase que supostamente teria induzido ao erro do
entendimento de suspensão refere-se à decisão do juiz Roberto Machado
do dia 21 de agosto, uma decisão anterior, portanto.
De acordo com o jornal local O Povo, “segundo a AGU, o documento do
órgão saiu às 16h52 de 29 de agosto. No mesmo dia, às 17h35, foi
divulgada a decisão do presidente em exercício do TRF da 5ª Região
mantendo a autorização para a Prefeitura retirar os manifestantes do
parque e tocar a obra. ‘[A decisão do TRF5] só foi divulgada às 17h35,
chegando ao conhecimento da AGU ainda depois’, conforme a assessoria.
‘Assim, a suspensão mencionada na peça referia-se à própria suspensão
determinada pelo juiz [Roberto Machado]’ completou a assessoria”.
Acampamento já dura quase dois meses
Fortaleza está surpresa consigo mesma. E não só pelo acampamento que se mantém há quase 50 dias no Parque do Cocó, situado numa área de constante disputa do mercado imobiliário (apesar de não ter valor de mercado por ser, a partir do que diz o Plano Diretor da Cidade, uma Zona de Proteção Ambiental). Nem apenas pela lembrança das Jornadas de Junho, que chegou a reunir cerca de 100 mil pessoas na manifestação do primeiro jogo da Copa das Confederações, 8pelos arredores da Arena Castelão, no dia 19. É tudo isso e um pouco mais: a cidade vive momento único de debate sobre a cidade.
E esse debate caminha por diversos sentidos. Um deles, no campo jurídico, vem se desenvolvendo de forma complexa, mas articulada. Na tarde desta última quinta-feira, por exemplo, uma decisão do Tribunal Regional Federal da 5a Região, do juiz Edilson Pereira Nobre Júnior determinou a continuação das obras – que haviam sido suspensas depois de pedido do Ministério Público Federal. O argumento do MPF se remeteu ao corte de árvores superior ao que estava previsto. Já o TRF não entendeu como fato novo.
Mas o caso não se resume a isso dado o correr de outra ação, para revisão da decisão da juíza Joriza Magalhães Pinheiro, da 9a Vara da Fazenda Pública. Segundo o MPF, há troca de competências já que o terreno ali é da Marinha, não podendo ser objeto de disputa na esfera estadual. Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (Renap-CE), explica que a decisão da juíza está suspensa até a manifestação da Advocacia Geral da União por conta de Ação Declaratória Incidental protocolada nesta quarta-feira, 28, pelo Instituto Viramundo. “E o que se espera é que diante da demonstração do conflito de competência, ela remeta a discussão para a Justiça Federal, que é onde deve ser decidida toda a questão relativa ao Parque do Cocó, desde a regularidade da obra até o pedido de desocupação da área”, colocou.
Às 15 horas desta quinta-feira, 29, seis acampados do #OcupeCocó iniciaram greve de fome em protesto.
Histórico
Um dos principais fatos políticos da atualidade na capital cearense, o #OcupeCocó teve início em julho, logo depois que o poder municipal, capitaneado por Roberto Cláudio (PSB), anunciou no dia 5 a construção de um conjunto de viadutos no cruzamento das avenidas Engenheiro Santana Jr. e Antônio Sales, no bairro de mesmo nome do Parque. Não bastasse a solução encontrada pela Prefeitura para dar agilidade ao entorno, tendo em vista os demorados engarrafamentos, ser descontextualizada e considerada retrógrada por arquitetos e urbanistas, a obra previa o corte de árvores localizadas em uma área de mangue já bastante fragilizada. Os movimentos, atentos, se dirigiram ao local e por lá permaneceram, dando início a uma das ocupações mais longas da história da cidade.
O debate se deu logo nos dias seguintes: enquanto o governo municipal seguia reafirmando – como continua a reafirmar – a necessidade da obra, os manifestantes questionavam a ausência do Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental (Eia-Rima) específico para esse conjunto de viadutos. O estudo apresentado pelo poder público foi elaborado para um conjunto genérico de obras previstas pelo Programa de Transporte Urbano de Fortaleza – Transfor. Além disso, a Secretaria de Intraestrutura, responsável pela obra, nunca mostrou o projeto dos viadutos, apenas a maquete virtual. Não houve audiências públicas ou debates com a sociedade sobre a intervenção, que vem sendo desenhada desde o governo de Juraci Magalhães, no final dos anos 90. Outro dado importante trazido pelos manifestantes é a lembrança da Zona de Preservação Ambiental, que exige índice de permeabilidade de 100% – o que determina que nenhuma construção pode ser feita na área.
A luta pela preservação do Parque conta com pelo menos 30 anos, quando aquela porção foi devastada para dar lugar a uma salina. A salina foi desativada e o verde floresceu. O movimento também conquistou, em 2009, numa área próxima onde hoje está o acampamento, a lei 9502/09, que determina ser Área de Relevante Interesse Ecológico (ARIE) as dunas milenares e parabólicas com um tipo de vegetação cada vez mais rara no Estado. Em 2008 foi criado um Grupo de Trabalho no âmbito do Conselho de Políticas e Gestão do Meio Ambiente (Conpam), contando com representantes dos órgãos ambientais das três esferas para retomar a implementação do parque, delimitando sua área física e qual o tipo de unidade de conservação que viria a ser criada, de acordo com as características e atributos ambientais específicos do local. Este GT apresentou o resultado dos estudos realizados e concluiu que área adequada é de 1.312 hectares.
Ação ilegal
No 8 de agosto, Fortaleza amanheceu de sobressalto: a Guarda Municipal, de forma violenta e imprevista, invadia, às quatro da madrugada, o acampamento. Com balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo, o Pelotão Especial usou de violência enquanto manifestantes dormiam. Naquela manhã, a truculência tinha feições de operação de guerra: manifestantes foram agredidos sem terem demonstrado qualquer ação. A Guarda agrediu parlamentares como os vereadores João Alfredo (PSOL) e Guilherme Sampaio (PT). Foram violentos com a ex-vereadora Rosa da Fonseca e a ex-prefeita Maria Luiza Fontenele. Quebraram o carro de um manifestante porque este não concordou em entregar o celular no qual fazia imagens. Dois ativistas conseguiram furar o bloqueio e subiram na copa de duas árvores, enquanto máquinas e tratores continuam a derrubada das outras.
O acesso à área foi fechado e o trânsito de uma das áreas nobres da cidade parou. A resistência durou todo o dia. E a repressão também, ainda que a Guarda Municipal esteve atuando sem autorização e de forma ilegal, inclusive sem a identificação obrigatória no fardamento. Até às 7 horas, três pessoas haviam sido detidas e encaminhadas para o 2o Distrito Policial, de onde foram liberados por volta das 9 horas. Advogados da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap) e a Defensoria Pública acompanhavam os depoimentos e constataram que os manifestantes foram presos de forma arbitrária, sem terem cometido qualquer ilegalidade.
Vitória do movimento
Semanas depois, no 22 de agosto, caiu a decisão da juíza da 9a Vara da Fazenda Pública Joriza Magalhães Pinheiro, do dia anterior, que determinava a desocupação da área. Naquele dia, tão logo bateu as 7 horas e 30 minutos da manhã, o oficial de justiça notificava o acampamento da reintegração de posse, concedendo um prazo de até três horas para a saída das pessoas. A decisão do acampamento, no entanto, era resistir. Os ativistas se recusaram receber a notificação e convocaram militantes e movimentos sociais para integrar a corrente. Permaneceram em resistência, prendendo-se às árvores, subindo às suas copas e cantando músicas de luta, enquanto pintavam o próprio corpo, em um protesto contra a criminalização do movimento.
Do lado de lá da rua, se armava o aparato de repressão com o Batalhão de Choque numa investida contra os manifestantes. Mesmo a trilha que desemboca no acampamento, por dentro do Parque, foi tomada por policiais. O relógio contava 11 da manhã. Pouco antes, chegaram ao acampamento representantes de instituições e entidades públicas. Organização dos Advogados do Brasil (OAB-CE), Defensoria Pública, os procuradores da república Oscar Costa Filho e Marcio Torres e Ministério Público reforçavam, junto à força policial e jurídica, a necessidade de ouvir o que diziam os acampados. Era necessária mediação para evitar confrontos.
De dentro do acampamento, as forças de apoio se chegavam. Movimento Sem Terra (MST), Índios Pitaguary, movimentos sociais de diversas bandeiras. “Essa obra é um absurdo… Querem construir um viaduto que não tem passagem para pedestre e nem ciclovia”, reivindicava a jornalista Paula. “Está vestido de preto, está sem identificação e batendo nos outros? É capanga de político”, comentou sobre a falta de identificação no fardamento dos policiais.
Pouco depois do meio dia os gritos eram ouvidos em diversos pontos do acampamento – o procurador Márcio Torres nem tinha tido a oportunidade de entregar a boa nova – de alguma forma, aquilo já havia se espalhado. A juíza responsável pela ação do Cocó, Joriza Pinheiro, suspendeu a execução da liminar de reintegração de posse.
Jornalismo colaborativo de Júlia Lopes, para o EcoDebate, 05/09/2013
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