Moradores em Unidades de Conservação de Proteção Integral: complementando o entendimento da situação no Parque Nacional da Serra do Cipó, artigo de João Madeira
O Parque Nacional da Serra do Cipó está situado na área central do Estado de Minas Gerais entre as coordenadas 19º 12` e 19º 34` latitude sul e 43º 27` e 43º 38` longitude oeste, na parte sul da Cadeia do Espinhaço. Localiza-se nos municípios de Jaboticatubas, Santana do Riacho, Morro do Pilar e Itambé do Mato Dentro e faz divisa com Itabira.;Está distante de Belo Horizonte cerca de 100 Km por estrada em direção nordeste do Estado. A área total do PARNA Serra do Cipó é de aproximadamente 34.000 hectares com um perímetro de cerca de 154km. O acesso pode ser realizado pelas rodovias MG-10 e MG-424. A rodovia MG-10 está asfaltada até o km 100. A entrada para a sede do Parque Nacional da Serra do Cipó é feita no Km 94 da rodovia MG-10 e dista do asfalto aproximadamente 3 km. Mapa e informações do ICMBio.
[EcoDebate] Recentemente teve grande repercussão, com matérias em alguns grandes jornais e também em vários blogs, inclusive neste EcoDebate, a notícia de que moradores do Parque Nacional da Serra do Cipó (PNSCi) estariam sendo expulsos de suas moradias, inclusive idosos. Tal notícia causou justa indignação e meu propósito aqui é o de trazer informações que considero necessárias à compreensão mais profunda do que ocorre, além de, se possível, enriquecer o debate.
Em primeiro lugar, engana-se quem imagina que o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) tenha uma visão uniforme em relação a este tema da presença de gente em UC de proteção integral. Assim como entre os que se consideram ambientalistas há uma clara divisão entre os que tendem ao preservacionismo, vendo como ideal a manutenção dos maiores espaços possíveis inteiramente livres da presença humana e aqueles que vêem na presença de comunidades tradicionais que pratiquem atividades de baixo impacto ambiental a melhor maneira de garantir a manutenção da sociobiodiversidade, esta divisão também existe dentro do ICMBio. E quando este debate vira briga, apelidada de bio-life x etno-people, claro, só ganham aqueles que enxergam a natureza como um conjunto de recursos a serem explorados ao máximo e que só se preocupam com comunidades tradicionais quando estas precisam ser retiradas do caminho para que a exploração aconteça. Enquanto os ambientalistas brigam, os tratores passam e as escavadeiras escavam. Mas é estranho que no PNSCi, uma das UC federais com menos problemas fundiários, essa disputa possa também causar estragos.
Concordando plenamente que não é correto usar de violência ou truculência contra moradores de unidades de conservação, em geral pessoas de poucas posses e poucos meios de se defenderem, deve-se ter cuidado também para não fomentar lendas, com base em informações infundadas. Dizer que “a maioria dos antigos moradores do PNSCi foi expulsa sem indenização” é inclusive um desrespeito ao trabalho feito no final dos anos 1970 e início dos 1980 por Julio Cesar Duarte e José Machado (ambos falecidos), que levantaram as propriedade e posses e conduziram um trabalho de aquisição amigável de mais de 40% da área antes da criação da unidade, decretada em 1984. Dizer que o fogo aumentou em seguida é uma leviandade, porque não há dados sobre queimadas anteriores a 1984. O fogo sempre foi usado nos altos de serra da região para renovação da pastagem, composta de espécies nativas das quais apenas os brotos novos são palatáveis ao gado. Durante muitos anos o gado pastou durante os invernos secos em áreas já adquiridas pelo IBAMA (antes da criação do ICMBio), situação interrompida apenas em 2004. Nunca houve na Serra do Cipó um clima hostil como, por exemplo, na Serra da Canastra, embora seja fato que nem sempre os agentes do IBDF e depois IBAMA tenham sido gentlemen… Houve relatos de que as compras amigáveis de terras tenham levado a conflitos familiares, onde algum irmão tenha se sentido prejudicado no recebimento de sua parte. Mas a “lenda” de que “ninguém recebeu nada” é inteiramente falsa.
Parte desta lenda deriva, provavelmente, do fato de que há casos em que, mesmo havendo disposição e recursos para se efetuar o pagamento de indenização, nem todos recebem. Isto porque não é nada simples recompor as árvores genealógicas de famílias que viviam, até há poucas décadas, em um local remoto, isolado e onde ninguém precisava de papeladas. Há espólios em que não é fácil determinar quantos e quem são os herdeiros, os quais por sua vez muitas vezes não têm conhecimento das providências necessárias para se habilitarem a receber sua parte de uma indenização. Os processos se arrastam, indenizações são pagas em juízo e pessoas vivem e morrem sem terem entendido o que deveriam fazer. Há casos em que a indenização se divide tanto que o que cabe a um indivíduo é irrisório. E há, ainda, o caso dos Miné, família que durante anos cobrou pedágio de visitantes do Parque. Alguns pagavam de bom grado, achando justo que aquela família (não indenizada) recebesse pela visitação de suas cachoeiras. Outros não queriam pagar e muitas vezes houve violência, principalmente quando havia cachaça no meio. Um dia, já após a morte de D. Odila, a matriarca da família que não achava justo ter de dividir a indenização com as irmãs que foram para a cidade (por isso não foi indenizada), um dos Miné foi acusado de tentar estuprar uma turista. Foi a deixa para uma juíza determinar a retirada deles do Parque, já que a imissão na posse ao IBAMA já fora determinada pela Justiça.
Como participei da elaboração do Plano de Manejo do PNSCi, sei que tivemos a preocupação de evitar criar situações de risco de sobrevivência a moradores que identificamos como vulneráveis. E em decorrência desta preocupação, foram delimitadas duas “Zonas de Ocupação Temporária” (ZOT), que consistiam em áreas destinadas à permanência, pelo resto de suas vidas, de dois irmãos idosos e com problemas mentais e de mais um morador, também portador de distúrbios mentais. Recorremos, na época, a um psiquiatra, que confirmou que seria um risco à vida daquelas pessoas sua eventual retirada compulsória do local onde moravam. As ZOT garantiriam sua permanência, mesmo que as propriedades em que se localizam tivessem sido inteiramente indenizadas.
Mas o principal neste momento é perguntar: é correto mandar para a rua uma pessoa idosa e/ou claramente incapacitada para sobreviver num ambiente urbano? É evidente que não e o plano de manejo do PNSCi contemplou esta preocupação. As pessoas que se colocaram em defesa destes moradores talvez não saibam desse detalhe. Espero que isso seja levado em conta, assim como deve ser levado em conta também que o impacto ambiental da presença destas pessoas é mínimo e que a pacificação desta situação traria grande benefício ao Parque. O Retiro, onde estão estes últimos moradores, é também uma “Zona Histórico Cultural”, que guarda lembranças de como viviam os primeiros moradores não indígenas da região. Enquanto esta situação não se resolve, várias casas estão caindo, levando embora um dos atrativos do Parque. Além da injustiça de se impor a uma pessoa vulnerável uma situação que ela não terá meios de enfrentar, cria-se um ambiente hostil para a própria equipe que trabalha no Parque, em troca da retirada de pessoas cujo impacto só se tornará grande se estiverem revoltadas com a situação.
João Madeira
Analista Ambiental – ICMBio
Biólogo, DSc Ecologia
EcoDebate, 03/09/2013
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Olá João Madeira! Parabéns pelo artigo. Eu acho que estudamos juntos em São Carlos.
Parabéns João!!
Bom senso e canja de galinha nunca fizeram mal a ninguém!!
Parabéns João!!