Povos indígenas do Brasil e a necessária luta contra as ações anti-indígenas, por Roberto Antonio Liebgott
Brasília, 18/04/2013 – Índios fazem manifestação em frente ao Palácio do Planalto. Eles protestaram contra a PEC 215, que transfere para o Congresso poder de demarcar terras indígenas. Foto de Valter Campanato/ABr
Nas últimas semanas, uma parcela significativa da população brasileira se mobilizou e ocupou as ruas das grandes cidades, nos mais diversos estados brasileiros, para combater os desmandos políticos e a precariedade dos serviços públicos em nosso país. A partir de então, parlamentares, tanto no Senado Federal, quanto na Câmara dos Deputados, passaram a incorporar em seus discursos referências ao “grito das ruas”. No entanto, na prática, pouco fazem no sentido de acolher e contemplar as reivindicações e apelos dessa massa atuante e participativa. Paralelamente, a mídia divulga denúncias que evidenciam a imoralidade no trato e uso dos bens públicos por parte de ministros, senadores e/ou deputados. Surgem denúncias, por exemplo, de uso indevido de bens públicos, a exemplo dos aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) para fins particulares, por parte do presidente do Congresso Nacional, Renan Calheiros, e do presidente da Câmara dos Deputados, José Henrique Alves.
Na encenação de escuta das vozes das ruas, parlamento e governo dizem que acolhem as reivindicações daqueles que exigem a punição dos corruptos, assistência em saúde, educação, segurança e transporte público gratuito. Na vida real, no entanto, eles legislam e governam para assegurar os interesses privados de empreiteiras e de latifundiários, a quem, como sempre, são outorgadas as desonerações de tributos, as concessões de financiamentos e a liberação de verbas bilionárias (obras superfaturadas da Copa do Mundo, de barragens, de estradas, de estrada de ferro e de aeroportos, dentre outras, continuam recebendo vultosas quantias, enquanto recursos destinados a ações e políticas publicas permanecem contingenciados).
Recentemente, depois das mobilizações que povoaram as ruas e os noticiários televisivos, a presidente da República resolveu que ouviria a população. Decidiu convocar alguns representantes da sociedade, dos movimentos sociais, sindicais, populares e indígenas para reuniões no Palácio do Planalto. A reunião da presidente Dilma com lideranças indígenas ocorreu no dia 10 de julho. Depois de ouvir as propostas e críticas dos líderes, a presidente respondeu que vai tratar das questões com cautela. E, acerca do tema específico da saúde, reconheceu que é vergonhosa a atenção prestada aos povos indígenas. Questionada sobre os procedimentos de autorização e de construção de hidroelétricas que impactam terras indígenas, respondeu que este é um ponto em que haverá divergências entre o governo e os povos indígenas.
A avaliação das lideranças presentes nesta reunião, acerca da receptividade e da postura da presidente, é de que o governo não está muito interessado nas pautas de reivindicações e na garantia plena dos direitos deste e de outros segmentos sociais que não são considerados produtivos ou empreendedores. As reuniões visam, na prática, chamar os “insatisfeitos” e “escutá-los” para abrandar os ânimos e não propriamente para assegurar o debate e o diálogo. O interesse do governo, neste momento, parece ser tentar resgatar um pouco da popularidade que perdeu ao longo dos últimos meses.
Essa postura de dialogar para “inglês ver” ficou evidente no conteúdo das entrevistas pós-reunião com as lideranças indígenas, especialmente do ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, que tem se firmado como uma espécie de porta-voz da presidente. Ao se pronunciar, ele afirmou que o governo vai alterar o procedimento de demarcação de terras, contrariando, portanto, as propostas e interesses indígenas. Ou seja, o governo continuará honrando os compromissos políticos estabelecidos, em efetivo diálogo, com os representantes dos ruralistas, das empreiteiras e mineradoras. A reunião, que deveria servir para dialogar com as lideranças indígenas constituiu-se, uma vez mais, em monólogo, já que o discurso e as pretensões do governo, no que tange aos direitos indígenas, se mantiveram inalterados.
Simultaneamente à reunião dos indígenas com a presidente Dilma, a Comissão de Agricultura e Pecuária da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Complementar 227/2012, que pretende regulamentar o parágrafo 6º do Artigo 231 da Constituição Federal e, com isso, impedir demarcações das terras dos povos indígenas e, ao mesmo tempo, inviabilizar o direito de posse e usufruto exclusivo destes povos nas áreas demarcadas.
Pelo projeto de lei complementar, as terras indígenas ficarão submetidas ao que se pretende caracterizar como sendo “de relevante interesse da União”. Isso significa que estradas, oleodutos, linhas de transmissão, hidrelétricas, ferrovias, vilas e cidades poderão ser construídas nas terras indígenas. E, para além, permite que as terras fiquem submetidas aos interesses da iniciativa privada, a exemplo de fazendeiros, posseiros, mineradoras, assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), antigos e novos.
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, argumentou que “esta cláusula seria o equivalente da anistia que os ruralistas conseguiram no Código Florestal. Mas dessa vez não se trataria de escapar de multas e de ter de recompor paisagens degradadas. Seria legalizar e perpetuar o esbulho. Se uma lei como essa passar, será a destruição dos direitos territoriais indígenas”.
Na audiência com a presidente da República as lideranças indígenas se manifestaram contra o PLP 227/2012 e solicitaram que ela orientasse seus líderes no Congresso Nacional a rejeitarem o referido projeto. Na mesma semana, o líder do governo na Câmara dos Deputados, deputado Arlindo Chinaglia, reconheceu que a tramitação acelerada do PLP 227/2012 vinha ocorrendo graças a acordo entre o governo e a bancada ruralista. O deputado foi além, declarando que recomendou a aprovação do projeto, obedecendo a ordens do Palácio do Planalto.
Em função da grande reação e da repercussão negativa sobre a tramitação do PLP 227/2012, o presidente da Câmara dos Deputados não aprovou um requerimento de urgência para o projeto, como pretendiam lideranças da maioria dos partidos, e determinou que o mesmo fosse apreciado por uma Comissão Especial. Apesar de atender parcialmente as manifestações dos povos indígenas e das entidades indigenistas, não há nenhuma garantia de que o projeto, mesmo com a Comissão Especial, venha a ser apreciado com a profundidade necessária.
Neste contexto de adversidades políticas e econômicas, no qual ainda imperam interesses dos segmentos mais favorecidos da sociedade, os povos indígenas e as comunidades quilombolas devem manter suas mobilizações e articulações com outros setores sociais e, assim, continuar lutando para impedir que seus direitos constitucionais sejam desmantelados. As mobilizações realizadas no ano de 2012 foram extremamente importantes na luta contra iniciativas impostas pelo governo federal: a publicação da Portaria 303 da Advocacia Geral da União (AGU); a construção da hidrelétrica de Teles Pires, no Rio Tapajós; e contra o genocídio imposto ao povo Guarani-Kaiowá. Também em 2013 os protestos indígenas contiveram a tramitação, na Câmara dos Deputados, da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, que vinha sendo articulada pela bancada parlamentar da agropecuária.
É inaceitável que ruralistas concentradores de terras e exploradores da natureza continuem determinando os rumos das políticas indigenista, agrária e quilombola. É inaceitável que um número reduzido de pessoas – cerca de 70 mil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – concentre impunemente 228,5 milhões de hectares de terras improdutivas; que 43% das propriedades rurais tenham mais de 1.000 hectares de terras; que cinco milhões de estabelecimentos rurais detenham mais de 360 milhões de hectares, sendo que o território nacional conta com 851 milhões de hectares (dados do Censo Agropecuário do IBGE 2006).
Estes dados explicitam a injusta, absurda e inaceitável concentração de terras em nosso país. Terras que estão sob o domínio de um punhado de fazendeiros que, através da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), atreve-se a questionar a demarcação de terras indígenas com a alegação de que “é muita terra para poucos índios”. Os dados refletem que há, sim, uma vastidão de terras para poucos “donos”. Esta é a grande injustiça, contra ela é que devemos nos unir e nos mobilizar!
Roberto Antonio Liebgott, Cimi Sul
Artigo socializado pelo CIMI – Conselho Indigenista Missionário e reproduzido pelo EcoDebate, 26/07/2013
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