Católicos venham pra rua! artigo de Johannes Gierse
Manifestação na Avenida Paulista dia 20 de junho de 2013. Foto: Marcos Santos/USP Imagens
[EcoDebate] O Brasil Gigante ainda não tinha acordado, quando alguém usou a expressão: “Será que até a Igreja vai nos virar as costas?” O contexto: No auge da luta do povo indígena terena pela demarcação de suas terras no Mato Grosso do Sul, a senadora ruralista e presidente da CNA, Kátia Abreu, disse no Senado: “Eu peço ajuda à CNBB…que não deixe o CIMI criar esse conflito entre brancos e índios…Tem uma parte da Igreja que protege apenas os índios! E quem vai nos proteger? Será que até a Igreja vai nos virar as costas?…Eu não acredito que isso é o pensamento geral da Igreja. Da minha Igreja, que eu frequento e congrego…”. Pasmem-se! Isto é crença de uma pessoa católica! Não seria uma distorção do Evangelho? Qual a causa deste tipo de fé cristã, exemplar em nossos tempos, que separa a fé da vida, cria um abismo entre céu e terra e deixa o Reino de Deus utopia no Além, sem impacto no mundo real. Hoje nos deparamos com as mais absurdas e contraditórias espiritualidades, cada uma com “seu Jesus”.
Assim como o Gigante brasileiro acordou (mais um pouco), espera-se que acordem também os cristãos católicos, muitos deles indiferentes aos sinais dos tempos, venham pra rua e façam acontecer a revolução do Amor. Os tempos mudam! Há tempo as políticas públicas giram prioritariamente em torno do crescimento econômico, de obras e eventos faraônicos, no intuito de competir com o mercado internacional. Busca-se o lucro em detrimento do bem estar alicerçado na justiça social e ambiental. Uma virada acontece: muitos – indignados com tanta coisa que não cabe num cartaz – vêm pra rua e vira as costas a essa política que não representa a todos, vira as costas ao “circo de pão e jogos” que não alimenta, nem alegra mais.
Nós católicos, além do nosso dever de ficar de olho nas mudanças no cenário sociopolítico do país, poderíamos nos questionar a respeito da relevância de tudo isso para nossa Igreja. Quando será que os católicos vêm pra rua para fazer acontecer a revolução do Amor? Entenda bem! Entenda-se o “vem pra rua” – lema que mobiliza os manifestantes – não somente no sentido restrito como que todos os católicos deveriam vir pra rua e demonstrar (isso também). “Vir pra rua” quer dizer: sair de si, do comodismo da comunidade eclesial e do aconchego das celebrações litúrgicas; deixar de virar as costas ao mundo em torno e virar a face de Cristo às faces humanas desfiguradas. “Vir pra rua” quer dizer: tornar o Amor missão.
Umbigo eclesial
Vendo a ação evangelizadora da Igreja no Brasil, podemos constatar que há mais empenho nas atividades ad intra e pouco ad extra, na missão política, econômica, social e ambiental. De um lado, ad intra, a vida das comunidades é marcada por boa participação nas missas: as igrejas estão cheias, as celebrações bem animadas; os festejos dos padroeiros com as procissões, barracas e bingos mobilizam massas. Não faltam romarias aos santuários. Grupos de orações, Terço dos Homens e devoções conforme cada espiritualidade se vê em todas as igrejas. A evangelização midiática, de massa, está em alta: os astros dos catholic shows têm suas agendas lotadas. Evangeliza-se muito em busca do autossustento da Igreja local (dízimo, benfeitores). Tempos e conteúdos fortes são: a Igreja em estado permanente de missão (Aparecida), o Ano da Fé como resposta à profunda crise de fé que atingiu muitas pessoas convidando-as a redescobrir o renovado entusiasmo do encontro com Cristo; enfim, a tão esperada JMJ e a pergunta o que o novo papa Francisco tem a dizer aos jovens sobre o tema Eis-me aqui, envia-me? O que os jovens farão depois da JMJ, aqui no Brasil e no mundo?
Todas essas coisas boas acontecem dentro do âmbito da nossa Igreja e não obstante do seu forte encolhimento nas últimas décadas (1% de fiéis a menos por ano). Tudo isso – orações, catequese, festas, campanhas e jornadas, autossustento – é muito importante e nos faz bem; mas pergunta-se: serve para quê? O grande perigo é que em “tempos desnorteadores” (DGAE 20) como os nossos, muitas pessoas de boa vontade buscam oásis de sentidos, força e paz em experiências de oração, grupos de louvor, devoções. Mas, será que isso agrada a Deus, ou reforça processos de alienação e de fuga do mundo? Nossa oração nos torna mais humanos, mais solidários e comprometidos com a causa dos oprimidos? “Não uma oração que tranquiliza consciência e repassa para Deus tarefa que é nossa”, alerta o carmelita frei Gilvander. Se fizermos assim, pode acontecer que Ele virará as costas a nossa oração!
Vez por outra faz bem perguntar: Nossa comunidade eclesial vira as costas a alguém? Ela gira muito em torno de seu umbigo ou está vindo à rua onde estão os preferidos de Jesus? Somos uma Igreja apenas litúrgico-sacramental, ou também a Igreja samaritano-solidária? A relação entre católicos praticantes de culto e católicos praticantes de missão-caridade é de 10 : 1. Sem dúvida, há muitos missionários/as, legionárias, zeladoras do Apostolado, agentes da Pastoral da Saúde, da Pastoral Familiar e ministros que visitam regularmente as pessoas nos seus lares, principalmente os doentes. Porém, parece que as visitas são feitas de forma funcional (oração, sacramento) e pontual (luto, conflito), e pouco sistemática (acompanhamento regular) e abrangente (dirige-se aos católicos conhecidos). A messe é bem maior! Sabemos quantos dramas humanos, quantas tragédias conjugais e familiares se escondem atrás das portas e das aparências (violência doméstica, abusos, aborto, dependência, depressão, desemprego, fome…). Por isso, um dos desafios é o preparo dos missionários ou dos agentes: muitos têm boa vontade de fazer algo de bom achando que “o jeito evangélico dos crentes” de anunciar a Palavra já seria o suficiente. Mas, diante de certos areópagos não sabemos traduzir este eis-me aqui envia me em passos concretos, libertadores. Um exemplo: Na cidade de Boa Vista-RR, animado com a CF 2013, um líder de um grupo de jovens sentiu-se questionado pelos jovens na quadra – 100 m distante da Igreja – onde jogam bola e se drogam: “Frei, como evangelizar este povo?” Ele imaginava que anunciando a Palavra de Deus e convidando-os a vir à comunidade seria o suficiente para convertê-los.
Papa Francisco: cristão é revolucionário
Enquanto o Gigante católico ainda não acordou, a cabeça do gigante, o papa Francisco, pronuncia palavras e pratica gestos revolucionários que tiram nosso sono e a vontade de nos refugiar em nossas igrejas:
- Mensagem enviada á Conferência dos Bispos da Argentina (18/04): “Devemos sair de nós mesmos em direção a todas as periferias existenciais e crescer na parresia (coragem, audácia de anunciar o Evangelho). Uma Igreja que não sai, mais cedo ou mais tarde, adoece por causa da atmosfera viciada de seu fechamento… prefiro mil vezes uma Igreja acidentada que uma Igreja doente. A doença típica da Igreja fechada é ser autorreferencial: olhar para si mesma, estar encurvada sobre si mesma”.
- Por ocasião da abertura do simpósio eclesiástico da diocese de Roma (17/04), ele ousou a dizer: “É mais fácil ficar em casa com aquela única ovelhinha, penteá-la, acariciá-la… mas Jesus nos quer pastores, não cabeleireiros de ovelhinhas!” E ainda: “…um cristão se não é revolucionário não é cristão: deve ser revolucionário pela graça que o Pai nos dá através Jesus Cristo morto e ressuscitado”.
A revolução cristã consiste no amor missionário, na caridade solidária! Quando a Igreja primitiva nasceu entre os pagãos, as colunas da Igreja de Jerusalém pediram a Paulo e Barnabé apenas que eles se lembrassem dos pobres, e “isso eu tenho procurado fazer com muito cuidado” afirma ele (Gl 2,10). Portanto, o decisivo e distintivo da fé em Cristo é a caridade, o cuidado com os pobres. “Se as fontes da vida da Igreja são a Palavra e o Sacramento, o centro da vida cristã é a caridade, o amor-doação, o amor que vem de Deus mesmo e que o apóstolo Paulo aponta como o mais alto dos dons (1 Cor 12,31; Jo 13,34s)”, dizem as DGAE (n. 81) de 2008-2010. Ou, querendo colocar uma lógica nas cinco prioridades da evangelização (DGAE 2011-2015), entendemos que a iniciação à vida cristã, a animação bíblica da vida e da pastoral, e a comunidade de comunidades não são fins em si mesmos, mas meios para que a Igreja esteja em estado permanente de missão e promova a vida plena para todos.
Semear amor nos corações humanos
A tão deseja missionariedade de nossas CEBs, pastorais, grupos e movimentos há de caminhar de mãos dadas com o serviço da vida plena para todos. Eis a dimensão social, política, econômica e ambiental da nossa fé. Enquanto nas décadas de 70 e 80 a Igreja na América Latina era (re)conhecida pela sua ação transformadora, hoje, as Pastorais Sociais têm pouca atuação devido à carência de operários; e a dimensão política está mais do que nunca desacreditada. Comentando o conflito de demarcação da terra do povo indígena terena no Mato Grosso do Sul, frei Antônio Fernandes (Bacabal-MA) disse: “A Igreja não se envolve mais nestas questões como antigamente”. Abraçar causas e tomar posição, eis o que diferencia as Pastorais Sociais! Sim, há uns bons cristãos que imitam a atitude do bom samaritano, ajudando ocasionalmente a quem precisar; no entanto, os agentes das Pastorais Sociais fazem um passo a mais! Eles veem, aproximam-se, cuidam das feridas, levam aonde for necessário e gastam de seu bolso em prol das centenas de assaltados vistos em todos os caminhos. Além disso, essa Igreja samaritano-solidária procura eliminar os próprios assaltantes.
“Deus julga os fiéis por como tratam os imigrantes”, disse irmão Francisco no dia 08/07 em Lampedusa-Itália, condenando a indiferença globalizada diante da morte de imigrantes que tentam chegar à Europa. Além dos imigrantes, são muitos os assaltados-crucificados, prediletos e imagens do próprio Cristo que a cada momento são o critério do nosso julgamento (cf. Mt 25,31-46): doentes e idosos, abandonados nas casas e nos hospitais; as juventudes; pessoas portadoras de deficiências; dependentes químicos, menores abandonados; encarcerados nas penitenciárias e presos nas delegacias; migrantes, vítimas do tráfico de pessoas e do agronegócio; favelados; moradores de rua; populações indígenas e quilombolas; ribeirinhos etc…a mãe Terra, a mais maltratada de todas as criaturas na Terra.
Toda essa multidão espera de nós uma atitude, que seja a oposta da indiferença; espera antes de tudo nossa simples presença, por que essas pessoas sentem a cruz da solidão. Elas esperam alguém que ouça sua história dolorosa; querem um aperto de mão, um abraço, um beijo, uma oração – gestos que nos tornam instrumentos da divina misericórdia. Na véspera de sua eleição papal (04/2005), o Cardeal Ratzinger disse: “Temos que produzir frutos que permanecem. Mas, o que fica? Não é o dinheiro, nem os prédios, e também não os livros. O fruto que permanece é aquele que nós semeamos nos corações humanos – o amor…; o gesto que comoveu o coração; a palavra que abre a alma à alegria do Senhor”.
Gestos que comovem o coração! Você já presenciou isso? Os olhos do seu Manuel que sofre as consequências de um AVC, ficam irradiantes ao receber alguém da comunidade! A dor da dona Francisca, deitada numa maca deixada no corredor do Pronto Socorro, alivia quando chega um agente da Pastoral Hospitalar (voluntários maravilhosos desta pastoral têm em Santarém-PA e Boa Vista-RR). O rosto do jovem Raimundo, ex-usuário do crack e álcool, e de toda sua família fica transfigurado após ter recebido um abraço terapêutico. Não tem salário melhor do que o resgate da vida da pequena Isabela, acompanhada pela Pastoral da Criança. O que sente o jovem Luis (21), portador do vírus HIV em fase terminal, ao ser acompanhado pela Pastoral da Aids?! Os agentes da Pastoral da Ecologia (na diocese de Contagem-MG que lançou o subsídio Construindo um Município Sustentável) ficam contentes ao ver que suas sugestões contribuem para melhorias na cidade! A Pastoral Fé e Política na Arquidiocese de São Paulo que tem como lema A partir de Jesus Cristo em busca do bem comum, e uma área pastoral na região Norte que decidiu em assembleia a lançar um dos seus como candidato para o pleito de 2012, são exemplos espontâneos de uma fé política com espiritualidade libertadora.
Lixão humano
Mas, há uma categoria social a qual os católicos viram geralmente as costas: os irmãos/ãs encarcerados e suas famílias. Não temos noção o que significa para uma pessoa humana estar presa duplamente: por fora, pela falta de liberdade, privação de contatos sociais e prisão em condições desumanas (o sistema penitencial brasileira é uma imensa fábrica que produz ainda mais baderneiros e vândalos); por dentro, pela escuridão da alma (culpa, fracasso, falta de sentido e fé). Por estes motivos deveríamos restaurar neles a imagem divina semeando esperança, fraternidade e perdão. Não! Nos omitimos, por que “as Pastorais Sociais não dão status!” comenta o jovem Leandro de São Luiz-MA. 99,9% dos agentes de pastoral almejam um serviço light e a popularidade na comunidade, tipo ministério de música – em Pastoral Carcerária nem pensar! Mas, de nada nos adianta a subir aos milhões ao Corcovado tirando fotografias frente ao Cristo cimentado, se depois não descermos para nos encontrar frente ao Cristo vivo: “Estava na prisão, e vocês não me foram visitar” (Mt 25,43). Quem visita Jesus toda semana numa dessas Penitenciárias pelo Brasil afora é a Irmã Eletícia, aos seus mais de 80 anos de idade, e sua companheira, dona Hilda, dando assistência espiritual, social-familiar, jurídica… Pensem! E na sua paróquia ou comunidade, quem é agente ou voluntário da Pastoral Carcerária?
Palavra de Deus + Doutrina Social = Vir Pra Rua fazendo missão libertadora
As consequências da nossa falta de evangelização no âmbito sociopolítico, econômico e ambiental são imensuráveis, pois, onde nós estamos ausentes, outros sujeitos e elementos entram – e nem sempre pela porta no curral das ovelhas. Muitos católicos (leigos/as e clero) que não sabem os problemas atuais, ou se sabem, não se importam, poderiam ser curados das doenças da indiferença social, do preconceito político e da inércia pastoral, se a Doutrina Social da Igreja deixasse de ser um livro de folhas lacradas e fosse lida com a mesma atenção como a Bíblia. João Paulo II reivindicou isso na encíclica Centesimus Annus (1991): “Para a Igreja ensinar e difundir a doutrina social pertence a sua missão evangelizadora e faz parte essencial da mensagem cristã, porque essa doutrina propõe as suas consequências diretas na vida da sociedade…” (n. 5). Está na hora de nos levantar, arregaçar as mangas, vir pra rua e fazer tudo o que o Senhor nos mandar (cf. Jr 1,17; Is 51,10): além de celebrar a Liturgia e estudar o catecismo, comprometamos nas Pastorais Sociais, formemos novas cabeças para a sociedade, participemos da 5ª Semana Social Brasileira e apoiemos as mais diversas iniciativas e lutas populares para que não aconteça que alguém distorça por interesses próprios o Evangelho e a Igreja, como fez a senadora Kátia Abreu.
Quando pedimos ao Pai, “dai-nos olhos para ver as necessidades e os sofrimentos dos nossos irmãos e irmãs; inspirai-nos palavras e ações para confortar os desanimados e oprimidos…” (Oração Eucarística VI d), não pedimos outra coisa do que “Vir Pra Rua” para começar a revolução do Amor!
Bacabal-Maranhão, em julho de 2013
Frei Johannes Gierse OFM, franciscano, mestrado em missiologia, atualmente em Bacabal, Maranhão.
EcoDebate, 22/07/2013
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