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A ‘primeira alma’, artigo de Montserrat Martins

 

Manifestação na Avenida Paulista dia 20 de junho de 2013. Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Manifestação na Avenida Paulista dia 20 de junho de 2013. Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

[EcoDebate] Pode o presidente da Câmara passear de jatinho da FAB com a família, como quem debocha da voz das ruas? Em nome de que Henrique Alves não é imediatamente derrubado de seu cargo, ao qual não merece, tal como Renan Calheiros (também passeando em jatos da FAB), Feliciano e Blairo Maggi?

Para compreender o Brasil em ebulição de hoje, além da obra do Castells sobre a sociedade em rede (os novos modos de interagir e de se expressar dos jovens) é interessante comparar esses anseios com as estratégias da governabilidade descritas pelo cientista social André Singer em seu livro sobre o lulismo. É como se fosse o confronto entre duas gerações, a dos anos 80 e a de três décadas depois, dos anos 10, com um paradoxo: muitos dos jovens dos anos 80 que ajudaram a eleger o governo de hoje, agora estão do outro lado, exigindo mudanças, correções de rumo, avanços prometidos que não vieram. A “governabilidade” está em xeque, como estratégia.

Singer é o melhor cientista político para analisar criticamente o governo, do qual ele próprio já fez parte, inclusive como porta-voz de Lula. Uma expressão do Singer para descrever o fenômeno do lulismo é a “segunda alma” do PT, a dos acordos conservadores, do reformismo lento com a ideia de manter a estabilidade em nome de um projeto político de longa duração. A “primeira alma” foi sendo deixada gradativamente para trás, a dos ideais mais transformadores, da participação social em grande escala que sacudiu o país nos anos 80 até culminar com a ascensão de Lula à presidência há dez anos atrás.

Pois a “primeira alma” petista, aquela que cativou o país há três décadas pregando a ética, a transparência e a participação popular nas decisões, está tendo seu “remake” no movimento das ruas que, hoje, questiona o próprio partido e seus rumos. Lembro que em 2010 o meu filho, então com 15 anos, começando a se interessar pela política, me perguntou com muita estranheza: “O PT é de esquerda?”. Respondi que “era, nos anos 80 a gente votava em pré-convenção para escolher os candidatos”.

Meus amigos daquela geração estão confusos, com medo da onda anti-petista que possa levar a um retrocesso, tal como o neoliberalismo, as privatizações, o abandono dos programas sociais do governo. Não vejo clima para isso, sinceramente, correndo o risco de parecer ingênuo. Usando a expressão do André Singer, o que vejo nas ruas é a “primeira alma” dos anos 80, agora sem partido, sem sindicato, cética dos acordos da “governabilidade” entre instituições políticas que envelheceram nas suas acomodações gradativas desde que passaram a ocupar cargos públicos.

A “primeira alma” é a que preserva acima de tudo os valores que levaram a algumas mudanças no país, que no entanto cessou de evoluir no rumo desejado, no trato da coisa pública. É aquela que não se converte na “segunda” que é a da governabilidade – cujo pior sintoma, o mais detestado, é o de que cada partido (com raras exceções) tem “um pedaço do Estado pra chamar de seu”.

Renan Calheiros na presidência do Senado e Henrique Alves na Câmara, Feliciano na presidência da Comissão dos Direitos Humanos e Blairo Maggi na da do Meio Ambiente, até quando? Nessas horas, dane-se a governabilidade, é o que as vozes das ruas estão dizendo. Que venha a “primeira alma” das mudanças, dos jovens de agora que resgatam o que os de há três décadas deixaram para trás.

Montserrat Martins, Colunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra.

 

EcoDebate, 08/07/2013


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2 thoughts on “A ‘primeira alma’, artigo de Montserrat Martins

  • Montserrat, recentemente me divorciei. Vivia uma vida menor, limitada por visões&compromissos que, ao fim e ao cabo, levaram a isso, uma vida menor. Havia perdido minha “primeira alma”. A dor de sua ausência finalmente gritou mais forte. Olhei pra frente e tive medo do futuro. Estava em aberto. Fui para as ruas. A correnteza da vida me arrastou. Confio que há muitos portos. Desfruto a viagem.

  • áurea lúcia maia queiroz

    “há um enfraquecimento dos Estados nacionais frente ao poderio dos grandes conglomerados do mercado (…) mundial.” (Brizabel)
    “o que vejo nas ruas é a “primeira alma” dos anos 80, agora sem partido, sem sindicato, cética dos acordos da “governabilidade” entre instituições políticas que envelheceram nas suas acomodações gradativas desde que passaram a ocupar cargos públicos.” (Montserrat)

    arrisco afirmar que o sujeito político universal deste contexto é o consumidor – a quem tudo se destina; o eleitor plebicitário do cotidiano, a cada compra corriqueira; o financiador do sistema que o formata, esgota e distrai; o vértice da mudança que aspiro.

    suponho que, enquanto a multidão indignada nas ruas, entre uma palavra de ordem e outra, molhar a garganta com uma coca cola ou algo que o valha, estará a serviço da manutenção do sistema e não da mudança, por ignorar seu poder original e intransferível de dizer sim ou não aos produtos – e seus respectivos feitos, efeitos e processos de produção.

    proponho uma nova mobilização, desta feita dirigida a esse novo sujeito político transfronteiriço (“agora sem partido, sem sindicato, cética dos acordos da “governabilidade” entre instituições políticas”), transpartidário, transocial, transexual: o consumidor.

    Uma mobilização dirigida originariamente a seus atores – ou seja, a cada um de nós em nossas práticas de consumo -, com a mesma severidade crítica que temos treinado destinar às autoridades e instituições públicas em geral nas atuais “manifestações de rua”.

    Estimo que um comportamento assim organizado, por exemplo, tipo “acordei: não tomo refrigerantes”, poderia bloquear milhares de caminhões em trânsito de carga pesada sobre nossas caras rodovias, sem transtornar o tráfego em geral, sem colocar em risco os militantes, sem onerar os serviços públicos de segurança pública, sem quebrar vidraças em vão numa experiência de poder direto efetivo “nunca antes tentada neste país” .

    Com esperanças,

    Áurea Lúcia

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