Violência nas favelas: Uma questão de política pública, não de polícia. Entrevista com Mário Simão
Rio de Janeiro, 02/07/2013 – Movimentos sociais protestam, em frente à favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, e na Avenida Brasil, contra ação da tropa do Bope na comunidade em junho, que resultou na morte de 10 pessoas. Foto de Tomaz Silva/ABr
“Na semana passada a fala do secretário de segurança do Rio de Janeiro foi técnica, dizendo que a ação da polícia é inevitável, porque ela está em permanente operação para eliminar ou prender os possíveis criminosos. A avaliação da polícia é de que se trata de uma operação recorrente que continuará acontecendo”, lamenta o diretor do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
Confira a entrevista.
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Explicar o conflito entre o Batalhão de Operações Policiais Especiais – Bope/RJ e os moradores do Complexo da Maré, na semana passada, é “apresentar uma prática recorrente da ação da polícia em relação às favelas”, aponta Mário Simão em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone, na qual esclarece as razões do confronto que culminou na morte de dez pessoas. Na avaliação dele, “a cultura da polícia nos territórios populares é entrar numa ação militarizada, ostensiva, brutal, o que gera a morte de muitas pessoas. Eles entram com o caveirão, com o aparato policial grande, fortemente armados, entram nas casas sem autorização, abordam os moradores como se estes fossem potenciais criminosos ou coniventes com o crime. É uma ação que usa a força de forma desproporcional”.
Geógrafo do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, Simão assinala que as Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs inauguram “outra lógica de atuação do Estado nesses territórios”. Entretanto, acentua, não é possível permitir que “em alguns territórios, em nome dos grandes eventos que irão acontecer na cidade, a polícia haja de uma forma e, num conjunto de outras favelas e territórios, continue matando e agindo como age no Complexo da Maré, que não é pacificada”. E acrescenta: “Apesar de a política das UPPs partir de outra lógica, ela carece de qualificação, porque a ação das UPPs está restrita a uns 30 territórios, sobretudo nas áreas mais valorizadas, como em Jacarepaguá, na Cidade do Deus”.
Mário Pires Simão é geógrafo, graduado pela Universidade Federal Fluminense – UFF, e diretor do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as características do Complexo da Maré?
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Mário Pires Simão – O Complexo da Maré é o maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro. Segundo o IBGE, são cerca de 130 mil moradores e 17 comunidades, a grande maioria delas em área plana. O Complexo tem uma especificidade interessante, porque está localizado e cortado por três vias muito importantes da cidade: de um lado, a Avenida Brasil, do outro, a Linha Amarela e, do outro, a Linha Vermelha. Isso porque ele está localizado na zona da Leopoldina (Zona Norte). É um território que tem muitas intervenções públicas, não dá para negar. Nova Maré, Nova Holanda, Vila do João, Vila do Pinheiro, são todos conjuntos habitacionais construídos pela ação pública, que depois sofreram um processo de favelização.
No Complexo da Maré tem uma quantidade de habitantes muito significativa por km², a densidade é muito grande e não tem equipamento de lazer, equipamento cultural que, de fato, possa atender às demandas dessa população. O território ainda tem uma população com poder aquisitivo mais baixo. Os indicadores socioeconômicos são baixíssimos em relação a outras partes da cidade.
O Complexo da Maré ainda não foi pacificado, mas há grupos criminosos que dominam os territórios, como o Comando Vermelho, o Terceiro Comando, além de indícios de grupos de milícias em algumas partes. Então, é um território bem diverso, bem complexo para que a ação pública atue.
IHU On-Line – Pode nos explicar quais as razões do conflito entre o Batalhão de Operações Especiais – Bope da Polícia Militar do Rio de Janeiro e moradores da favela Nova Holanda, que resultou na morte de dez pessoas?
Mário Pires Simão – Explicar esse conflito é apresentar uma prática recorrente da ação da polícia em relação às favelas. Na semana passada aconteceu uma incursão policial por conta das manifestações que estavam acontecendo em Bom Sucesso, onde ocorreram furtos por possíveis marginais na Av. Brasil, e a polícia entrou em confronto com esses grupos, mas essa ação gerou a morte de um sargento do Bope. No dia seguinte a polícia entrou numa prática muito comum de encontrar aqueles que podem ter praticado a morte desse policial. A cultura da polícia nos territórios populares é entrar numa ação militarizada, ostensiva, brutal, o que gera a morte de muitas pessoas. Eles entram com o caveirão, com o aparato policial grande, fortemente armados, entram nas casas sem autorização, abordam os moradores como se estes fossem potenciais criminosos ou coniventes com o crime. É uma ação que usa a força de forma desproporcional.
Nossa principal manifestação, apontada no ato ecumênico ontem, é lutar por um Estado que não seja tão violento e não provoque essas mortes. O ato que realizamos foi uma iniciativa de um conjunto de organizações do Complexo da Maré, exatamente nessa perspectiva de questionar, com uma ação pacífica, a morte dos nove moradores e a morte do policial. Com esse ato, queremos perguntar quem responde por essas mortes, além do governador e do secretário de segurança pública.
IHU On-Line – Como o governo do Rio de Janeiro se pronunciou diante dessas mortes?
Mário Pires Simão – Na semana passada a fala do secretário de segurança foi técnica, dizendo que a ação da polícia é inevitável, porque ela está em permanente operação para eliminar ou prender os possíveis criminosos. A avaliação da polícia é de que se trata de uma operação recorrente que continuará acontecendo. Não se pede desculpa pelas mortes ocasionadas nessas operações, e não há nenhuma atitude de reconhecer ações brutais como essa, que gerou dez mortes pelo Estado. Pelo contrário, ele se utiliza de um discurso de que está trazendo a tranquilidade e a pacificação para a população, mas é um Estado extremamente violento, porque não consegue reconhecer esses moradores como sujeitos de direitos. Então, a vida dessas pessoas não tem valor, porque a ação policial vai varrendo esses territórios, como se eles fossem dominados por uma população marginal.
IHU On-Line – Há uma mudança na atuação da polícia nas favelas por conta da Copa das Confederações e a visita do Papa ao Brasil neste ano? Como e em quais favelas a polícia atua durante a realização desses eventos?
Mário Pires Simão – Hoje no Rio de Janeiro tem o discurso da pacificação das favelas com a instalação das UPPs, o que inaugura outra lógica de atuação do Estado nesses territórios. O que não aceitamos é que se permita que em alguns territórios, em nome dos grandes eventos que irão acontecer na cidade, a polícia haja de uma forma e, num conjunto de outras favelas e territórios, continue matando e agindo como age no Complexo da Maré, que não é pacificada. A polícia tem demonstrado incapacidade de lidar com a manifestação das pessoas na rua. Então, efetivamente, ou se reconhecem a possibilidade e o direito de as pessoas ocuparem o espaço público, de buscarem caminhos mais diretos para se fazerem representadas, colocando-se a polícia para proteger os cidadãos, ou vamos continuar tendo confrontos na rua, porque infelizmente a polícia é militarizada e não atua para proteger.
Apesar de a política das UPPs partir de outra lógica, ela carece de qualificação, porque a ação das UPPs está restrita a uns 30 territórios, sobretudo nas áreas mais valorizadas, como em Jacarepaguá, na Cidade do Deus. Entendemos que o Estado precisa retomar o controle desses territórios, mas não a partir de uma ordem que deslegitima os moradores e desconheça as favelas como patrimônios das cidades. Mas uma ordem que reconheça e que tente construir uma política pública voltada para qualificar esses espaços e para construir uma cidade que reconheça essas diferentes realidades.
IHU On-Line – Cinco anos após a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs no Rio de Janeiro, que avaliação é possível fazer? Elas trouxeram segurança pública para as favelas?
Mário Pires Simão – A instalação das UPPs é um caminho adotado pelo Estado que precisa de ajustes e de uma qualificação maior, porque o desafio que se tem em relação a esses territórios diz respeito aos demais investimentos que podem ser feitos, uma vez que há déficit de investimentos públicos e privados nesses locais. Então, há uma demanda por políticas públicas, sobretudo na área social, para que se possa fazer com que a população desses territórios também passe a acreditar que o Estado tem interesse em garantir e qualificar seus direitos. Esse reconhecimento vai ajudar a própria construção da política pública, ouvindo e dialogando com essas pessoas a partir das suas demandas, em vez de tentar conter ou controlar algumas áreas, ou de embelezar outras, a exemplo das obras que dão uma dimensão quase espetacular ao teleférico, que foi construído no Alemão e que está sendo construído na Providência, mas não considera as demandas reais desses moradores.
A pacificação que está em curso é fundamental, é indispensável, ela já marca uma mudança paradigmática em termos da ação da polícia nesses territórios. Porém, ela vai precisar avançar para outras áreas que a polícia não tem condições de dar conta. Não se trata de uma questão de polícia, mas de política pública de qualidade que tenha foco, que consiga ceder mais, que consiga permanecer e se consolidar nesses territórios.
IHU On-Line – Há previsão para instalação das UPPs no Complexo da Maré?
Mário Pires Simão – Previsão o governador não dá, mas disse que a UPP será instalada. Por outro lado, a Maré tem um conjunto de instituições muito atuantes, organizações da sociedade civil, como é o caso do Observatório e da Rede Luta pela Paz, que trabalham com os moradores e que, de certo modo, são interlocutores fundamentais no processo.
(Ecodebate, 05/07/2013) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
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