Primavera no outono – querendo entender os sinais dos tempos, artigo de Johannes Gierse
Manifestação na Avenida Paulista dia 20 de junho de 2013. Foto: Marcos Santos/USP Imagens
[EcoDebate] Outono é aquela estação do ciclo anual em que a natureza entra em estado de descanso, a folhagem e as temperaturas caem, a luminosidade diminui. Algo semelhante acontece na vida pessoal: a fase da terceira idade é o outono da vida. Também uma sociedade toda pode vivenciar um outono! Foi isto que aconteceu no Brasil: tudo parecia andando bem, “um país de todos”, em fase de progresso e prosperidade. As safras, os armazéns, as contas bancárias, os estádios, a economia em geral pareciam “cheios”. Muitos já pensaram consigo mesmo: “Meu caro, você possui um bom estoque, coma e beba, alegre-se!” (Lc 12,19). E com isso, a consciência crítica coletiva entrou no outono do descanso e da regressão tornando-se fria e pouco luminosa diante das mazelas políticas, econômicas, sociais e ambientais.
Puro engano! De repente surge a primavera que faz renascer a vida e a esperança: multidões manifestam um verdadeiro “levante social”! Motivo? O gigante acordou do pesadelo que o fez acreditar que a vida se restringisse ao pão e aos jogos. O gigante se dá conta que a vida é mais do que crescimento econômico, Bolsa Família, Minha Casa – Minha Vida, Copa e Neymar. A nota da CNBB diz que “as manifestações destes dias mostram que os brasileiros não estão dormindo em ‘berço esplêndido’”.
Mudanças esperadas há 10 anos e nunca cumpridas estouraram numa santa insatisfação generalizada e revelam, ao mesmo tempo, a vontade de transformação como está escrita nos cartazes: Desculpem o transtorno, estamos mudando o Brasil. Na verdade, o outono cronológico e histórico, às vésperas do inverno (cronológico e histórico) traz à tona diversas primaveras: das manifestações populares como “nunca se viu na história deste país”; da geração jovem; dos valores esquecidos como cidadania, liberdade, democracia, união, justiça e paz; da força mobilizadora das redes sociais.
Os atores principais da revolta popular são as juventudes de todas as classes sociais: estudantes, universitários, (des)empregados. A maioria delas conhece o “Fora Collor” só pelos livros de história ou pelo ouvir-falar da geração dos caras pintados. Mudam a maneira de lutar: não admitem levantar bandeiras partidárias, pois parecem oportunistas e representam apenas uma parte do povo (partido) e não “o povo” que neste momento se sente um só. O grito de guerra dos jovens é uníssono. Donde vem essa consciência crítica que não suporta mais a inércia e a alienação? Dos pais, das escolas e universidades, das Igrejas, da mídia? Talvez! Brota de dentro deles/as mesmos: O Espírito sopra onde quer, você não sabe de onde ele vem… (cf. Jo 3,8).
Deve-se ressaltar a importância das redes sociais na organização e socialização das manifestações. Sem dúvida alguma, constituiu-se a 5º força da democracia que supera em poder os três poderes tradicionais – legislativo, executivo, judiciário – e o 4º poder, a grande mídia. Estes perderam definitivamente seu domínio, o cabresto, pois a nova tecnologia permite que os cidadãos (os eleitores) articulam-se livremente para fazer pressão a qualquer momento, não somente no dia da eleição.
Faz-se mister refletir atenciosamente e distinguir os gritos das manifestações. Trata-se de um caldeirão de gritos, porém, são três “volumes” distintos que podem ser ouvidos: (1) os de volume altíssimo que vêm dos vândalos e baderneiros; (2) os de volume médio que vêm das legítimas reivindicações dos cidadãos pacíficos; (3) os de volume bem baixinho e que ainda não foram ouvidos devidamente.
Ouçamos primeiramente os gritos da multidão dos manifestantes que são mais fáceis a serem identificados e entendidos (conforme o Mapa dos protestes, no dia 20/06 os números oficiais e comunicados deram mais de 1.500.000 pessoas). A CNBB destaca na sua nota que são tantas desigualdades que causam essas mobilizações. Nós conhecemos pela mídia ou por ter vindo pra rua a enorme agenda das reivindicações e dos protestos contra as desigualdades. Tudo começou com os famosos 20 centavos do aumento de passagem, mas imediatamente outras insatisfações que irritam boa parte da população ganharam visibilidade: o transporte público; a corrupção (PEC 37); a auditoria das dívidas públicas e a prioridade orçamentária para saúde e educação, segurança, trabalho e reforma agrária; o aumento do custo de vida e as remoções forçadas de populações pobres nas cidades que sediarão a Copa; os altos gastos e dívidas públicas com Megaeventos enquanto os serviços públicos seguem em péssima situação; a defesa dos povos indígenas ameaçados de extermínio pelo agronegócio; os leilões do petróleo e do Pré-Sal; a mudança do atual modelo de desenvolvimento. Tudo isso e “tanta coisa errada que não cabe neste cartaz/artigo” é agora desafio político urgente para os Governos. Afinal, “como presidenta, eu tenho a obrigação tanto de ouvir a voz das ruas, como dialogar com todos os segmentos”, pronunciou-se em rede a Dilma; afinal, ela quer ser reeleita no ano que vem (será tão fácil como parecia antes?).
No entanto, os extremos dos gritos – o volume mais alto e o mais baixo dos protestos – são os que devem nos preocupar mais, pois é deles que dependerá o bom êxito da esperada primavera! Ouçamos o barulho dos vândalos! Quem imaginava que ao norte do sul do Brasil há tantos vândalos e baderneiros? Alias você sabia que o povo vândalo, um dos povos bárbaros, contribuiu com suas invasões e ataques para a queda do Império Romano? O mesmo pode acontecer aqui e agora! E se juntamos a essa imensa onda de hostilidade e destruição intencional do patrimônio público e privado às diversas formas de violência (a doméstica, no trânsito, assaltos e homicídios), constatamos que a cultura da morte tem proporções subestimadas por nós todos. Quem são estes vândalos? Filhos de classe média, moradores de rua, de favelas, usuários de drogas? Porque agem de forma tão irracional? Há outros interesses (políticos) que instigam essas formas de protestos? Partindo do pressuposto que a pessoa humana por si mesma é boa, a sua agressividade é sinal da carência de atenção e amor. Em todo caso, xingar os vândalos de vândalos é como dizer que a droga é uma droga. E acreditar que a repressão – também violenta e às vezes arbitrária – pela Polícia Militar e/ou Força Nacional vai solucionar este problemão social é um grande engano. Todos juntos, políticas públicas, sociedade civil e uma igreja missionária devem aproximar-se mais deste submundo das nossas metrópoles. – Diga-se de passagem, que a raiz principal das mazelas urbanas origina-se na falta de uma verdadeira e abrangente Reforma Agrária.
Ouçamos, enfim, o protesto de uma manifestante que, embora não tenha participado das passeatas nestes dias, grita há muito tempo e por toda parte, mas são poucos os que lhe dão ouvido. Ela, igual aos seres humanos, está insatisfeita como está sendo explorada e maltratada pelo mesmo sistema econômico que gera desigualdades sociais. Ela sofre as mazelas da injustiça ambiental: a natureza, a criação, que sustenta a vida dos brasileiros e das brasileiras! Por isso, ela também “vem pra rua” para protestar a sua maneira. As mudanças climáticas – iguais aos vândalos que são violentos e destroem tudo – estão nas ruas em forma de enchentes, deslizamentos, tornados, carro pipa que leva água às ruas nas cidades nordestinas. – Portanto, os novos sujeitos da história brasileira, aqueles que “não estão mais na arquibancada, estão virando o jogo”, fazem bem em incorporar também estes tipos de grito na sua luta.
O futuro das manifestações? Não sabemos qual estação seguirá à primavera no outono, se é verão ou inverno. Por hora todos gostam de praticar este ato de cidadania que jazia no fundo do coração. Ainda que as passeatas não passem a ser um imenso fogo de palha, hoje sabemos que o fogo da mobilização está sempre aceso por debaixo das cinzas: basta um pequeno grupo gritar ou postar “Vem Pra Rua” e o mundo não é mais o mesmo.
As manifestações em massa nasceram da indignação com a má qualidade de vida, especificamente das políticas públicos. Nós todos almejamos uma vida de boa qualidade e lutamos por ela. Mas, em quê ela consiste e quais os meios para adquiri-la? Indicamos alguns aspectos que consideramos relevantes para que as mudanças esperadas tenham bom êxito:
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Participação e Testemunho: Quem denuncia descasos ou reivindica melhorias também tem que participar ativamente na vida pessoal, social e política. É através do testemunho que uma justa causa se reveste de credibilidade.
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Valores que norteiam:“A presença do povo nas ruas testemunha que é na prática de valores como a solidariedade e o serviço gratuito ao outro que encontramos o sentido do existir”, afirmam os bispos na sua nota. Acrescentamos outro valor “sina qua”, sem o qual nada vai dar certo: se há tanta coisa errada é por falta da verdade.
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A vida (Deus) em primeiro lugar: Sendo verdadeiros temos que reconhecer que o deus dinheiro, o deus capital lucrativo, é a força e o interesse determinante em tudo. Pelo contrário, a referência do nosso querer e agir tem que ser o bem comum, o cuidado da vida, a dignidade humana.
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Menos é mais: Estando na contramão da lógica capitalista-consumista precisamos nos convencer que somente a “cultura do menos” (menos consumo de bens, energia, agrotóxicos, desperdício etc.) e, portanto, um estilo de vida mais simples garantem mais qualidade, mais sustentabilidade. Crescimento quantitativo ilimitado é ficção.
Se há pouco tempo atrás, a seleção brasileira encontrava-se num outono, desacreditada na sua capacidade de conquistar um título, e de repente celebra uma primavera dando um show de bola daquele jeito que nos encanta, porque o povo todo não seria capaz realizar algo semelhante? Além da Copa das Confederações, da Copa 2014, das Olimpíadas e da JMJ o Brasil tem muito mais a ganhar!
Resta, ao final, perguntar como as Igrejas se posicionam diante dessa mudança de estações. Da Católica pode-se dizer que contribui significativamente com essa primavera ao ter lançado muitas sementes do Reino nas décadas passadas (opção pelos pobres, Fé e Política, Doutrina Social, Pastorais Sociais, cidadania, conscientização sociopolítica etc.), regadas com o sangue dos mártires. E agora, como vai aproveitar essa hora da graça?
Frei Johannes Gierse OFM, franciscano, mestrado em missiologia, atualmente em Bacabal, Maranhão.
EcoDebate, 26/06/2013
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Gostei,não havia analisado os manifestos por este prisma.Para mim,estás manifestaçòes foram um fenomeno social que deve ser analisado por direfentes areas cintificas.