Tráfico de pessoas, a escravidão de nossa época. Entrevista com Gabriella Bottani
“Não se pode falar em combate ao tráfico de pessoas sem falar de combate à pobreza e à desigualdade socioeconômica que existe no mundo. Tampouco sem enfrentar o problema da corrupção, e questionar a cultura que torna tudo mercadoria. Nesse sentido, a sociedade civil tem um papel fundamental”, afirma a representane da Rede Grito pela Vida.
“O tráfico de pessoas representa a escravidão de nossa época, a mercantilização da vida. O tráfico de pessoas desvela a ambiguidade e a violência de um modelo econômico de desenvolvimento que, em nome do lucro, considera tudo mercadoria: terra, água, mata, animais e até pessoas”, define Gabriella Bottani, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Italiana de nascimento, irmã Gabriella, como é conhecida no Brasil, é a representante da Rede Grito Pela Vida na Talitha Kum – Rede Internacional da Vida Religiosa contra o Tráfico de Pessoas.
A rede Talitha Kum iniciou seus trabalhos em 2004 e integra um projeto de enfrentamento ao tráfico de pessoas juntamente com a União Internacional das Superioras Gerais – UISG em parceria com a Organização Internacional das Migrações – OIM, que busca formar redes de religiosas capacitadas para a prevenção e o atendimento às vítimas do tráfico de pessoas, sobretudo para fins de exploração sexual. O primeiro curso de capacitação para tratar do tema foi há quase nove anos em Roma. Desde então mais de 650 mulheres participaram dos cursos e, atualmente, 21 redes atuam em 75 países em todas as partes do mundo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que representa o tráfico humano no âmbito mundial?
Gabriella Bottani – O tráfico de pessoas representa a escravidão de nossa época, a mercantilização da vida. O tráfico de pessoas desvela a ambiguidade e a violência de um modelo econômico de desenvolvimento que, em nome do lucro, considera tudo mercadoria: terra, água, mata, animais e até pessoas. Mundialmente o tráfico de pessoas movimenta grandes quantidades de dinheiro, sendo – junto com tráfico de drogas e armas – um dos três negócios ilícitos mais rentáveis. As principais vítimas pertencem aos grupos mais vulneráveis e discriminados: mulheres, crianças e adolescentes. As estatísticas publicadas no Relatório 2012 da UNODC (Escritório da Organização das Nações Unidas para o combate às drogas e ao crime) confirmam que as mulheres continuam sendo as principais vítimas do tráfico de pessoas representando 76% do total. Outro dado preocupante é o aumento significativo de crianças e adolescentes, principalmente meninas, que caem nas armadilhas dos traficantes de pessoas. A mesma fonte revelou que este grupo aumentou de 20% para 27% do total das vítimas.
Inquietação
Acredito que o tráfico de pessoas é uma denúncia e uma inquietação que deveria chegar a todos, e que traz para discussão e reflexão questionamentos antigos e novos: a questão de gênero, o racismo, a escravidão e a liberdade, a desigualdade econômica e social, o modelo de desenvolvimento e seu consequente impacto socioambiental, modelos culturais e religiosos, enfim tudo o que nos leva a desvendar as causas que sustentam esta grave violação dos direitos humanos. Se olharmos para o tráfico de pessoas e escutássemos o grito de dor de tantas vítimas, teríamos a possibilidade de tomar cada vez mais consciência de situações e atitudes que tornam corpos e vida mercadoria, objeto de lucro e de prazer.
IHU On-Line – De que maneira a experiência da migração internacional de pessoas e o tráfico humano estão relacionados?
Gabriella Bottani – Antes de responder apresento as definições da Convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional, que define o tráfico de pessoas e o de migrantes, documento assinado pela maioria dos países:
“A expressão ‘tráfico de pessoas’ significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.”
Tráfico de migrantes: “A promoção, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, um beneficio financeiro ou outro beneficio material, da entrada ilegal de uma pessoa em um Estado – parte do qual essa pessoa não seja nacional ou residente permanente.”
Tráfico de pessoas e tráfico de migrantes
Falar de tráfico transnacional de pessoas e migração é uma questão delicada, pois cada vez mais torna-se difícil traçar linhas claras de demarcação entre tráfico de pessoas e tráfico de migrantes. É urgente pensar nas causas e dimensões dos movimentos migratórios em nosso tempo, sobretudo das grandes massas de migrantes sem documentos, que aumentaram tanto que pode se falar de um sexto continente flutuante.
Os grandes movimentos migratórios atuais são causados pela procura de uma vida melhor, devida ao grande desequilíbrio econômico mundial entre nações, instabilidade política e social e problemas ambientais. As motivações que levam muitas pessoas, e cada vez mais mulheres, a sair de seus países são muitas vezes as mesmas que levam a aceitar as propostas dos aliciadores, os quais oferecem a possibilidade de realizar o sonho de vida melhor em uma outra região do mundo ou do próprio país. “Aceitei a proposta, pois achava que tudo era melhor do que na minha terra!”, estas palavras, em meu parecer, resumem muito bem este conceito.
Embora tráfico de pessoas e de migrantes seja definido de formas diferentes, na prática, muitas vezes estas realidades vêm se misturando e confundindo, como é o exemplo dos sequestros de migrantes no México ou a exploração sexual das mulheres. Nosso trabalho enquanto religiosas é de chamar a atenção para que o tráfico de pessoas não seja usado para justificar políticas migratórias protecionistas, que desconsiderem a realidade do indivíduo, sua dignidade e direitos, que consideram primariamente a ilegalidade do ato migratório.
IHU On-Line – Tendo em conta a participação da senhora nos encontros da Rede Internacional Talitha Kum e a experiência neste trabalho, que países estão mais vulneráveis ao tráfico e à exploração sexual?
Gabriella Bottani – São as regiões do mundo marcadas pela pobreza, instabilidade política e desigualdade econômica. Países que não oferecem possibilidade de trabalho, educação e perspectivas de futuro para os jovens. Os principais países de origem de pessoas traficadas encontram-se no sudeste asiático, que continuam denunciando o maior fluxo de mulheres traficadas transnacionalmente; seguem-se os países da África Subsariana, do Leste Europeu, da América Latina e Caribe.
È interessante observar como aumenta o número de pessoas traficadas de regiões mais pobres para outras de destino mais ricas e próximas, tais como são os casos da exploração sexual de mulheres do Leste Europeu na Europa Ocidental; da América Central e do Caribe nos Estados Unidos; do Norte da África no Oriente Médio; de Moçambique na África do Sul; e do Brasil – especificamente do Pará e Amapá – exploradas sexualmente no Suriname e na Guiana Francesa.
Um fator que influi mundialmente no movimento das pessoas traficadas para serem exploradas sexualmente é a demanda, isto é, os gostos e as escolhas de quem adquire serviços sexuais a pagamento. Outro elemento que temos que considerar é que vem aumentando o número de pessoas traficadas internamente. As estatísticas acima da UNODC apontam que, mundialmente, uma de cada quatro vítimas do tráfico de pessoas é explorada em seu país.
IHU On-Line – Qual o perfil dos países para os quais as pessoas traficadas são levadas?
Gabriella Bottani – Os países de destino são aqueles onde há demanda, isto é, os países e regiões mais ricos: Estados Unidos, Europa Ocidental, Austrália, Japão, Oriente Médio e emergentes como a África do Sul e, até mesmo, o Brasil. Pessoas são traficadas também em outros países, seguindo as rotas do turismo sexual, da exploração sexual de crianças e adolescentes. Merecem atenção particular as localidades com grande concentração de demanda de sexo a pagamento, tais como presença de militares, canteiros para a construções de grandes obras, organização de megaeventos etc.
IHU On-Line – Para além da questão da prostituição, que outras atividades de exploração estão relacionadas ao tráfico humano?
Gabriella Bottani – Lembrando que a prostituição é uma das formas de exploração sexual, pessoas são traficadas por serem exploradas no trabalho: nas fábricas, no trabalho doméstico e no âmbito rural. Tal é o caso dos cortadores de cana no Brasil e de crianças traficadas pela colheita do cacau na Costa do Marfim. Outras formas de exploração são para a remoção de órgãos, adoções ilegais, casamentos forçados e tráfico de droga.
IHU On-Line – Que desafios se impõem ao combate ao tráfico de pessoas?
Gabriella Bottani – Acredito que o maior desafio é fazer com que as pessoas não fiquem indiferentesdiante desta grave violação dos direitos humanos. Temos que enxergar as causas que levam ao tráfico de pessoas para podê-lo erradicar. Para isso precisa fazer um trabalho preventivo capilar e transformador, seja na perspectiva da oferta ou da demanda. Isso significa quebrar o silêncio para nos deixar tocar pela dor e pelo sofrimento que o tráfico de pessoas é para a humanidade toda, e não somente para as vítimas.
IHU On-Line – Como os Estados têm se organizados na perspectiva de inibir esta prática?
Gabriella Bottani – Estamos caminhando rumo à liberdade, um caminho ainda muito longe, que precisa de compromisso. No global, o enfrentamento ao tráfico de pessoas tem ainda uma visão redutiva, que leva a uma ação principalmente repressiva do crime organizado. Como já tive a oportunidade de dizer, acredito que esta prática pode ser inibida com um trabalho de prevenção que mire à remoção das causas. Este é o verdadeiro caminho que pode ajudar a humanidade a readquirir sua dignidade e liberdade. Não se pode falar em combate ao tráfico de pessoas sem falar de combate à pobreza e à desigualdade socioeconômica que existe no mundo. Tampouco sem enfrentar o problema da corrupção, e questionar a cultura que torna tudo mercadoria. Nesse sentido, a sociedade civil tem um papel fundamental.
IHU On-Line – Há quanto tempo a Rede Talitha Kum tem se articulado no combate ao tráfico de pessoas, quais foram os avanços e quais são os limites do trabalho?
Gabriella Bottani – Talitha Kum é a rede da vida consagrada no enfrentamento ao tráfico de pessoas; trata-se de uma rede de redes. É o resultado de um projeto da União Internacional das Superioras Gerais – UISG em parceria com a Organização Internacional das Migrações – OIM, que busca formar redes de religiosas capacitadas para a prevenção e o atendimento às vítimas do tráfico de pessoas, sobretudo para fins de exploração sexual. O projeto começou em 2004 com a realização, em Roma, do primeiro curso. Até hoje foram realizados 16 cursos com a participação de mais de 650 mulheres consagradas.
Atualmente Talitha Kum é composta por 21 redes, ativas em 75 países nos cinco continentes. A principal articulação da Vida Consagrada comprometida no enfrentamento ao tráfico de pessoas é local, junto com a sociedade civil, organizações eclesiais, governamentais e não governamentais.
Internacionalmente começamos a nos articular em 2010; estamos ainda no começo, procurando caminhos para superar as distâncias e as dificuldades de comunicação. A atuação em Rede da Vida Consagrada foi certamente um avanço que juntou forças no enfrentamento ao tráfico de pessoas, pois, diante da rede de morte das organizações criminosas, muito bem organizadas e articuladas internacionalmente – como são as responsáveis pelo tráfico de pessoas –, uma rede de vida igualmente bem organizada e articulada, que conecta países de origem, transito e destino, disposta em partilhar recursos e forças, pode contribuir de forma eficaz na prevenção ao tráfico de pessoas.
O trabalho em rede nos deu a força e a criatividade para adentrar, a partir de pontos de vista diferentes, nas profundidades escuras de nossa época, em suas contradições, modelos de desenvolvimento, desigualdades, tendências e abordar a realidade em sua multidimensionalidade, visto que as causas são simultaneamente econômicas, psicológicas, mitológicas e sociológicas. Isso fez com que nosso trabalho na prevenção e no atendimento às vítimas avançasse em qualidade.
(Ecodebate, 18/04/2013) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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