A Arquitetura da destruição no rio Tapajós
Por Carlos Juliano Barros, de A Pública
Quando decidiu encarar de carro os 3.338 quilômetros que separam o Rio de Janeiro do município de Itaituba, no oeste do Pará, o geólogo Juan Doblas – especialista em imagens de satélite – nem imaginava que daria uma contribuição e tanto à biologia da Amazônia. Enquanto dirigia pelo trecho da BR 163 que atravessa o Parque Nacional do Jamanxim, uma das doze unidades federais de conservação ambiental que protegem essa parte da floresta alimentada pela bacia do rio Tapajós, ele se deparou com uma macaca que, atordoada pelo barulho do automóvel, abandonou em plena estrada o filhote que carregava.
Depois de deixar o pequeno animal em uma árvore, permitindo que ele fosse resgatado pela mãe, Doblas resolveu filmar e tirar fotos do reencontro. “Quando cheguei a Itaituba, mostrei as imagens para um amigo do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) especialista em macacos”, conta o geólogo. A surpresa de ambos não poderia ser maior.
Tratava-se de uma espécie em perigo, típica do estado do Amazonas, mas que, supõe-se, havia se deslocado para essa parte do Pará justamente por encontrar na floresta intocada do Tapajós um verdadeiro refúgio. “Foi um fato casual que mostrou dados completamente novos sobre a distribuição de espécies em extinção na Amazônia”, explica Doblas, que trabalha com geoprocessamento no Instituto Socioambiental (ISA), uma das principais organizações ambientalistas do país.
O geólogo narra esse episódio justamente para ilustrar a incrível – mas, em boa parte, desconhecida – biodiversidade que pode ser duramente golpeada pela construção de um complexo de hidrelétricas nos rios Tapajós e no seu afluente Jamanxim. O potencial levantado para essa bacia hidrográfica localizada no oeste do Pará comporta até sete usinas capazes de produzir no total cerca de 14 mil Megawatts (MW) – potência equivalente à da binacional Itaipu.
De acordo com o Plano Decenal de Expansão de Energia 2021, documento produzido pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao Ministério de Minas e Energia (MME), ao menos duas delas devem entrar em funcionamento até o final desta década: São Luiz do Tapajós e Jatobá.
Se efetivamente sair do papel, o complexo hidrelétrico pode trazer impactos ambientais inimagináveis para os 850 quilômetros de águas de tons azuis e verdes do Tapajós, guarnecido por dezenas de reservas florestais e terras indígenas. Sem sombra de dúvida, trata-se de uma das mais belas partes da Amazônia. Tanto é assim que um dos destinos turísticos mais conhecidos da floresta, as paradisíacas praias de Alter do Chão, ficam no município de Santarém, na foz do rio.
Como nem poderia deixar de ser, a construção desse conjunto de hidrelétricas não vai acarretar problemas apenas ao meio ambiente. Segundo a Eletronorte, subsidiária da estatal Eletrobras responsável pelo inventário das informações acerca das usinas do Tapajós, pelo menos 2,3 mil pessoas de 32 comunidades ribeirinhas serão diretamente afetadas se os sete empreendimentos forem levados a cabo. Outras 16 aldeias indígenas da etnia munduruku também terão parte de seus territórios inundada pelos reservatórios que serão formados pelas barragens.
Das usinas previstas no complexo hidrelétrico, duas delas – São Luiz do Tapajós e Jatobá, ambas no rio Tapajós – já tiveram seu processo de licenciamento ambiental iniciado no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Por enquanto, o custo das duas é estimado em R$ 23 bilhões, com verba carimbada pela segunda edição do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2).
São Luiz do Tapajós, a maior do complexo, com capacidade para 6.133 MW, é a que está em fase mais adiantada. A obra mexe em um cenário tão delicado que, mesmo antes de ser concluído seu Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), já vem provocando uma verdadeira batalha nos tribunais. No último mês de novembro, a Justiça Federal suspendeu, em primeira instância, o licenciamento da hidrelétrica por conta de uma ação movida pelo Ministério Público Federal (MPF) de Santarém (PA).
“O pedido de suspensão se baseia em dois motivos. Em primeiro lugar, não foi realizada uma avaliação ambiental integrada. É preciso analisar o impacto conjunto de todas as usinas previstas para a bacia do Tapajós, e não o de apenas uma delas isoladamente”, explica Fernando Antônio Oliveira Júnior, procurador do MPF. “Além disso, não foi feita uma consulta prévia às populações indígenas que vão ser afetadas pelos empreendimentos. Essa consulta tem que ser anterior a qualquer tipo de autorização.”
O Tapajós é considerado a última grande fronteira energética da Amazônia. Por enquanto, é o único dos quatro grandes afluentes da margem direita do Amazonas que não foi represado para a produção de eletricidade em larga escala. Na década de 1970, os militares barraram o rio Tocantins para fazer a usina de Tucuruí, aquela que hoje é segunda maior hidrelétrica do Brasil em funcionamento, atrás apenas de Itaipu. Com a chegada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Palácio do Planalto e a criação do PAC, foram erguidas Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, além de Belo Monte, no Xingu.
“Os governos de Lula e de Dilma Roussef estão decididos a transformar o Brasil na terceira maior economia do mundo à custa da nossa floresta”, critica o Padre Edilberto Sena, do Movimento Tapajós Vivo, fórum que reúne diversas organizações de defesa do meio ambiente e dos direitos das populações locais.
Por encomenda da ONG Conservação Internacional, Wilson Cabral, pesquisador e professor do Instituto de Tecnologia de Aeronáutica (ITA), está produzindo um estudo que calcula, na ponta do lápis, os reais custos econômicos, sociais e ambientais envolvidos na construção das usinas do Tapajós.
Em 2010, o professor produziu uma pesquisa semelhante sobre Belo Monte e concluiu que o empreendimento tinha mais de 90% de chance de inviabilidade. Segundo as complexas fórmulas matemáticas utilizadas pelo professor, o valor do prejuízo variava em um intervalo de US$ 7 milhões a US$ 8 bilhões.
O novo estudo está em fase final e deve ser divulgado no começo de 2013. Por essa razão, ele evita falar de valores. Mas, ao que tudo indica, o Tapajós segue a mesma trilha de Belo Monte. “A análise está apontando inviabilidade para todas as usinas e, consequentemente, para todo o complexo”, afirma Cabral. “Não é preciso empreender hidrelétricas no Tapajós para atender a demanda energética brasileira, desde que se invista em outras fontes e também se trabalhe a eficiência do consumo da energia que já é produzida.”
Arquitetura da destruição
Para acelerar o licenciamento das duas primeiras usinas do complexo, São Luiz do Tapajós e Jatobá, o governo federal precisou recorrer a um verdadeiro malabarismo legal. Em janeiro, a presidente Dilma Roussef editou a Medida Provisória 558, convertida em lei no mês de junho, pela qual reduziu as áreas de cinco Unidades de Conservação (UCs) ambiental na entorno do rio Tapajós.
Em uma canetada, 75 mil hectares de florestas intocadas – que podem ser inundados com a formação dos lagos artificias das duas barragens – ficaram sem proteção do dia para noite. O governo argumenta que, sem essa medida, seria impossível iniciar o processo de licenciamento ambiental no Ibama.
À primeira vista, a área “desafetada”, como se diz tecnicamente, parece não ser tão expressiva assim. Tanto é que o governo se defende das críticas argumentando que, para a construção das usinas de São Luiz do Tapajós e Jatobá, apenas 2% da dimensão total das reservas vão de fato para baixo d’água. Mas, neste caso, vale o popular ditado de que tamanho não é documento. “A parte que será afetada nas unidades de conservação é o coração, a parte mais importante das reservas, justamente por conta da proximidade com o rio”, explica Juan Doblas, do ISA.
A Medida Provisória posteriormente convertida em lei provocou uma celeuma no ICMBio, responsável pela gestão das reservas ambientais do Brasil. Em julho, técnicos do órgão federal lotados no escritório de Itaituba, responsáveis por 12 unidades de conservação na bacia do Tapajós, lançaram um manifesto público criticando duramente não só a decisão do governo federal de reduzir a área de proteção ambiental, mas sobretudo a forma atropelada com que ela foi tomada.
“Os registros feitos até o momento apontam altíssima biodiversidade, com considerável taxa de endemismo e grande representatividade de espécies ameaçadas de extinção”, diz o documento. “Do ponto de vista da legalidade, denunciamos a desafetação das unidades realizada primeiramente por medida provisória com objetivo único de dar celeridade ao processo em detrimento da realização de estudos comprometidos com a destinação original dessas áreas: proteção e conservação da biodiversidade.”
O MPF também está questionando judicialmente a via legal utilizada pelo governo federal para reduzir a área das UCs na bacia do Tapajós, através de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). “O principal aspecto é formal”, explica o procurador Felipe Bogado. “A área de uma Unidade de Conservação não pode ser reduzida por meio de uma lei complementar que substitui uma Medida Provisória, como fez o governo”, acrescenta. Até o momento, o Supremo Tribunal Federal (STF), que analisa o processo, não se pronunciou sobre o caso.
Tragédia anunciada, o simples anúncio da redução das áreas de preservação disparou automaticamente o gatilho da degradação dessa parte da Amazônia. “A região aqui é rica em minérios. Com a desafetação das áreas, está ocorrendo um aumento de pressão sobre a floresta, principalmente nessas áreas que não fazem mais parte das unidades de conservação”, explica Nilton Rascon, analista ambiental do ICMBio.
O crescimento da atividade de garimpos irregulares é perceptível a qualquer um que viaje pelo rio. No trecho de 400 quilômetros do Tapajós entre os municípios de Itaituba e Jacareacanga havia, até janeiro, cinco barcaças – chamadas de “escariantes” – fazendo garimpo diretamente no leito do rio. Com a desafetação das unidades de conservação, esse número pulou para impressionantes 35, em poucos meses deste ano. “O ICMBio precisa de mais fiscais na região. Ainda vêm muitos analistas de fora, de outros estados, para ajudar”, reconhece Rascon.
Impactos ambientais
A entrada do Parque Nacional (Parna) da Amazônia, primeira unidade de conservação desse tipo criada no país, em 1974, fica a pouco mais de uma hora de carro do centro de Itaituba. Para chegar até lá, é preciso encarar trechos de asfalto e de terra batida da BR 230, mais conhecida como Transamazônica, um dos projetos emblemáticos da ditadura militar. Se a barragem de São Luiz do Tapajós for construída, uma fração de 112 quilômetros da rodovia que corta o parque também será inundada. Até o momento, porém, nenhum representante do governo federal ou da Eletrobras veio a público para explicar como será feita a cirurgia para reconectar as pontas soltas da estrada.
E não é apenas uma parte da BR 230 que será alagada no Parna da Amazônia. Do principal mirante da reserva, aberto à visitação para turistas, é possível observar corredeiras formadas por um aglomerado de rochas encravado no meio do Tapajós. Digno de um cartão postal, esse trecho do rio não é protegido pelos órgãos ambientais apenas pelos seus atributos estéticos. Várias espécies de peixes aproveitam as corredeiras para fazer o épico ritual da piracema – a subida do rio necessária à sua reprodução.
Com a barragem de São Luiz do Tapajós, as corredeiras vão literalmente sumir do mapa, e a piracema será inviabilizada, trazendo consequências imprevisíveis. “A solução técnica é construir um tipo de escada para ajudar os peixes a subir o rio”, explica o biólogo Javan Lopes, servidor do ICMBio. “Porém, o ambiente da corredeira tem muito mais oxigênio. Então, mesmo que se construa a escada, os peixes podem morrer porque o oxigênio disponível na água diminui”, completa. Os técnicos do ICMBio não descartam uma verdadeira hecatombe ambiental: 90% das 400 espécies de peixes catalogadas no parque podem não resistir.
Nos últimos quatro anos, os gestores do Parna da Amazônia trabalharam continuamente no plano de manejo da unidade de conservação – levantamento meticuloso da fauna e da flora que, com a redução da área da reserva, será jogado literalmente na lata do lixo. Até o presente momento, foram registradas 390 espécies diferentes de aves. Entre os mamíferos catalogados, há animais que correm sério risco de extinção, como a onça-pintada, a onça-vermelha, o tamanduá-bandeira e a jaguatirica.
O destino de tamanha diversidade natural é objeto do EIA/Rima da usina de São Luiz do Tapajós, ainda em andamento. A estimativa inicial era que o estudo ficasse pronto até o final deste ano, já que o governo tinha planos de licitar a construção da hidrelétrica em 2013. Quando for finalizado, o documento vai possibilitar análises científicas mais refinadas sobre os impactos ambientais que podem de fato ocorrer. Mas o cronograma dificilmente será cumprido – ainda mais com a decisão judicial de novembro que suspendeu o licenciamento até que se realize uma avaliação integrada dos impactos gerados por todas as sete usinas previstas para os rios Tapajós e Jamanxim.
Não há dúvidas de que o complexo hidrelétrico vai reconfigurar a compleição natural do oeste do Pará. “Foram necessários milhares de anos para a criação de um equilíbrio ecológico entre as espécies, como a tartaruga e o tucunaré, que depende da subida e da descida dos rios”, explica Juan Doblas. “Essas barragens vão alterar completamente os ciclos de cheia e de seca não só dos rios Tapajós e Jamanxim, mas de toda a rede hidrográfica associada.”
Para entender como o fluxo do Tapajós se altera ao longo do ano, por exemplo, basta ir a Itaituba em duas épocas diferentes. A orla da cidade chega a alagar no período de cheia, que coincide com as chuvas do primeiro trimestre. Porém, na época da seca, intensificada a partir do segundo semestre, aparecem muitas praias nas margens do rio.
Os impactos ambientais provocados pelas usinas do Tapajós podem ser mais graves até do que os gerados por Belo Monte – isso, claro, se o Estado brasileiro mantiver sua palavra e não construir novas usinas no Xingu. Uma breve comparação fornece pistas do que está por vir: o lago artificial a ser formado com a barragem do rio Xingu no município de Altamira terá 510 quilômetros quadrados. Só na barragem de São Luiz do Tapajós, serão alagados 722 quilômetros quadrados – metade da área do município de São Paulo. No Xingu, o trecho do rio a ser barrado terá 200 quilômetros de comprimento. No Tapajós, será duas vezes e meia maior. O Jamanxim, com três usinas, vai se converter numa sucessão de lagoas.
Outra pulga atrás da orelha dos ambientalistas diz respeito à relação entre o barrento rio Amazonas e o esverdeado Tapajós, que se encontram – mas não se misturam – no município de Santarém. A preocupação é com uma possível invasão das águas do Amazonas sobre as do Tapajós, o que significaria a ruína turística do balneário de Alter do Chão, por exemplo. “Se eu falar isso para um engenheiro da Eletrobras, ele vai rir na minha cara”, afirma Doblas. “Mas eu tenho questionado doutores em hidrologia, e eles me disseram que essa possibilidade tem que ser estudada. É preciso fazer um modelo no computador. É provável que isso aconteça? Acho que não. É possível? Sim.”
É justamente para dirimir essas dúvidas – e separar o que é mera especulação do que é risco de fato – que o Ministério Público Federal acionou a Justiça para cobrar a realização de uma Avaliação Ambiental Integrada (AAI) e de uma Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) dos impactos gerados por todas as usinas previstas no complexo hidrelétrico, e não apenas por São Luiz do Tapajós. “É uma postura preventiva do MPF. Queremos apenas que os marcos legais sejam respeitados”, explica o procurador Fernando Antônio Oliveira Júnior.
Por meio de nota emitida por sua assessoria de imprensa, a Eletrobras – empreendedora das usinas de São Luiz do Tapajós e de Jatobá – sustenta que a avaliação ambiental integrada “não é exigência legal para emissão das licenças ambientais”. A nota afirma também que a metodologia da AAI foi construída após a conclusão dos estudos do inventário do potencial hidrelétrico de toda a bacia do Tapajós.
Em outras palavras, a estatal argumenta que não havia obrigatoriedade de proceder a essa avaliação integrada na época em que fez o inventário das usinas. Por fim, a nota informa que a empresa está contratando uma equipe para fazer a AAI, que fará parte “do conjunto de estudos para a viabilidade de São Luiz do Tapajós e Jatobá, o que demonstra o comprometimento dos mesmos com as melhores práticas ambientais”.
A Aneel também se manifestou por meio de nota emitida pela assessoria de imprensa. A agência defende a construção das usinas no Tapajós, com a justificativa de que a hidroeletricidade tem “muito menos impacto ambiental” que outra fontes térmicas à base de combustíveis fósseis.
O documento afirma ainda que “o licenciamento é o principal movimento para a resolução de conflitos socioambientais, tendo em vista que a elaboração do EIA/Rima e a realização de audiências públicas possibilitam o estabelecimento de condicionantes pelos órgãos ambientais”.
Energia para quem
Nos hotéis e restaurantes do centro de Itaituba ou nos trechos mais recônditos da floresta do entorno do Tapajós, é possível dar de cara com caminhonetes e técnicos de camisa polo azul a serviço da CNEC Engenharia. A empresa é a responsável pela realização dos estudos de viabilidade e do projeto técnico da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, mas também operou nas usinas de Belo Monte, no rio Xingu, e de Estreito, no rio Tocantins, além de diversos outros empreendimentos de porte na Amazônia.
Até janeiro de 2010, a CNEC – fundada em 1959 por engenheiros da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) – constituía o braço intelectual, por assim dizer, de uma das maiores empreiteiras do país: a Camargo Corrêa, responsável por algumas das obras de envergadura do PAC, como a hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira. Quase três anos atrás, porém, a empresa foi vendida por R$ 170 milhões para o grupo australiano WorleyParsons, uma das mais conhecidas consultorias de energia em todo o mundo.
Foram justamente os engenheiros da CNEC que, na década de 1980, mapearam os projetos de construção de usinas no rio Tapajós – e em quase todos os afluentes do rio Amazonas. Era ela quem municiava de informações e pareceres técnicos a Eletronorte, subsidiária da estatal Eletrobras responsável pelo aproveitamento do potencial hidrelétrico da região norte do país, desde o regime militar. “Naquela época, eu brincava dizendo que a Eletronorte era um escritório da Camargo Corrêa”, conta Arsênio Oswaldo Sevá Filho, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e grande conhecedor do sistema elétrico nacional.
A CNEC é o elo técnico do “cartel barrageiro” que, segundo o professor Sevá, se instalou no Brasil na época da ditadura e, desde então, não mais arredou pé do país, pressionando os governos brasileiros ao longo do tempo para a construção de grandes hidrelétricas. Nesse clube restritíssimo, figuram as principais empreiteiras brasileiras, que rateiam entre si o bolo das obras de construção civil – elas são apelidadas de “cinco irmãs” e congregam Camargo Corrêa, Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS e Queiroz Galvão.
Também participam do grupo as corporações internacionais que fornecem equipamentos de alta tecnologia para as usinas, como a alemã Siemens e a japonesa Toshiba. Fecham a sociedade as grandes mineradoras que não apenas consomem – mas também vendem – a energia produzida nos rios amazônicos, como a Vale e norteamericana Alcoa, por exemplo.
A verdade é que o Brasil é dos poucos países do mundo – ao lado da China, da Índia, da Turquia e do Congo – onde ainda existe espaço para tirar do papel projetos bilionários de hidrelétricas. Em tempos de crise econômica global, construir barragens nos rios da Amazônia é a verdadeira galinha dos ovos de ouro para players do capitalismo que atravessam sérias dificuldades para fechar grandes negócios.
“Estamos oferecendo à indústria internacional a continuidade dos negócios a longo prazo e a custo baixo”, analisa Sevá. “O governo brasileiro libera as licenças, mesmo que se destruam o meio ambiente e a vida das populações locais. Depois, garante o custo baixo da mão-de-obra e, principalmente, do dinheiro necessário às obras, porque coloca as empresas estatais, os fundos de pensão e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para alavancar o negócio.”
A usina de Belo Monte é o exemplo mais bem acabado desse fenômeno. Só o grupo Eletrobras e os fundos de pensão dos funcionários da Petrobras (Petros) e da Caixa Econômica Federal (Funcef) respondem, atualmente, por 70% da composição acionária do consórcio construtor da barragem. Em outras palavras, os riscos e os altíssimos investimentos inerentes à obra fizeram a iniciativa privada passar longe.
Para bancar o prejuízo, o governo tem aberto as torneiras do BNDES. Na última semana de novembro de 2012, o banco anunciou o maior financiamento de toda a sua história para a conclusão das obras da usina: R$ 22,5 bilhões a serem pagos em três décadas. Antes dessa operação, porém, o BNDES já havia feito empréstimos-ponte (de curto prazo) de R$ 2,9 bilhões para o consórcio construtor da hidrelétrica.
“O custo de produzir hidrelétrica na Amazônia é muito alto e incerto”, afirma Wilson Cabral, do ITA. “Todos os projetos geraram aditivos contratuais da ordem de pelo menos 25%”, alerta. No caso do Tapajós, a engenharia financeira para viabilizar a obra ainda não está traçada – até porque os R$ 23 bilhões previstos para as usinas de São Luiz do Tapajós e Jatobá no orçamento do PAC 2 não passam de estimativas. Mas, assim como aconteceu nas usinas dos rios Madeira e Xingu, não há dúvidas de que o tripé formado por Eletrobras, fundos de pensão e BNDES deve entrar na jogada.
Tampouco está decidido o futuro da eletricidade a ser gerada. Na página 80 do Plano Decenal de Expansão de Energia 2020, é possível ler com todas as letras que ela servirá integralmente para alimentar a demanda das regiões Sudeste e Centro-Oeste. Porém, não é demais lembrar que o Pará concentra a maior província mineral do planeta. Além do ouro, que hoje é explorado em mais de 2 mil garimpos ao longo do rio Tapajós, as novas usinas devem consolidar o estado como um grande polo de alumínio.
Atualmente, existem quatro grandes projetos de extração e beneficiamento de bauxita no Pará, envolvendo gigantes como as brasileiras Vale e Votorantim, a norteamericana Alcoa e a norueguesa Hydro. Uma das principais reclamações dessas indústrias – chamadas de eletrointensivas, por consumirem eletricidade em larga escala – é o preço da energia. O complexo hidrelétrico do Tapajós é uma dos caminhos para baratear os custos. “Os grupos que estão por trás, apoiando inclusive financeiramente a construção das usinas, são empresas de exploração de commodities minerais. Então, esses empreendimentos não vão equalizar a demanda de energia para o Sudeste. Eles são para empresas que estão se assentando na região Norte”, finaliza Cabral.
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EcoDebate, 11/12/2012
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