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O esvaziamento da discussão ecológica atual que não questiona o modelo econômico e de desenvolvimento

 

“A pergunta passa a ser ‘o que eu devo fazer para ajudar?’ (…) enquanto a questão principal deveria ser ‘contra quem e contra o quê eu devo lutar?'”
  • Vladimir Safatle faz parte de uma nova leva de intelectuais de esquerda que não se intimida diante da diversidade de questões trazidas pelo mundo contemporâneo. Nessa entrevista, o professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) mostra que a crise da democracia representativa pode ser a chave para compreender melhor fatos que à primeira vista não estão relacionados, desvelando mecanismos que ligam islandeses a pescadores brasileiros, ecologistas a jovens que voltam a reivindicar as ruas como espaço do fazer político. Um dos autores de ‘Occupy’ (Boitempo, 2012), Safatle defende que vivemos um momento em que a crítica da democracia, longe de balizar o totalitarismo, reacende a capacidade de reinvenção democrática na perspectiva da soberania popular. Com o lançamento de ‘A esquerda que não teme dizer seu nome’ (Três Estrelas, 2012), o filósofo propõe a urgência da saída do “cômodo e depressivo fatalismo”, que, desde a queda do muro de Berlim, alimenta a falsa impressão de que nenhuma ruptura radical está na pauta do campo político.

    No seu livro, o senhor defende que falta à esquerda mostrar o que é inegociável. Abandonar o pragmatismo, superar os impasses da ‘governabilidade’, dentre outros elementos, seriam caminhos para isso. Em contrapartida, paira uma dúvida sobre os próprios partidos, sindicatos e estruturas semelhantes: será que serão capazes de se transformar? Os jovens que ocupam as ruas do mundo parecem não se identificar com esse tipo de organização da vida política. Por que isso acontece?

    O que aconteceu com os partidos de esquerda?

    Os partidos de esquerda passaram por duas fases. A primeira, muito marcada pela polaridade entre os partidos socialdemocratas e os partidos comunistas, sustentou o desenvolvimento dos Estados de bem-estar social na Europa nos anos 1950 e 1960. O segundo momento dos partidos de esquerda é resultado das ideias libertárias de maio de 1968, que vai gerar uma miríade de partidos libertários, sendo o mais importante deles o partido verde. Os partidos verdes vão conseguir impor uma pauta ecológica fundamental no debate político, mas este movimento também se esgotou. Talvez o último relance dele esteja acontecendo na Alemanha com o Partido Pirata. Só que falta uma terceira leva de partidos que sejam capazes de processar a situação fim de linha da crise de 2008, que ainda vai se perpetuar durante muito tempo.

    Como esses partidos se caracterizariam?

    Falta uma geração de partidos que tenha consciência de problemas vinculados à desigualdade econômica, coisa que esses partidos de segunda geração não têm. Diga-se de passagem, o Partido Verde alemão foi responsável pela lei que desregulamentou e flexibilizou o mercado de trabalho, votada na época do Gerhard Schröder [premier alemão de 1998 a 2005]. Falta uma geração de partidos com a coragem de radicalizar os processos de institucionalização da soberania popular. Partidos que não funcionem como partidos. Isso pode parecer uma coisa estranha, mas no fundo é muito importante. Partidos que não tenham essa estrutura centralizada, estrategicamente orientada, em que as discussões se submetem às estratégias político-partidárias eleitorais do dia. Por que os jovens não querem entrar em partidos hoje? Porque não querem ter a sua capacidade crítica instrumentalizada por cálculos eleitorais. Ninguém mais quer ficar fazendo uma aliança política com fulano para garantir a eleição de sicrano. Esse tipo de raciocínio de mercador, que conseguiu monopolizar a política em todos os seus níveis – inclusive no campo das esquerdas – é o que boa parte dos jovens de hoje se recusa veementemente a seguir, com todas as razões.

    O que se coloca no lugar disso?

    É fundamental encontrar um modelo de participação eleitoral em que esse tipo de posição não seja rifada. Ninguém aqui está fazendo a profissão de fé que vigorou nos anos 1990 de mudar o mundo sem tomar o poder. Isso não funcionou nem funcionará, o Egito é um exemplo. O grupo que realmente mobilizou o processo revolucionário chama-se Movimento 6 de abril. Eles decidiram não entrar no jogo eleitoral e estão cada vez mais isolados. Essa coisa da força que vem das ruas e vai pressionar o regime de fora tem limite. Então, não se trata de uma crítica abstrata do processo eleitoral, mas da constatação de que é necessário saber entrar nesse processo de uma maneira diferente da que vimos até hoje. Talvez a criação de alianças flexíveis para uma eleição que depois se dissolvem, como a Frente de Esquerda na França, coisas desse tipo. É difícil saber o que vai aparecer, mas uma coisa é certa: o que temos hoje não dá mais conta. Há uma fixação muito grande na democracia representativa. Desde os anos 1970 vivemos nas Ciências Políticas uma espécie de deleite em ficar discutindo como deve ser o jogo democrático, a estrutura dos partidos, dos poderes e blá, blá, blá. Esse tipo de perspectiva bloqueia radicalmente a ideia de que uma das questões centrais da democracia é fazer a crítica da democracia. Quando a democracia perde sua capacidade de reinvenção, ela morre. É o que está acontecendo agora.

    O que contribuiu para a recomposição do espaço público das ruas e por que ele foi abandonado durante tanto tempo?

    Para você ter crítica social e mobilização é necessário desencanto. Vários níveis de desencanto foram necessários para que as pessoas voltassem às ruas. Quando eu tinha vinte e poucos anos, o discurso era de que nunca mais veríamos grandes mobilizações populares. Poderia haver mobilizações pontuais sobre questões pontuais, mas nunca uma mobilização que colocasse em xeque o modelo de funcionamento e gestão da vida social no interior das sociedades capitalistas avançadas. Hoje vemos que quem fez essas previsões não só errou como tinha interesses ideológicos inconfessáveis. As pessoas que saíram às ruas em 2011 queriam discutir o modelo de funcionamento da estrutura econômica e social das nossas sociedades. No momento em que isso aconteceu, muitos, principalmente da imprensa, se deleitaram em dizer que eles não tinham propostas, o que é falso. Quem foi às ruas buscou o direito de colocar os problemas em questão. Muitas vezes, a pior maneira de se pensar em um problema é “solucioná-lo” muito rapidamente. Também houve quem não tenha ido às ruas e, diante da crise financeira, apareceu com soluções prontas. Essas ‘soluções’ só pioraram os problemas.

    No que diz respeito à agenda ambiental, existem muitas ‘soluções’ que, na verdade, provocam um esvaziamento deliberado do potencial político das questões ecológicas. Vemos a individualização da responsabilidade pela poluição presente no discurso das sacolas plásticas, do tempo que as pessoas devem gastar tomando banho, etc. e também um esforço em afastar a população da discussão travestindo-a como eminentemente técnica. Como vê isso?

    É uma tentativa de retirar a força política da questão ecológica transformando-a em uma questão moral. A discussão gira em torno dos atos dos indivíduos, que precisam ser modificados. Você precisa gastar menos tempo no banho, comprar produtos bio e coisas desse tipo. É uma maneira muita astuta de operar um deslocamento que é mortal para o problema ecológico, porque a pergunta passa a ser “o que eu devo fazer para ajudar?” – e, a princípio, parece legal todo mundo fazer alguma coisa para ajudar –, enquanto a questão principal deveria ser “contra quem e contra o quê eu devo lutar?”. Sem isso, a tendência é esvaziar completamente a dimensão da discussão ecológica, não se questiona o modelo econômico e de desenvolvimento. E o forte potencial político dessa discussão reside justamente nesse questionamento do modelo de desenvolvimento das sociedades capitalistas avançadas, colocando em xeque o modelo de organização e gestão das cidades, dos transportes, dos resíduos, da energia… Como resultado desse deslocamento da dimensão política para a moral, nada disso é colocado em questão, por mais que todo mundo defenda com a mão no coração “as florestas”, a questão que a ecologia trouxe está fora do debate.

    A retórica do discurso técnico na qual as pessoas não conseguem ter acesso aos fatos sem a mediação de especialistas é um obstáculo para a reconstrução do campo político nas bases dessa democracia direta, estreitamente ligada aos reais interesses das populações, não?

    Posso dar um exemplo sobre esse tipo de problema. A Islândia foi um dos primeiros países a entrar na crise financeira de 2008. Bancos islandeses venderam fundos de investimento na Holanda e na Inglaterra e quando esses bancos quebraram, os governos holandês e inglês exigiram que o governo da Islândia bancasse a dívida dos bancos. Diante disso, o parlamento islandês resolveu votar uma lei de ajuda aos bancos falidos e a lei passou. Mas o presidente da Islândia, que era um sujeito mais esclarecido, lembrou que a Constituição do país previa a convocação de um referendo popular em casos como aquele. Resumindo, ele lembrou que o princípio central da democracia é: quem paga a orquestra, escolhe a música. Quem pagaria aquela dívida não seria o parlamento, mas a população, que teria seus recursos e salários expropriados por uma série de impostos destinados ao pagamento da dívida dos bancos. A população islandesa decidiu que não queria isso. Depois do resultado do referendo, aconteceu a coisa mais fantástica, que é a essência da democracia parlamentar atual: o parlamento votou e aprovou mais uma vez a mesma lei de ajuda aos bancos. Então, novamente, o presidente acionou o mecanismo do referendo popular e, pela segunda vez, os islandeses disseram não. O que isso significa? Alguns podem questionar “como uma questão ‘técnica’ dessas vai parar em referendo popular?”, acusar o presidente de demagogia, etc., o que é absolutamente surreal. Não é possível que parlamentares que têm suas campanhas pagas por bancos definam o que vai acontecer com o dinheiro da população em relação ao pagamento ou não da dívida destes bancos. Não faltaram economistas prevendo que a Islândia iria quebrar. No entanto, de todos os países que entraram na crise, a Islândia é um dos que está em melhor situação atualmente. A tentativa de retirar a força política da decisão era simplesmente uma construção ideológica para legitimar os “técnicos”, que, no fundo, de técnicos não têm nada porque representantes do poder financeiro que conseguiu tomar conta de todas as instituições das democracias avançadas. Esse é o limite da democracia atual. O sistema financeiro é o grande inimigo da democracia.

    Existe um tipo de agenda ambiental apoiada na entrada de bens comuns para o mercado que vem sendo denunciada como a solução encontrada pelo sistema financeiro para sair da crise ao mesmo tempo em que, também apoiada na retórica da crise, Angela Merkel lidera na zona do Euro políticas de austeridade que deslegitimam a vontade soberana dos povos, como no caso grego. Como ‘a esquerda que não teme dizer seu nome’ se coloca nesse processo?

    Os problemas ligados à ecologia têm um forte potencial não só mobilizador como também transformador. No entanto, nós temos hoje duas ecologias. Uma tem um potencial transformador, mas a outra é conservadora. O capitalismo vê na ecologia um dos elementos de sua renovação. Hoje, qualquer liberal, qualquer analista de Wall Street vai admitir o discurso ecológico. Há alguns autores que falam que depois da bolha imobiliária, nós temos agora a bolha verde. Uma vez escrevi um pequeno texto sobre o filme Wall Street [2010], de Oliver Stone, que me impressionou pela agudez da metáfora. Um jovem analista do mercado aposta no potencial financeiro das energias renováveis. Ele era um visionário porque, de certa maneira, pregava uma reconciliação entre o setor mais rentista da economia e algumas exigências presentes na pauta ecológica. Isso só pode ser feito rifando completamente a dimensão em que a reflexão ecológica aparece como um elemento fundamental de afirmação da soberania popular. Existe uma tendência bizarra, mas muito concreta, de articulação entre um determinado setor de lutas ecológicas e o capital financeiro. Inclusive, do ponto de vista eleitoral, acontece muita coisa complicada. Os partidos verdes europeus preferem se aliar a partidos de centro do que aos partidos de esquerda. Por exemplo, na Alemanha, o Partido Verde prefere uma aliança com a CDU [partido democrata-cristão da primeira-ministra Angela Merkel] do que uma aliança com a Die LINK, que é um partido de esquerda mais dura. Na França foi a mesma coisa. Tudo isso me parece muito preocupante. É necessário livrar a agenda ecológica dessa tendência à justificativa de um liberalismo renovado para recolocá-la no lugar onde ela sempre esteve, ou seja, como elemento fundamental da reflexão da esquerda sobre o caráter deletério dos processos de desenvolvimento do capitalismo avançado.

    Como o novo pensamento de esquerda pode articular uma mirada filosófica diferente para a questão do uso produtivista da natureza, característico do neodesenvolvimentismo aqui no Brasil?

    Eu reconheço que esse produtivismo em relação à natureza também esteve muito presente em certos setores da esquerda que, durante muito tempo, entenderam a natureza como fonte de recursos e só. Basta lembrar que nos países comunistas a política ambiental foi catastrófica. Isso, inclusive, tem base teórica, vem de uma leitura do pensamento marxista em que a natureza era um discurso reificado, sem realidade ontológica em si. Em última instância, a natureza era o fruto do trabalho humano então a intervenção humana na natureza já estava justificada de antemão, sem maiores contradições. Mas acredito que do ponto de vista da esquerda hoje existe uma consciência tácita a respeito da centralidade da agenda ecológica. Não foram poucos os filósofos no século 20 que nos alertaram para o impacto negativo da redução da relação com a natureza a sua dimensão eminentemente técnica. Por mais que o desenvolvimento técnico pareça nos assegurar a dominação da natureza, o fato de compreender a relação humana com a natureza sob o signo da dominação já é um problema grave. Então, essa ideia de que, sim, vivemos em um país que tem necessidades de desenvolvimento maiores porque há urgências de inclusão social não invalida o fato de estarmos no interior de um processo de reflexão sobre o que significa riqueza social. Será que riqueza social significa ter um conjunto determinado de bens de consumo, ter transporte individual, ter uma relação extrativista da energia natural? Ou significa ser capaz de criar um modelo de relação com a natureza que garanta de maneira fundamental a qualidade de vida? Essa é uma bela questão que só o debate ecológico foi capaz de colocar.

    Assim como em movimentos urbanos, a exemplo do Ocuppy, a pauta ecológica delineia um horizonte onde outro modelo de sociedade é possível, fazendo cada vez mais a crítica ao poder do sistema financeiro para bloqueá-lo?

    A pauta ecológica atinge o modelo na sua esfera econômica mais clara ao afirmar que nós não queremos uma situação na qual todos os agentes econômicos estejam submetidos aos interesses de uma meia dúzia de multinacionais que detém não só a estrutura de produção, mas também o desenvolvimento da técnica. Quando se fala em agricultura familiar, o que isso quer dizer? Que, enquanto modelo econômico, não é possível estabelecer uma brutal concentração de terras, de tecnologia, de insumos. Insistir na agricultura familiar é, dentre outras coisas, insistir na pulverização radical da posse não só da terra, mas dos bens e das técnicas. Porque se isso não ocorrer, você tem não só consequências demográficas muito brutais, como o inchaço das periferias urbanas, mas também uma espécie de situação na qual a criatividade inerente à pulverização das técnicas é perdida. Milhares de produtores não vão produzir as mesmas coisas, nem sob as mesmas condições.

    Por exemplo?

    Por exemplo, quando essas questões ecológicas se vinculam ao problema da soberania alimentar. O fato de que você tem uma política agrícola que vai eliminando completamente a diversidade alimentar não é só uma questão de garantia das tradições – eu seria o último a fazer aqui a defesa abstrata da particularidade das tradições. Dentre outras coisas, é preciso reconhecer que a tradição tem uma dimensão de experiência que será muito importante para nós quando tivermos condições de compreender como os saberes alimentares se constituíram e o que eles garantem. Há uma tendência monopolista muito forte, nós vemos nas últimas décadas algo que está na base da tradição marxista, a ideia de que vai chegar um momento em que a própria noção de concorrência começa a desaparecer. Esse processo concentracionista toma a relação com a natureza de assalto, da maneira mais brutal possível. Todos esses movimentos camponeses, como a Via Campesina, insistem que há um risco não só econômico como social em se permitir a concentração das atividades agrícolas na mão de multinacionais. As sociedades pagarão caro se não conseguirem bloquear esse processo.

    Pegando carona nesse exemplo da Via Campesina, cada vez mais surgem relatos de populações tradicionais emparedadas por esse modelo de desenvolvimento, mas, ainda sim, estes relatos bastante concretos e verificáveis são deslegitimados…

    Tenta-se desqualificar essas resistências como uma espécie de arcaísmo. É como se dissessem “vocês precisam entender que têm uma visão absolutamente romântica do mundo”. É um discurso que condena “a crítica às luzes”, no final das contas. Diz muito a tentativa de retirar dessas lutas uma espécie de prova maior do conservadorismo de certas populações que no fundo são as populações mais vulneráveis, pois sabem que quando essas empresas chegam eles vão para o espaço simplesmente. Quando a Petrobrás chega para fazer a exploração de petróleo nas bacias, a vida dos pescadores é a última coisa na qual ela vai pensar. “Imagina você ficar preocupado com peixe quando o país quer se transformar em uma grande potência petrolífera?”. Ou seja, eles querem vender essa perspectiva, mas uma questão fundamental da esquerda é saber defender as alas mais vulneráveis da sociedade. Existe um modelo retórico que procura nos fazer acreditar que toda resistência seja, no fundo, uma recusa do progresso. Acho importante recolocar de maneira clara o que significa ‘progresso’ no interior desse contexto. O progresso procuraria dar conta de certas exigências fundamentais de bem-estar. O progresso científico não é simplesmente um processo de dominação da natureza, mas também um processo de otimização do bem-estar humano. Mas esse dito ‘progresso’ promete uma maior qualidade de vida para as populações e acaba produzindo o inverso. Para que essa inversão não ocorra, é necessária uma reconstituição brutal dos modelos de relação com a natureza. E, nesse processo, o interessante é que nasce outra consciência da organização social.

* Entrevista realizada por Maíra Mathias para a revista Poli n° 24, de julho e agosto de 2012

** Entrevista socializada pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), publicada pelo EcoDebate, 06/09/2012

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