Ganhos e perdas na senda da inovação, artigo de Washington Novaes
[O Estado de S.Paulo] Quase à mesma hora em que era sepultado em São Paulo, há duas semanas, o corpo do professor Aziz Ab’Saber, uma das figuras mais importantes do pensamento científico e ambiental brasileiro, chegava às mãos do autor destas linhas o livro Espécies Nativas da Flora Brasileira de Valor Econômico Atual ou Potencial, editado pelo Ministério do Meio Ambiente, sob coordenação do gerente de Recursos Genéticos, Lídio Coradin – obra importante para o País na área em que o falecido professor da Universidade de São Paulo (USP) foi um expoente.
Considerado referência em geografia no mundo, mas também em geologia, geomorfologia, biologia evolutiva, ecologia, autor de mais de 300 trabalhos acadêmicos, ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), condecorado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e outras instituições, o professor Ab’Saber era um homem simples e acessível, que aos 87 anos e com a saúde atingida não desistia da luta. A mais recente foi contra a versão de Código Florestal defendida pelos ruralistas – a seu ver, um forte retrocesso com graves consequências, principalmente por desprezar a variedade de cenários naturais no Brasil e a necessidade de regras diferenciadas para cada um.
O autor destas linhas conheceu-o pessoalmente em 1987, durante um debate promovido por este jornal sobre um dos programas da série Caminhos da Sobrevivência, que dirigia para a televisão. O debate era específico sobre um documentário a respeito da Bacia do Rio Tietê feito por Eduardo Coutinho. Havia muita confusão entre os debatedores, quando o professor Ab’Saber começou a falar. E a impressão de toda a plateia foi de que, a bordo da nacele de um balão, todos tinham subido ao céu e lá do alto haviam começado a enxergar a bacia do rio, hoje e na História: a ocupação humana, que começara pela planície, subira os morros e se estendera; os dramas causados pela ocupação desenfreada do solo e suas consequências na bacia hidrográfica, inclusive por causa do sepultamento sob o asfalto de dezenas de córregos e outros afluentes.
Pouco tempo depois, num debate em Mato Grosso do Sul sobre os dramas do Pantanal, quando se discutia a necessidade de desassorear o Rio Taquari, que já fora o grande leito da navegação no bioma e estava reduzido a um palmo d’água, o professor Ab’Saber, com seu saber, pôs a discussão no lugar: “Vocês podem planejar então desassorear o rio durante séculos, porque o desmatamento e a erosão que ele provoca, de fato, são problemáticos; mas a questão central está em que aquela região é de formação ainda recente, em evolução, e está no centro de um cone de terra com a base invertida para cima, milhares de quilômetros de diâmetro, que ejetam areia de baixo para cima; desassorear é útil, mas o problema mesmo durará séculos, milênios”.
Era assim o professor Aziz Ab’Saber, que antes de cursar a USP e nela ser professor foi, ali mesmo, jardineiro. E com essa simplicidade seguiu pela vida fora. Fará muita falta ao País.
Ele certamente gostaria de ler o livro sobre as espécies brasileiras, porque era um dos defensores exponenciais da nossa diversidade vegetal – 13% das espécies do planeta, segundo o texto, que tem como objetivo “promover o uso sustentável de espécies da flora brasileira de valor econômico atual e potencial, utilizadas local e regionalmente”. Isso significa, diz o livro, novas opções para a agricultura familiar, oportunidades de investimento industrial, contribuição para a segurança alimentar, redução da vulnerabilidade do sistema alimentar brasileiro e formatos de favorecimento de comunidades locais. E todos esses caminhos são importantes para a área medicinal, para a produção de cosméticos e aromáticos, para plantio e comercialização de alimentos, para seleção de espécies adequadas ao clima, etc.
No mundo já se conhecem 250 mil espécies vegetais, dizem muitos estudos (outros apontam números menores) e a maior diversidade está no Brasil. Mas, apesar dela – observa o livro -, a nossa dieta é “altamente simplificada e dependente de recursos genéticos externos”, enquanto poucas das nossas centenas de espécies comestíveis estão disponíveis no mercado. E tanto é assim que a nossa agricultura depende de espécies vindas de outras partes do mundo – café, arroz, soja, laranja, milho, trigo; na silvicultura, de eucaliptos e pinheiros; e mesmo fora das espécies vegetais, como na piscicultura (tilápias africanas e carpas asiáticas), na apicultura (polinizadores africanos), na pecuária (bovinos indianos, caprinos asiáticos, gramíneas africanas).
Então, o conhecimento das nossas espécies é vital, já que a produção mundial de alimentos, em grande parte cartelizada no comércio internacional, hoje depende basicamente de apenas 150 espécies; 15 espécies respondem por toda a energia de que depende o ser humano – e só quatro (arroz, batata, milho e trigo) respondem por metade dessa energia, segundo a ONU. Entre as pouco mais de 150 espécies mencionadas, só duas são brasileiras: mandioca e amendoim. E a própria evolução da biotecnologia entre nós dependerá do avanço no conhecimento nessa área. Até mesmo na área de medicamentos, em que os números do comércio mundial variam entre US$ 20 bilhões e US$ 250 bilhões anuais. Mas a produção interna não passa de US$ 500 milhões/ano. Só temos registrados 512 produtos fitoterapêuticos derivados de 162 espécies vegetais.
O conhecimento na área, portanto, é decisivo, até porque a perda da biodiversidade no mundo avança celeremente e já se perderam pelo menos 25% das espécies, diz o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), que recomendou há dois anos ampliar para 17% as áreas terrestres protegidas e para 10% as áreas oceânicas.
Nas encruzilhadas que se apresentam para o Brasil em seu comércio exterior, em sua indústria, na política cambial, a inovação tecnológica será o fator preponderante nos próximos anos. Por isso são tão importantes os caminhos trilhados pelo livro.
Washington Novaes, jornalista. E-mail: wlrnovaes@uol.com.br
Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.
EcoDebate, 02/04/2012
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