Afinando o discurso contra a Economia ‘Verde’ na Rio+20, por Raquel Júnia
Seminário debate os conceitos e negócios por trás do modelo que será defendido pela ONU na Rio+20 e expoe os riscos da Economia Verde para a qualidade de vida no planeta.
No “esboço zero”, documento divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como base das discussões da Rio+20 -Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável – fica claro que a proposta defendida pela Organização durante o evento será a da Economia Verde. A Rio+20 vai acontecer em junho de 2012, no Rio de Janeiro, e, paralelamente, movimentos sociais e outras entidades da sociedade civil organizarão a Cúpula dos Povos, que pretende questionar as soluções da ONU para a atual crise ecológica. “Disfarçada de uma agenda ambiental, a Rio+20 traz uma agenda política muito importante. Podemos fazer uma comparação com os ajustes estruturais neoliberais que aconteceram na década de 90. Naquela época, se formou o famoso Consenso de Washington, para liberalizar os serviços públicos e colocar em curso todos os processos de privatização que nós vimos nas décadas de 1990 e 2000. E agora que o capitalismo está em crise, ele tenta se inovar e forjar novas formas de acumulação que precisam dos Estados, das políticas públicas e de leis para oferecer novas fronteiras de acumulação. E essas fronteiras estão em grande parte no meio ambiente. A economia verde consiste em ‘comodificar’, tornar papel moeda, todos os componentes da natureza, seja a biodiversidade, a água ou o carbono”, explicou Lúcia Ortiz, do Núcleo Amigos da Terra Brasil, durante o Seminário Rumo a Rio+20: por uma outra economia, realizado em Porto Alegre, durante os dias 23 e 24 de janeiro.
O seminário foi organizado por algumas das entidades que compõem o Comitê Facilitador da Cúpula dos Povos – Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (ASPTA), Fase – Solidariedade e Educação, Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, Núcleo Amigos da Terra Brasil e Sempreviva Organização Feminista (SOF). Durante dois dias de discussões, representantes dessas e de outras organizações do Brasil e de outros países detalharam os acordos que a ONU pretende fechar na Rio+20 e o modelo de desenvolvimento que a organização defende. “Precisamos manter um campo crítico, porque virá com muita força a tentativa de legitimação das corporações, articuladas em torno da economia verde. Precisamos reunir argumentos críticos contra isso e mostrar nossas experiências contra-hegemônicas levando para o debate público nossas propostas”, definiu a coordenadora da Fase, Fátima Melo, na abertura do seminário.
Para Pablo Bertinat, da organização argentina Taller Ecologista, duas décadas após a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, conhecida como Eco 92, o balanço é de que não houve nenhum avanço nas políticas para frear o processo de degradação do meio ambiente e da qualidade de vida no planeta. “Quando fazemos a revisão dos 20 anos da Eco 92, percebemos indicadores preocupantes. Há mais gente vivendo na miséria e um incremento na perda de biodiversidade. Isso mostra que as propostas da Eco 92, implementadas através da Agenda 21, são um grande fracasso. A alternativa que permeou a Eco 92 foi a liberalização do comércio e a maior circulação de mercadorias. Da década de 1960 até 2010, foram incrementados os processos de circulação e acumulação de capital e as exportações mundiais cresceram. As exportações da China, por exemplo, cresceram 268%, do Brasil, 32%, e da Argentina, 21%, mas os problemas do meio ambiente e das pessoas continuam”, disse.
De acordo com Camila Moreno, coordenadora de sustentabilidade da Fundação Heirich Böll, também presente no seminário, o pilar do novo momento de acumulação do capital que representa a economia verde é o conceito de capital natural. “Eles não estão inventando a roda, simplesmente olharam para o que já está criado e disseram: ‘como não nos demos conta de que as abelhas prestam um serviço e que isso tem um valor! Se não tivéssemos as abelhas, quem iria polinizar?’ Então, se contabilizam todos esses processos. Existem cálculos, por exemplo, sobre o quanto deve-se pagar pela vazão de metro cúbico de água por segundo. É isso que as corporações e os governos irão tentar legitimar na Rio+20”, explicou. “Assim, a água doce disponível do Brasil vai ser transformada em algo que será contabilizado na riqueza nacional. Nada contra contabilizar os recursos naturais, a questão é dentro de qual projeto isso se insere e para quais fins. E os fins são lançar isso no mercado de commodities”, acrescentou.
Para Pablo Solon, ativista boliviano que já representou o seu país nas negociações da ONU sobre a Rio+20, é preciso ter uma posição categórica de rechaço à economia verde. “Se não fizermos isso, seremos cúmplices do lançamento de um dos maiores negócios de saque dos serviços da natureza, que será lançado no Rio de Janeiro, durante a Rio+20. Há muitos interesses e milhões de dólares em jogo. O mercado de carbono está em crise, mas gera 180 milhões de dólares ao ano. Então, estamos falando de um mercado multimilionário que, conforme acreditam, reverterá essa taxa decrescente de ganhos do sistema capitalista”, alertou.
Especialistas dizem que ONU e governos estão cooptados pelas corporações
Os participantes falaram também sobre a cooptação da ONU pelas grandes empresas multinacionais que, segundo eles, têm hoje um peso muito maior nas decisões da Organização do que os próprios países. De acordo com Lucia Ortiz, já na avaliação feita dez anos depois da Eco 92, foi reforçado o discurso de que os estados não conseguiam gerir os recursos naturais e, paulatinamente, as corporações foram sendo legitimadas. “Existia o discurso de que a ONU estava falida e os estados não conseguiriam gerenciar o meio ambiente, mas as corporações iriam ajudar. E as corporações serão legitimadas finalmente como grandes atores indutores, promotores ou agentes do desenvolvimento sustentável”, lembrou. Lúcia acrescentou que, diante da crítica e das tentativas dos movimentos sociais de controlar as ações dessas multinacionais e criminalizá-las pelos danos ambientais que causavam, foram inventados outros conceitos e mecanismos que novamente apostavam nas empresas como agentes do desenvolvimento sustentável. “A resposta a essas críticas lá em Joannesburgo [na Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, Rio + 10] foi a responsabilidade social corporativa. O discurso era: ‘basta que as corporações criem os seus balanços sociais, ONGs e fundações para ajudar no desenvolvimento sustentável e coloquem isso em seus relatórios’. E o rascunho zero da Rio +20 propõe a mesma coisa: ‘as corporações precisam melhorar os balanços de sustentabilidade’, diz o documento. Para eles, isso é o controle das corporações”, criticou.
Para Lucia, o problema é ainda mais grave porque além das corporações terem “capturado” a ONU, com uma grande presença nas convenções da Organização e, inclusive, com assentos e uma grande visibilidade, essas multinacionais têm presença muito forte também nos governos. “Não importa o partido, são as mesmas corporações que financiam todas as campanhas, e todos os governos estão ali a serviço de todas essas corporações. Junto aos governos e ONGs que elas financiam, as corporações articulam as políticas que definirão as formas de ajuste para o novo ciclo de acumulação do capitalismo”, reforçou.
Camila Moreno observou que, desde 2006, todas as agências da ONU consolidaram informes sobre a economia verde, como os Programas das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e para o Meio Ambiente (Pnuma), a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Ela explicou que, da mesma forma, os principais bancos, os think-thanks corporativos (agências que forjam o pensamento corporativo e atuam em fortes setores de looby) e as organizações que Camila chamou de “ONGs de mercado”, além das consultorias, estão construindo as bases para o capitalismo verde. “Essas consultorias estão atuando não apenas para empresas, mas também para países. No Brasil, a consultoria McKinsey & Company foi a que mostrou o plano de desenvolvimento de baixo carbono para o país. Todos os agentes públicos que eu pude assistir em 2008 e 2009 fazendo apresentações – ministérios da Fazenda, do Meio Ambiente e do Planejamento – usavam os slides dessa consultoria. E eles contavam achando muito bom que quem pagou essa consultoria caríssima foi o governo da Inglaterra. A história que eles contavam parecia uma história colonial ou uma telenovela mexicana. Diziam que o príncipe Charles foi à Amazônia, se emocionou e disse que precisava ajudar o Brasil. Então, ele pagou essa consultoria, que é um plano de negócios para o país se aventurar na incrível aventura da economia verde. A McKinsey & Company também foi a principal formuladora de políticas públicas na Guiana, na Indonésia, na Bacia do Congo, viajou o mundo inteiro”, informou.
De acordo com Camila, as universidades estão reproduzindo o discurso hegemônico da economia verde como a solução para a crise ambiental. Ela recomendou a leitura de um documento chamado Visão 2050, escrito pelo Conselho Empresarial Brasileiro pelo Desenvolvimento Sustentável (CEBDS). Segundo Camila, o documento é uma versão brasileira de outro documento que foi construído pela principal coalizão de corporações internacionais. “O documento divide o período de 2010 até 2050. Eles fazem um corte e chamam o período de agora até 2020 de adolescência turbulenta. E, daí em diante, consideram como a consolidação de um novo futuro. É interessante porque o planejamento de políticas públicas no Brasil, na União Européia e em vários países também faz um cronograma até 2020, até porque é nesse período que começa a valer o novo acordo climático, e depois continuam até 2050. Com isso, podemos perceber que essas metas não estão dissociadas de um planejamento que já está em marcha, que visa uma redivisão do trabalho, mas principalmente da acumulação de capital”, detalhou.
A pesquisadora falou também sobre o recente lançamento da chamada Bolsa Verde do Rio de Janeiro, um dos aparatos já criados pelo governo do estado para operar as transações das commodities da natureza no âmbito da economia verde. Camila relatou que o presidente da bolsa é o brasileiro Pedro Costa Moura, criador em Oxford da Eco Securities, uma empresa que foi comprada em 2008 pelo banco Morgan Stanley. “Essa transação entre a primeira companhia internacional de vendas de serviços ambientais comprada por um banco do porte do Morgan Stanley foi o sinal de que o sistema financeiro entrou na fase dos ativos ambientais. E o Pedro Moura, que é o arquiteto de tudo isso, foi trazido a peso de ouro para o Brasil para ser o presidente geral da Bolsa Verde do Rio. Embora a bolsa tenha sido inaugurada em dezembro, vão fazer como em Wall Street [bolsa de valores de Nova York] e vão bater o sino para iniciar as negociações durante a Rio+20”, comentou.
Segundo Camila, a Bolsa Verde do Rio irá vender cotas de carbono, pois o estado do Rio será um dos primeiros a ter um sistema estadual de comércio de carbono. “Também irão vender cotas de direito de lançamento de dejetos químicos na Baía de Guanabara, porque eles [os criadores da bolsa] entendem que as empresas que estão poluindo têm um direito adquirido de lançar poluição, então, vão distribuir cotas e depois as empresas que se entendam entre elas. Vão vender ainda créditos de carbono oriundos de um acordo com o Acre, que também tem uma lei estadual que vai gerar carbono. E para meu estarrecimento final, eles venderão cotas das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs), porque é um pré-requisito da economia verde a segurança para o consumo. Então, as empresas têm que investir na infra-estrutura social. É o que já está acontecendo, pois quem banca uma série de UPPS no Rio de Janeiro não é o orçamento público, mas o Eike Batista, que fez uma doação”, relatou.
Soluções para a crise do capitalismo
Os participantes do seminário conversaram ainda sobre as práticas e experiências que os movimentos sociais, comunidades e entidades da sociedade civil já acumularam na direção de outras soluções para a crise do capitalismo. Para o economista Marcus Arruda, do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), entre as estratégias para derrubar falsas soluções como a da economia verde, é preciso construir uma nova sociedade, mesmo dentro das condições adversas do capitalismo. Ele citou entre os exemplos de experiências de “uma outra economia”, a economia solidária. “É um nome bonito e inovador, mas a luta é por uma sociedade socialista e democrática, porque o objetivo é quebrar o sistema de propriedade e de distribuição da riqueza que o capitalismo instaurou e transformou num paradigma. No Ceará, há uma cooperativa de trabalhadores rurais que produz algodão orgânico, eles não têm patrão, a terra é de propriedade da cooperativa, cada família que trabalha e produz é co-proprietária e co-gestora de um empreendimento. Ali, nesse espaço micro, o capitalismo morreu, já cedeu espaço para uma outra forma de organizar e gerir a produção”, descreveu.
De acordo com o economista, existe uma noção equivocada de que a economia solidária é um conjunto de cooperativas e associações auto-gestionadas dispersas pelo mundo. “A economia solidária é muito mais do que isso, é um projeto de uma outra economia. Essa cooperativa do Ceará, por exemplo, faz parte de uma cadeia produtiva do algodão orgânico que é toda trabalhada de forma solidária, vendendo os produtos umas para as outras desde a matéria prima até as roupas, que são o produto final. Dessa maneira, enquadram e encaixam dezenas de cooperativas num processo de produção solidário, que depois leva os produtos para mercados no Brasil e no exterior”, completou.
Jean Marc, da ASPTA, ressaltou que atualmente há melhores condições para os movimentos sociais reafirmarem a urgência e viabilidade de práticas contra-hegemônicas como a agroecologia. “Na ECO 92, nós tínhamos no mundo um conjunto de experiências ainda bastante precário, com muitas esperanças, mas com poucas evidências. Apenas começava-se a falar da agroecologia como uma alternativa estrutural para a crise da agricultura. Hoje, nós temos essas informações e esses comprovantes, inclusive por organismos como a FAO. Há várias evidências de que a agroecologia é capaz de alimentar o mundo e é extremamente poupadora de insumos não renováveis. E também está evidente que a agroecologia bate de frente com qualquer solução capitalista”, afirmou.
Raquel Júnia, jornalista, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
EcoDebate, 07/02/2012
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Trata-se de uma velha e conhecida artimanha dos neoliberais capitalistas e toda sua tropa de choque para tentar implacar novos modelos travestidos de green. O mais insidioso do processo capityalista é essa capacidade subliminar de incutir na sociedade seus ardis camuflados, escondendo os verdadeiros objetos, sempre nefastos e insustentáveis de consumo exacerbado para alimentar o capital, sempre acumulador, concentrador e gerador de misérias socioambientais de largo espectro.
Se bem é certo que o socialismo falhou, muito mais pela reação avassaladoramente contrária do que pelos próprios erros localizados, a problemática sempre se estriba no cerne do capital sobrepujando política, governos, sociedade e demais, para manter-se hegemônico, travestido, sempre renovado, mas sem deixar de mostrar as cores negras dos seus desastres que comprometem a humanidade atual.
Luiz Dourado