‘Existe uma amnésia periódica sobre a presença dos índios no Brasil’. Entrevista com Carlos Alberto Ricardo
“Hoje, existem no Brasil mais de 230 etnias indígenas diferentes, falando mais de 180 línguas, e nos últimos anos esse número de etnias tem aumentado”, informa Carlos Alberto Ricardo, pesquisador do Instituto Socioambiental – ISA, à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone. Nos últimos cinco anos, apesar dos avanços conquistados em relação à demarcação de terras indígenas, tem aumentado também os conflitos entre as comunidades e os não índios. A raiz das divergências é a disputa pela terra e a exploração de recursos naturais em reservas indígenas. De acordo com Ricardo, “a extensão total das terras indígenas no Brasil soma cerca de 111 milhões de hectares, o que equivale a 13% do território nacional”, mas em regiões de ocupação colonial, “no Nordeste, no Leste, no Sudeste e no Sul do Brasil, os índios estão confinados em microterritórios, o que faz com que as vidas destas populações sejam muito difíceis”.
O exemplo mais emblemático de confinamento é das comunidades Guarani. “Somente no Brasil há mais de 30 comunidades Guarani vivendo na beira de estradas porque não conseguem retomar seus territórios tradicionais, os quais têm uma estrutura fundiária estabilizada. Por isso é muito difícil estas etnias romperem o confinamento territorial”, avalia um dos organizadores do livro Povos Indígenas no Brasil 2006/2010 (São Paulo: Instituto Socioambiental, 2011), que também teve participação da antropóloga Fany Ricardo.
Na Amazônia, esclarece, o perfil dos conflitos é diferente. O dilema enfrentado pelos aproximadamente 40 mil Yanomani que vivem na fronteira entre Brasil e Venezuela é a invasão de seus territórios por garimpeiros. “É um conflito de baixa intensidade, mas extremamente grave, porque os garimpeiros utilizam uma técnica de apuração do ouro que contamina o ambiente, o que estabelece uma área de tensão, de conflitos e de cooptação de lideranças indígenas”, menciona.
Carlos Alberto Ricardo é antropólogo formado pela Universidade de São Paulo – USP e atualmente é coordenador do Programa Rio Negro no Instituto Socioambiental – ISA.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as novidades em relação aos povos indígenas apresentadas no livro Povos Indígenas no Brasil, comparado a outras publicações?
Carlos Alberto Ricardo – A publicação chamada “Povos indígenas no Brasil”, referente ao período de 2006 a 2010, faz parte de uma série que começou em 1980. A publicação é uma espécie de observatório sobre a situação contemporânea dos índios no país. A periodicidade é irregular, mas já publicamos diversos volumes, os quais reúnem o material de cada período, com artigos, fotos, mapas, estatísticas. O conteúdo permite ao leitor, sobretudo o leitor que está acompanhando a situação indígena, ter uma visão geral dos índios que vivem no Brasil.
A publicação reafirma algumas tendências que apareceram em períodos anteriores no sentido de que a população indígena no Brasil continua crescendo e que o número de povos igualmente continua aumentando. Apesar disso, houve certa paralisia nos processos de reconhecimento de terras indígenas neste último período, depois do reconhecimento da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Percebe-se, no Brasil, uma judicialização dessa questão.
IHU On-Line – Quantas etnias indígenas existem no Brasil e em que região do país há maior concentração desses povos?
Carlos Alberto Ricardo – A presença dos índios no Brasil é curiosamente ignorada, muitas vezes, pela imprensa, pela opinião pública e até mesmo pelas autoridades. Dedicamos uma página de abertura do livro à memória das lideranças indígenas e das pessoas que trabalhavam com os índios no Brasil. Entre as pessoas que morreram neste período está o famoso antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que trabalhou no Brasil durante o período de instalação da Universidade de São Paulo. Na presente publicação recupero uma história que ele conta no famoso livro chamado “Tristes Trópicos”, que foi publicado em 1955. Ele contava que nos anos 1930, ao participar de um jantar em Paris, encontrou o embaixador brasileiro na França e perguntou para ele como faria para conhecer os índios quando viesse morar no Brasil. O embaixador respondeu que infelizmente não seria possível encontrar os índios porque todos haviam desaparecido. Quando Lévi-Strauss veio para São Paulo, foi para Mato Grosso, Rondônia, e encontrou vários índios e escreveu muitas coisas importantes sobre eles.
De fato, existe uma amnésia periódica sobre a presença dos índios no Brasil. Quando iniciamos esta série de publicações sobre os indígenas, em 1980, também enfrentamos dificuldades de coletar material sobre eles, sobretudo na época da ditadura militar, porque havia um discurso de que a Amazônia era um vazio demográfico. Nesse sentido, o projeto do Instituto Socioambiental passou a reunir informações sobre quais etnias se encontravam no país e em que parte dele exatamente. Passamos, desde então, a colocar os índios no mapa.
Hoje, existem no Brasil mais de 230 etnias indígenas diferentes, falando mais de 180 línguas, e nos últimos anos esse número tem aumentado. Em parte, isso está acontecendo porque alguns povos isolados passam a manter relações oficiais com o estado brasileiro, aparecem na imprensa e entram na lista, com seus nomes próprios, às vezes com apelidos. Também há casos de muitos povos que eram considerados extintos e que reaparecem na cena pública brasileira em função da reafirmação de sua identidade ou de seus direitos.
IHU On-Line – De 2006 a 2010, o governo concluiu os processos demarcatórios de 35 terras indígenas no país e entregou aos índios um total de 8,9 milhões de hectares. O que esses dados revelam sobre a demarcação de terras indígenas no país? Houve um avanço em relação a essa questão?
Carlos Alberto Ricardo – Podemos dizer que houve um avanço, o qual vem acontecendo desde a Promulgação da Constituição Federal em 1988. De lá para cá, sobretudo no centro-oeste da Amazônia, um conjunto importante de terras indígenas foi reconhecido e demarcado. Claro que, conforme avança o processo, a conta vai diminuindo. Entretanto, do ponto de vista da extensão das terras, ainda faltam serem reconhecidas muitas delas.
Hoje em dia a extensão total das terras indígenas no Brasil soma cerca de 111 milhões de hectares, o que equivale a 13% do território nacional. O problema é que essas terras estão desigualmente distribuídas. Nas regiões de ocupação colonial mais antiga, no Nordeste, no Leste, no Sudeste e no Sul os índios estão confinados em microterritórios, o que faz com que as vidas de tais populações sejam muito difíceis. O exemplo mais emblemático da presente situação tem a ver com os Guarani, uma das maiores etnias da América do Sul, que vive atualmente entre Bolívia, Paraguai, Argentina e Brasil. Somente no Brasil há mais de 30 comunidades Guarani vivendo na beira de estradas porque não conseguem retomar seus territórios tradicionais, os quais têm uma estrutura fundiária estabilizada. Por isso é muito difícil elas – as etnias – romperem o confinamento territorial.
Já no centro-oeste e na região norte, sobretudo na Amazônia, nos últimos anos foi possível reconhecer territórios mais extensos, mais contínuos e, portanto, é preciso ter sempre em conta que o reconhecimento das terras dos índios no Brasil é desigualmente distribuído conforme as regiões.
IHU On-Line – Apesar da demarcação das terras indígenas, percebe-se um aumento considerável nos conflitos nos últimos cinco anos. Quais etnias enfrentam maiores problemas e em quais regiões elas vivem?
Carlos Alberto Ricardo – O maior número de conflitos está especialmente nas regiões de colonização mais antiga, porque aí as populações estão reivindicando a retomada de áreas, estão retomando suas identidades. O dilema é que elas são regiões em que a estrutura fundiária já está bastante consolidada, já há muita fragmentação, muitas fazendas estabelecidas, e até mesmo cidades. Então, de fato, isso acirra os conflitos em tais regiões de ocupação tradicional, onde os índios estão confinados em microterritórios.
Na Amazônia, o perfil dos conflitos é outro. Este é o caso dos Yanomani, que vivem na fronteira do Brasil e da Venezuela. Essa é a maior etnia de floresta ainda conservada do Planeta; são quase 40 mil pessoas que vivem em terras brasileiras e venezuelanas. Eles têm seus territórios reconhecidos, os quais estão sendo invadidos por garimpeiros por causa da “corrida pelo ouro”. Com o aumento do preço do ouro nos últimos anos, o território foi invadido por milhares de garimpeiros. Portanto, trata-se de outro tipo de conflito: é um conflito de baixa intensidade, mas extremamente grave, porque os garimpeiros utilizam uma técnica de apuração do ouro que contamina o ambiente, o que estabelece uma área de tensão, de conflitos e de cooptação de lideranças indígenas.
IHU On-Line – Os Yanomani tem contato com o Estado brasileiro?
Carlos Alberto Ricardo – Os Yanomani, de fato, são um povo importante numérica e demograficamente porque, dos 235 povos indígenas que vivem no Brasil, a maioria deles é formada por microssociedades, ou seja, tem menos de mil indivíduos. Os Yanomani têm uma população expressiva e vivem em uma região de floresta densa na fronteira do Brasil com a Venezuela. Eles possuem pouco contato com a sociedade nacional, mas criaram suas associações, tem uma sede em Boa Vista, Roraima, e os jovens Yanomani circulam pela região, alguns são professores, fizeram vestibular, entraram na universidade. Eles também estão criando uma associação do lado da Venezuela e atualmente manipulam novas tecnologias, fazem uso de radiofonia e têm suas escolas próprias.
Na Amazônia brasileira, assim como no Peru e na Colômbia, existem comunidades isoladas que não estabeleceram contato regular com a sociedade e que vivem na floresta.
Nos últimos anos, a política indigenista do governo brasileiro em relação a esses grupos isolados mudou. Antigamente as pessoas lembram que Villas Boas promovia grandes expedições para contatar esses índios e localizá-los em áreas protegidas. Nos últimos anos, porém, o governo brasileiro mudou de atitude e criou as chamadas frentes de proteção etnoambiental, que é uma maneira de proteger protegê-los em seus próprios territórios sem forçar esse contato.
IHU On-Line – Quais são as etnias que vivem em áreas de fronteiras e qual é a situação dessas comunidades? Os países vizinhos têm alguma responsabilidade pelas comunidades?
Carlos Alberto Ricardo – Cerca de 50 das 235 etnias, além de estarem no Brasil, estão em outros países, ou seja, são populações que habitavam regiões e acabaram caindo num ou noutro país, conforme os estados nacionais decidiram suas fronteiras. Na verdade, não há muita integração entre os países a não ser nessa questão dos povos isolados, que têm suscitado nos últimos anos algumas reuniões internacionais entre o Brasil, Peru, Colômbia, Bolívia. No mais, não há uma política de integração, de coordenação, de esforços entre os países.
O que acontece, hoje, são mais acordos bilaterais sem uma visão sistêmica, especialmente na Amazônia. Seria fundamental que os nove países que fazem parte da Amazônia pudessem ter uma política mais estratégica de cooperação e de coordenação de esforços, não só em relação aos índios, mas em relação à proteção das bacias hidrográficas e das áreas protegidas em geral porque, de fato, cada país, por exemplo, reconheceu os seus territórios indígenas. Quando olhamos o mapa geral da bacia amazônica, percebemos que há muita continuidade territorial entre Colômbia e Brasil, ou Colômbia, Brasil, Venezuela e Peru. Então, seria importante que houvesse essa coordenação.
IHU On-Line – Como vê a posição do Brasil de criar novas hidrelétricas nas áreas florestais? Qual será o impacto para os indígenas?
Carlos Alberto Ricardo – Com certeza. O caso de Belo Monte, por exemplo, na Volta Grande do Xingu, é um caso polêmico. Esse projeto já teve uma versão anterior no final dos anos 1980. À época, os índios e os ambientalistas protestaram, e o projeto foi interrompido. De fato, a versão atual do projeto é muito melhor do que a anterior; irá gerar menos impacto. Porém, os índios continuam inquietos, especialmente aqueles da etnia Kayapó, porque eles já entenderam que Belo Monte provavelmente é um Cavalo de Troia, ou seja, a construção de Belo Monte vai criar um barramento no rio, e os especialistas dizem que não haverá água suficiente o ano todo para mover as turbinas, pelo menos durante quatro meses do ano. Sem pensar em eventuais secas extremas, que tem a ver com mudanças climáticas. Portanto, no futuro a fragilidade de Belo Monte vai obrigar a barrar o rio Xingu acima, uma, duas ou três vezes, e com isso atingir os territórios dos índios Kayapó. Quer dizer, há um problema grave de estratégia de planejamento.
O Programa de Aceleração do Crescimento – PAC é uma somatória de obras feitas “de qualquer jeito”, quer dizer, não tem uma estratégia, não existe um sistema de governança no Brasil e nem na Pan-Amazônica que permita estabelecer um aproveitamento dos recursos naturais de uma forma estratégica para que haja sustentabilidade. O Brasil está mal acostumado com esses grandes projetos, que são movidos por grandes empreiteiras que financiam as campanhas políticas e, portanto, que criam uma espécie de dívida de campanha para que tais obras se movam. O Brasil está exportando esse modelo com recursos do BNDES e dos países vizinhos. Nesse ambiente relativamente caótico “goela abaixo”, fica muito difícil para os índios entenderem e acompanharem o que vai acontecer no rio Xingu.
IHU On-Line – Entre as reivindicações dos indígenas, nos últimos anos, está a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena – Sesai, que substitui a Funasa. Em que contexto foi criada essa secretaria e como avalia sua atuação entre as comunidades?
Carlos Alberto Ricardo – Depois da constituição de 1988, os índios passaram a ter direitos a um atendimento especializado na área de saúde e também o direito a uma educação apropriada. De fato, a questão da saúde é grave, porque os índios têm os seus sistemas próprios de classificação e tratamento de doenças, às quais eles estão tradicionalmente acostumados. Entretanto, o contato com a sociedade, a contaminação por novas doenças desestabiliza esse sistema tradicional e é preciso haver um diálogo entre o conhecimento tradicional e as formas tradicionais de terapia com a “medicina ocidental”. Isso requer profissionais especializados, com capacidade de dialogar interculturalmente com os índios. Enfim, tudo isso levou a uma reivindicação de todas as pessoas que trabalham com os índios e dos próprios índios para que houvesse uma secretaria especial de saúde.
A Sesai finalmente foi criada no final do governo Lula e está em fase de implementação. Portanto, ainda estamos vivendo um momento de transição em que o modelo não se estabilizou. Há muitas reclamações dos índios de todas as regiões e há conflitos com os profissionais de saúde, porque esse é um trabalho que tem que ser estruturante, a longo prazo, que forme uma geração de servidores públicos com uma cultura apropriada e com recursos suficientes. Os índios estão, por via de regra, em áreas mais remotas e isso exige esquema de logística específico. A criação recente da Sesai dentro do Ministério da Saúde vem atender a uma reivindicação histórica dos índios e das instituições que trabalham com eles, porém a sua implantação ainda é muito tímida e vai exigir muitos esforços nos próximos anos.
IHU On-Line – Quais os desafios da sociedade brasileira no sentido de compreender e incluir os indígenas nas decisões nacionais?
Carlos Alberto Ricardo – É importante as pessoas estarem bem informadas. Esse livro que nós publicamos é uma boa fonte de pesquisa e as pessoas podem acessá-lo através do site www.socioambiental.org e visitar as nossas plataformas interativas digitais. Aí tem-se uma base de dados por povos, ou seja, uma enciclopédia dos povos indígenas; tem-se outra base de dados por terra, porque às vezes uma mesma terra é compartilhada por vários povos. Há também um site para crianças chamado PIB Mirim, com jogos interativos e educativos com avatares de etnias indígenas. Temos, além disso, um site chamado Rede Amazônica de Informação Socioambiental – RAISG para as pessoas que estiverem interessadas, de maneira geral, na Amazônia com linguagem cartográfica.
Como dizia, a informação é um grande passo para entendermos que a diversidade cultural é patrimônio do Brasil, que os índios não estão em extinção; pelo contrário, estão aumentando e que a diversidade é positiva. É preciso reconhecer e consolidar esses direitos. Não quero dizer com isso que as soluções tomadas pelos índios para a sua constituição de vida possam ser imitadas pela sociedade nacional. Isso é uma visão um pouco ingênua. Mas é importante reconhecer e fortalecer a diversidade e procurar dialogar interculturalmente em um país que tem mais de 230 etnias e que, em geral, as terras indígenas estão mais preservadas que seus entornos. Isso contribui de uma maneira importante para a consolidação de uma visão democrática, aberta e também para a sustentabilidade do país e do planeta.
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