A água, os cientistas e as tecnologias de manejo de bacias hidrográficas, artigo de Osvaldo Ferreira Valente
[EcoDebate] Confesso, para começar, que ando um pouco cansado desta história ‘hilariante’ que envolve as discussões sobre o novo Código Florestal. Além dos políticos, dos ambientalistas e dos ruralistas, até os cientistas se envolveram mal nessa batalha, que tem tudo para terminar com cheiro de água podre. Mas o uso do cachimbo acaba entortando a boca e aqui estou eu de novo, batendo bumbo, como diz o Henrique Cortez, nosso anfitrião aqui no Portal EcoDebate.
Com respeito aos cientistas, vale lembrar que os tempos atuais, com a ampliação do horizonte científico e com a rapidez com que as descobertas se multiplicam, não há mais lugar para a existência de pessoas querendo ser novas versões de Leonardo da Vinci.
Infelizmente, nas discussões do Código Florestal, vemos a qualificação de cientista como sendo uma pessoa apta a dar palpites sobre assuntos para os quais não têm preparo prévio. Vemos biólogos, por exemplo, falando em comportamentos de ciclos hidrológicos em bacias hidrográficas, não de maneira genérica, o que ainda poderia ser aceitável, mas com ares de que transmitem conhecimentos científicos. Tal comportamento é grave, pois pode estar passando para a sociedade uma versão equivocada dos fenômenos hidrológicos. Ao colocarem a mata ciliar como ícone da salvação de nascentes e cursos d’água, podem induzir os produtores rurais a acreditarem que elas são suficientes, provocando o desprezo dos trabalhos de conservação em outras áreas de importância para o abastecimento dos aquíferos subterrâneos. O mesmo erro, repetido à exaustão, é o que nomeia topos de morros como sendo as áreasde recarga de aquíferos. Em resumo, nas versões vendidas (até por muitos cientistas de outras especialidades), se protegidos os topos e as áreas ciliares, a produção de água estará garantida. A bacia hidrográfica passa a ser, nestas versões, apenas um acidente geográfico, servindo de endereço para os cursos d’água.
As chuvas, ao atingirem a superfície de uma pequena bacia hidrográfica, por exemplo, precisam ter a maior parte possível dos seus volumes de água retidos e infiltrados nos pontos de queda. Não há nenhuma lógica em justificar a mata ciliar como elemento de retenção de enxurradas (água + partículas de solo arrastadas). É como usar analgésico para aliviar a dor em vez de antibiótico para curar a infecção. E o manejo de bacias hidrográficas, multidisciplinar, tem o objetivo básico de analisar o comportamento hidrológico da bacia e propor tecnologias de conservação adequadas às condições físicas e socioeconômicas existentes e reinantes.
O manejo de bacias está em consonância com a Lei 9.433 (Lei das Águas) que diz que a bacia deve ser a unidade básica de planejamento para produção e uso de água. Se quiserem apontar a mata ciliar e de topo como unidades fundamentais para a fauna e a biodiversidade, tudo bem, não é minha especialidade e não discuto, mas deixem de lado muitas ilações que são feitas com relação a suas importâncias hídricas. Aí existem prós e contras que precisam ser analisados caso a caso e por quem entende do assunto. Num sistema já alterado pela atividade humana, os fluxos de energia, responsáveis pelo desenvolvimento do ciclo hidrológico em determinada área, não se comportam mais como no antigo estado natural e alguns capões de mata aqui ou ali podem ter comportamentos muito diversos daqueles esperados, com base na memória passada.
Há muitos casos de pequenas bacias que, ao serem novamente cobertas com florestas, formando uma ilha de vegetação no meio de áreas exploradas, acabam por secar os cursos d’água previamente existentes. Já discutimos isso aqui no EcoDebate, no artigo “A vegetação, o solo e a água em pequenas bacias hidrográficas”, publicado em 19/10/2011.
Há muitas tecnologias de conservação capazes de fazer com que ecossistemas hidrológicos funcionem bem, mesmo na ausência de florestas, pois elas, felizmente, não têm mais a primazia absoluta de proteção de recursos hídricos. No caso de áreas rurais, eu mesmo acabo de publicar um livro sobre os fundamentos hidrológicos de conservação de nascentes, com exemplos de tecnologias aplicáveis. O Álvaro Rodrigues dos Santos, por sua vez, já publicou recentemente, aqui no EcoDebate, uma série de artigos apontando soluções aplicáveis ao meio urbano, visando retenção de enxurradas em seus pontos de origem.
O jornalista André Trigueiro, em uma série de programas de televisão, com o título de Cidades e Soluções, tem mostrado inúmeras tecnologias de conservação ambiental, incluindo as relacionas com o uso racional da água, que merecem ser vistos e analisados. Não há nenhuma necessidade, portanto, de ficarmos a mercê de legislações que generalizam soluções para um território cheio de especificidades ambientais. Não há nenhuma razão, também, para tirarmos os problemas ambientais das respectivas áreas tecnológicas e jogarmos nas promotorias e nos juizados. Já temos uma massa de cientistas (relacionados com o assunto) e de profissionais capazes de realizar excelentes trabalhos de conservação ambiental. É só acreditar nisso e substituir parte da fiscalização por inovações e assistência técnica.
Como há grande preocupação com o pensamento do mundo sobre nossas decisões, vale mencionar que em regiões montanhosas de países como Portugal, Espanha e França há rios com ótimas vazões, e límpidos, provenientes de regiões que cultivam a terra em encostas íngremes, até nas áreas ripárias. Mantêm casas e outras benfeitorias aí, sem os danos hidrológicos catastróficos que são previstos por aqui. Basta, primeiramente, que as cidades parem de jogar todo o esgoto diretamente nos cursos d’água e que programas de assistência técnica repassem, aos produtores rurais, as tecnologias apropriadas ao uso racional da terra, dentro de programas de zoneamento ecológico e de políticas agrícolas adequadas aos vários ecossistemas brasileiros.
Osvaldo Ferreira Valente é engenheiro florestal, especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas e professor titular, aposentado, da Universidade Federal de Viçosa (UFV); colaborador e articulista do EcoDebate. valente.osvaldo@gmail.com
EcoDebate, 24/11/2011
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Prezado Prof. Osvaldo, permita-me mais uma vez cumprimentá-lo por mais um artigo brilhante. Meu saudoso pai qualificaria seu artigo como direto, claro e supimpa.
Concordo plenamente, as discussões sobre as alterações do Código Florestal estão comprometidas por um vasto arsenal de besteiras científicas amplamente utilizado pelas partes beligerantes. Todas as tentativas de melhor qualificar cientificamente esse debate, e foram muitas, inclusive com sua competente participação, foram atropeladas tanto pela descompromissada lógica dita ambientalista como pela sede colonial de fáceis lucros dos grandes proprietários rurais. De minha parte, vi meus esforços de tratar com maior espeficidade e seriedade científica o caso das APPs no espaço urbano totalmente frustrados, por motivos similares.
Enfim, tudo indica que com a aprovação do novo Código estaremos perdendo uma excelente oportunidade de avançarmos realmente em uma regulação técnica eficiente e civilizatória entre dois atributos que são caros à Humanidade e à sociedade brasileira em particular, o desenvolvimento e o Meio Ambiente. Continuaremos com uma legislação casuística, cientificamente equivocada, que, por essas circunstâncias, não terá o necessário respeito das partes diretamente envolvidas.
Com admiração,
Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos
Faço coro com o Geólogo Álvaro Rodrigues e muitos outros que, sem se manifestarem, recebem com esperanças novas posições como esta do Oswaldo Fª. Valente. Como ativista ambiental, atuante no CODEMA municipal e na ONG PURO VERDE, aqui na Ponte Nova, MG, na Zona da Mata Norte, tenho colecionado observações que me vêem ao ensejo do conhecimento de textos legais e de discussões ambientais em torno da “conservação da água”, para o que montaram um enorme sistema “administrativo” (?) que se compõem do SNRH-Sistema Nacional de Recursos Hídricos, Sistemas Estaduais (aqui o IGAM), e os comitês de BACIAS HIDROGRÁFICAS. Quantos mil funcionários espalhados pelo Brasil? Quanto custam? De pronto e de mais concreta ação resultou a cobrança monetária pelo uso das águas, bem de uso comum dos povos, dádiva gratuita do Criador e tal como se criou adredemente um clima para o “terrorismo” cujo feito maior foi “implodir premeditadamente” as torres gêmeas do WORLD TRADE CENTER, criam o pavor e a ameaça de finitude para a água neste planeta terra que tem o nome equivocado e devia chamar-se planeta “ÁGUA”. Uma humanidade que não souber transformar e usar a água marinha, salgada sim porque o criador previu a “imundície” que esta civilização iria despejar nos oceanos, cujo sal impede a putrefação, elimina germens e bactérias e nos permite obter, novamente, o retorno de uma água dessalinizada como recurso infinito ao atendimento ás nossas “sedes” corporais e de atividades econômicas. Sou solidário, também, ao desmascaramento da falsa “verdade” da cobertura vegetal de topo de morros, e também concordo que, a persistir uma grande cobertura vegetal nas margens dos rios estaremos construindo, por retenção de sólidos trazidos por enxurradas e por deposição de folhagens e galhos, um enorme retentor que irá gerar lençóis d’água superficiais pela saturação do liquido no terreno marginal à calha do rio. Ouso dizer que morro argiloso. Retendo a primeira camada de retenção do precioso líquido se transforma em guarda-chuva que impede a água de penetrar e gera as enxurradas e cria as voçorocas. Pelo contrário, o terreno silicosos tem permeabilidade e, deixando penetrar sempre e profundamente a água, é o melhor recipiente para colher e reservar águas às nascentes. Aqueles são solos fortes que retém árvores até gigantes e estes os solos fracos nos quais as grandes árvores não se mantêm de pé, tombando ao sabor dos fortes ventos.
Sempre protestei contra o tratamento igual para coisas desiguais que o são a cidade e o campo. Quando se funda uma cidade há o pressuposto maior de que se abdicou do campo. Não há como negar. Que façamos a cidade melhor possível, ok, mas imitar o campo é incongruência. Vejam também os usos feitos pelos chineses com o cultivo de arroz irrigado do topo ao pé das montanhas em vales íngremes, e os mantêm inteiros e verdes sem voçorocas. Questão de cultura e dedicação ao trabalho com responsabilidade.
Um raciocínio extravagante, por inverídico, é o imaginar que os legisladores tenham privilegiado os brasileiros das planícies e planaltos, que não têm morros, aptos ao cultivo intensivo-extensivo e mecanizado, em detrimento ou contra os estados montanhosos como o das Minas Gerais que nos deu a alcunha de “montanheses”. Mas mesmo assim não morro de inveja quando vejo desfilarem planícies e mais planícies super cultivadas com soja ou ocupadas por pasto gado de corte: Serão futuros desertos e nem os que os estão a criar irão querer lá estar. Fico por aqui.
Caro Prof.,
Concordo com quase tudo que o Sr. escreveu, porém venho fazer uma ressalva quando diz que cientistas estão passando algo equivocado na área hidrológica. Sendo um assunto da área ambiental, a hidrologia, assim como a botânica, não é uma matéria exata e muito menos concentrada na área da engenharia, é MULTIDISCIPLINAR, como o Sr. mesmo diz. Ela é estudada por todos que se interessam em preservar as águas de nosso país, independente da formação acadêmica. Pelo que eu leio e estudo, entendo que a mata ciliar não é apenas a salvação de nascentes e cursos d’água, é muito mais que isso. Entendo também que só uma porção de vegetação não significa uma área preservada, pode ser apenas uma ilha sem diversidade nenhuma, apenas uma área verde sem importância ecológica. O mesmo digo de um rio desprotegido, onde se encontra pouquíssimas espécies e sem nenhuma interação com o ambiente que o rodeia. Os debates devem sempre ocorrer pois este assunto abrange diversas áreas do conhecimento, não devendo ficar apenas para os que se dizem ESPECIALISTAS. O Código Florestal, assim como toda legislação ambiental, deve englobar não só interesses humanos, mas também de deve abranger toda a biodiversidade do país de maneira específica, uma vez que somos mais dependentes dela do que ela é de nós.
Caro Prof. Osvaldo,
Em tese, os que estariam em plena condição de discutir assunto de tamanha complexidade não conseguem chegar ao consenso, fico imaginando nós aqui pobres mortais gestores voluntários de comitês e conselhos.É esperar e ver quais das enxurradas vingarão: se a da prudencia ou a da imprudência.
Um forte abraço e parabéns pelo exposto.
Conselho Gestor do Açude Poço da Cruz
Ibimirim/PE