‘É preciso outro modelo de desenvolvimento’, entrevista com a antropóloga Maria Emília Lisboa Pacheco
Para a antropóloga Maria Emília Lisboa Pacheco, o modelo de desenvolvimento centrado nos direitos das populações e na valorização do meio ambiente seria o essencial
“Não há soberania alimentar sem a garantia da terra e do território”, constata Maria Emília Lisboa Pacheco. Para ela, sem a terra e o território não há como garantir a soberania alimentar. “E o papel das populações, de garantir e conservar a nossa biodiversidade, está intimamente associado ao direito de termos uma alimentação adequada, saudável. Por isso que é indissociável”.
Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, Maria Emília pondera que falar da terra, do direito à terra e ao território, é falar na concepção agroecológica, “na diversificação da produção, na conservação da biodiversidade, na valorização das culturas alimentares locais, além de uma alimentação adequada e saudável, trazendo consequências à saúde, com uma alimentação livre de agrotóxicos e transgênicos”. Segundo ela, uma alimentação diversificada garante seguramente mais saúde. “Há estudos que mostram isso. A nossa observação mesmo, empírica, pode constatar. Onde há diversidade com qualidade as pessoas estão com mais saúde”.
Maria Emília Lisboa Pacheco é antropóloga, assessora do programa Direito à egurança alimentar, à agroecologia e à economia solidária, na Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – Fase.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais foram as temáticas mais importantes discutidas no I Encontro Nacional de Diálogos e Convergências?
Maria Emília Lisboa Pacheco – Nós procuramos identificar conjuntamente, em uma reunião preparatória, quais eram os principais eixos ou grandes questões que articulam esse debate. Por isso nós organizamos a metodologia do encontro que tinha como ponto de partida o debate sobre experiências. Então, nós selecionamos algumas experiências de resistência, de construção de alternativas, a partir desses vários eixos que nós identificamos. Um deles foi justamente trabalhar ou debater sobre esses processos que a gente chama de desterritorialização, muito também devido ao avanço das monoculturas, dos grandes empreendimentos. Há um processo no Brasil, hoje, de expansão da mineração e também das hidrelétricas, e ao mesmo tempo queríamos relacionar esse processo com o fato de crescerem os mecanismos de mercantilização da natureza; por isso nós selecionamos também, como uma das experiências, a luta dos quilombolas no Espírito Santo, que lamentavelmente não puderam comparecer ao encontro. Selecionamos também a luta na região do Xingu contra a hidrelétrica de Belo Monte. Outro eixo era tentar ver como estão sendo articuladas as lutas por desapropriação de terras, nos assentamentos e a ocupação e uso das terras nos assentamentos rurais. Por isso debatemos uma experiência do MST em São Paulo. O que é muito interessante, porque é uma experiência de promoção da agroecologia em uma região que está cercada na indústria da cana.
IHU On-Line – Como o seminário buscou garantir diálogos que mobilizam as práticas de resistência e de alternativas para a sociedade?
Maria Emília Lisboa Pacheco – Nós construímos esse debate especialmente no diálogo da articulação da agroecologia com a rede de justiça ambiental, porque também era nossa perspectiva mostrar como esses processos de desterritorialização devem ser pensados e se articulam com sentidos dos princípios da justiça ambiental. Esse diálogo foi forte, porque nós vimos que nesses processos de luta pelos direitos territoriais, pela reforma agrária, estão em questão também a garantia dos recursos naturais, como bens coletivos; o direito das populações à proteção ambiental, à valorização das formas de viver dessas pessoas que são atingidas por esses grandes projetos. Como cada tema do encontro procurou interagir, promover o diálogo de várias redes, a ênfase dada na interação com uma ou outra rede ou com várias redes dependeu do tema. Nesse caso específico, foi sobretudo um debate entre a articulação da agroecologia com a rede de justiça ambiental. Esse foi um diálogo interessante porque ele trouxe à tona a análise desses processos de luta a partir de princípios da justiça ambiental. Ao final do encontro, tiramos algumas propostas de articulação em que assumimos o compromisso de participar, reforçar essa luta do Xingu vivo para sempre e também de valorizar a proposta de um assentamento, nesse exemplo do Movimento dos Sem Terra, porque ele articula bem o direito à terra com a gestão ambiental, em razão do tipo de projetos agroecológicos que desenvolvem. Além disso, há propostas de bioconstrução nesse assentamento. É muito interessante. Ele pode ser uma referência para outros projetos de assentamentos rurais no Brasil que têm tido muitas precariedades em sua existência.
IHU On-Line – Qual o seu posicionamento diante do problema de assassinatos, expulsão e deslocamentos compulsórios de populações pela ação dos grandes projetos como as hidrelétricas, expansão das monoculturas e o crescimento da mineração?
Maria Emília Lisboa Pacheco – Isso é gravíssimo, porque, na verdade, no Brasil essas mudanças capitalistas na agricultura foram reforçando o autoritarismo. O fato é que, no nosso país, o latifundiário e o empresário rural acabaram se fundindo no mesmo ator. E nós somos radicalmente contra esses processos, tanto de expulsão como os de assassinatos. Por isso é que nós valorizamos muito na articulação de agroecologia também uma interação com o Fórum Brasileiro pela Reforma Agrária e Justiça no Campo. E os conflitos de terra nos últimos tempos se intensificaram. Nós costumamos dizer que o cerco está se fechando cada vez mais sobre essas populações e nos indignamos com essas manifestações de violência e procuramos manter a nossa defesa de que não há como promover e expandir as propostas de agroecologia sem a garantia do direito à terra e ao território, sem a garantia de dignidade da vida dessas pessoas. Por isso que também no seminário nós dissemos que é preciso garantir o direito de ficar das populações.
IHU On-Line – Como analisa a pressão que as populações que ocupam tradicionalmente áreas de florestas, ribeirinhas e litorâneas, como os mangues e os territórios da pesca artesanal, sofrem?
Maria Emília Lisboa Pacheco – A gravidade no país é que nós nunca tivemos um processo de distribuição de terras e hoje as pressões sobre essas populações são de várias ordens. As principais áreas de conservação ambiental no Brasil estão exatamente onde vivem essas populações. E a expansão da monocultura e os grandes projetos surgem exatamente nessas áreas, expandem-se por esses territórios. Além, então, de elas serem expulsas, ainda há outro processo no Brasil muito grave que é da expropriação do conhecimento dessas populações, em alguns lugares, com a crescente privatização dos bens da natureza. Essas populações que antes eram consideradas atrasadas, primitivas, hoje têm seu saber expropriado pelas grandes empresas, porque elas detêm um grande conhecimento sobre a flora e, com a expansão do patenteamento, nós fizemos esse processo de luta, que é a defesa dos direitos coletivos dessas populações contra a expropriação do conhecimento delas, contra o patenteamento do conhecimento. Então, elas vivem várias formas de dominação, exploração. Por isso nós defendemos que é preciso construir outro modelo de desenvolvimento. Aliás, o Encontro de Diálogos se construiu tendo com um dos objetivos analisar esse embate que há entre modelos e afirmar os direitos dessas populações, ratificar que é possível outra agricultura e, para isso, é preciso também valorizar e reconhecer essas formas de vida desses vários segmentos de campesinatos no Brasil.
IHU On-Line – Até que ponto a incorporação de áreas de produção de agrocombustíveis reduz a produção de alimentos?
Maria Emília Lisboa Pacheco – Essa é outra situação grave. Não só a expansão dos monocultivos desloca as áreas de produção de alimentos, como também no Brasil tem, ao mesmo tempo, hoje, uma certa especialização na produção em algumas regiões de produtos que são básicos para a nossa alimentação. Por exemplo, o arroz hoje está concentrado mais no sul do Brasil, no Rio Grande do Sul, e isso é uma ameaça para a soberania alimentar, porque, com as mudanças climáticas, se um evento extremo acontece no estado, corremos o risco de ter que importar o arroz. São Paulo já não tem como se abastecer hoje com a produção de alimentos do próprio de seu próprio terrotório; precisa importar. Então, temos uma grande contradição. Na verdade, são duas ordens de contradições. Não só a expansão de agrocombustível reduz a área de produção de alimentos, como também requer mais combustível para garantir o abastecimento de muitas regiões. O passeio dos alimentos no Brasil, como dssemos, é insustentável. É preciso que a gente tenha um controle da expansão dessas monoculturas, que haja, de fato, zoneamentos agrícolas, ecológicos. Os assentamentos rurais do Movimento dos Sem Terra são hoje cruciais dessa região da cana em São Paulo para abastecer circuitos curtos de mercado, porque a dominância na paisagem da cana reduziu a capacidade de abastecimento. Por isso que no debate também de uma política de abastecimento, que hoje fazemos no Conselho Nacional de Segurança Alimentar, dizemos que é preciso ter um sistema de abastecimento descentralizado, com o papel regulador do Estado e com a garantia da produção de alimentos regionalmente, seguindo os padrões alimentares das regiões, as culturas alimentares. A expansão do agrocombustível vai na contramão dessa perspectiva de afirmar a soberania alimentar.
IHU On-Line – Que ações devem ser tomadas para garantir os direitos territorias da população? E quem deve se responsabilizar por tais atos?
Maria Emília Lisboa Pacheco – Primeiramente, já houve um avanço na Constituição brasileira em 1988, que reconheceu terras tradicionalmente ocupadas. Além disso, o Brasil já reconhece os direitos dessas populações. O Estado tem essa responsabilidade de fazer valer a Constituição. E, lamentavelmente, em relação às terras quilombolas, por exemplo, há uma proposta no Congresso de uma ação inconstitucional do artigo que garante o território das populações quilombolas. Na verdade, é fundamental, antes de ter um grande projeto, que o Brasil subordine as decisões econômicas, a garantia da soberania alimentar e dos direitos das populações. Ao Estado brasileiro cabe essa garantia. Agora, a mobilização social para essas conquistas é vital. E a luta nas bases, onde estão essas organizações, é fundamental, além da pressão sobre o Estado. Veja que recentemente o Estado reconheceu mais uma área quilombola, apenas mais uma, mas reconheceu. Então, é a combinação da luta do território com as articulações regionais, nacionais, essa interação de várias redes para apoiar essas lutas que tem o sentido histórico importante e pode gerar vitórias. Assim esperamos.
IHU On-Line – De que maneira o direito à terra e à água, à soberania alimentar e à saúde estão fortemente associados?
Maria Emília Lisboa Pacheco – Não há soberania alimentar sem a garantia da terra e do território. Quando nós falamos do território é porque várias populações do Brasil não vivem somente daquela terra demarcada em que plantam. A terra tem um sentido mais amplo; por isso que dizemos território. É um lugar de vida, um lugar em que, em geral, para essas populações, as áreas de uso comum, combinadas com as áreas próprias das famílias para pequeno cultivo, combinam as atividades de pesca, extrativismo, vegetal e, ao mesmo tempo, algum plantio. Isso é básico. Sem a terra e o território não há como garantir a soberania alimentar. E o papel das populações, de garantir e conservar a nossa biodiversidade, está intimamente associado ao direito de termos uma alimentação adequada, saudável. Por isso que é indissociável. Falar da terra, do direito à terra e ao território, é falar na concepção agroecológica, na diversificação da produção, na conservação da biodiversidade, na valorização das culturas alimentares locais, além de uma alimentação adequada e saudável, trazendo consequências à saúde, com uma alimentação livre de agrotóxicos e transgênicos; uma alimentação diversificada garante seguramente mais saúde. Há estudos que mostram isso. A nossa observação mesmo, empírica, pode constatar isso. Onde há diversidade com qualidade as pessoas estão com mais saúde.
IHU On-Line – Quais as principais razões para que a senhora seja contra o atual modelo de desenvolvimento brasileiro?
Maria Emília Lisboa Pacheco – O conceito de sustentabilidade socioambiental, que deveria presidir o processo brasileiro, está longe de acontecer. Nós somos um país megadiverso. Portanto, há campos do conhecimento, da pesquisa, que precisariam ser mais desenvolvidos. Para termos uma ideia, nós não sabemos no Brasil o que nós já perdemos, o que já aconteceu de erosão genética da nossa biodiversidade. E isso representa um potencial enorme. Nós não temos no Brasil estudos nutricionais que mostrem o valor dessa diversidade de alimentos. E somos um país que continua com essa perspectiva central de ser agroexportador, mesmo que isso signifique esses impactos negativos enormes sobre a população e meio ambiente. Por isso que é preciso outro modelo de desenvolvimento, que seja centrado nos direitos das populações, na valorização do meio ambiente. Nós não teremos saída na nossa história brasileira, mas também no planeta, se a gente não retomar um debate sobre a relação com a natureza, porque historicamente as mudanças que se deram, impulsionadas por esse modelo de desenvolvimento, foram subjugando cada vez mais a natureza. Precisamos, então, repensar isso. E hoje há um reconhecimento internacional sobre o que representa a agroecologia como ciência e também como movimento social que se baseia em outros paradigmas. Ademais, é possível alimentar a população sem destruir o meio ambiente, sem homogeneizar, porque se nós formos contabilizar esse modelo produtivista que se baseia para afirmar a sua superioridade, que se baseia somente de produtividade, veremos que isso é uma falácia, porque não é só o Estado que garante isso como também não se avalia o que esse fator está representando para o meio ambiente e para a saúde. Nosso país é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, e vemos como crescem também no Brasil várias doenças que são consequências desse modelo, que vai homogeneizando, desde a produção até o consumo. Por isso que eu aposto na contracorrente que tem contramovimentos, os quais precisam mostrar, cada vez mais, para a sociedade que há outras possibilidades, alternativas, e que seguramente trarão economia de outra ordem, porque uma população menos doente, menos afetada pelo impacto dos agrotóxicos, com alimentação mais saudável, seguramente vai representar menos gastos aos cofres públicos e um ambiente também restaurado, a natureza valorizada que, com certeza, nos proporcionará melhores condições de vida.
(Ecodebate, 28/10/2011) Entrevista realizada por Thamiris Magalhães e publicada pela IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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Outro modelo de desenvolvimento não atende aos interesses das empresas e dos Estados capitalistas. Portanto, só será implantado através de revolução social ou após a destruíção quase total das condições de vida no Planeta.
Como estará a Terra ( rios, lagos, oceanos, florestas, cidades ) quando os atuais 7 bilhões de habitantes humanos se tornarem 14 bilhões, 21 bilhões, 28 bilhões, etc. ? Só quero ver!