Urbanização ‘à brasileira’ mostra intolerância à pobreza
O ininterrupto crescimento da cidade de São Paulo, tanto econômico quanto físico, produz uma perversa desigualdade social. João Ferreira, arquiteto e economista, defende que transformar e tornar esse espaço mais igualitário passa por uma mudança de conduta individual, pressupondo um combate as atitudes que, mesmo de forma velada, reproduzem uma cultura da intolerância aos pobres. Para Ferreira, aquilo o que hoje é celebrado como modernidade é a causa do padrão urbano excludente. Padrão que não se restringe à cidade de São Paulo, que é apenas o caso mais evidente e que infelizmente serve de modelo para o resto do país. As conclusões estão contidas no artigo “São Paulo: cidade da intolerância, ou o urbanismo ‘à Brasileira‘”, publicado na revista Estudos Avançados (http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142011000100006&script=sci_arttext)
Intolerância que Ferreira define como resultado de uma sociedade em que predomina a indiferença. Ele explica: “a exclusão dos mais pobres produz uma lógica perversa em que as classes dominantes cultivam a sensação de que a cidade funciona sozinha, ignorando que é um contingente populacional importante e pobre que a move, mas que tem que desaparecer findo o serviço”. Não só indiferente, a cidade é também intolerante: “o desprezo, a desconsideração para com as condições de vida dos mais pobres e suas demandas são também motivados por políticas e ações bem determinadas, porém veladas. O que nos remete à sensação de uma espécie de apartheid”.
Políticas implementadas por um Estado que promove uma urbanização desigual, porque é ele quem define a disponibilidade dos chamados instrumentos urbanísticos. Seu papel seria o de garantir uma produção homogênea de infraestrutura pública, evitando, assim, a exclusão das parcelas populacionais de menor renda. No entanto, no Brasil, como explica o autor “confunde-se o público e o privado na defesa dos interesses das elites, e essa equação afetou dramaticamente o modelo da nossa urbanização”. Teria sido desenvolvida no Brasil uma situação de segregação socioespacial em que a população mais pobre, sem opção de moradia, foi se “exilar na periferia”.
Embora causada pelo Estado, a segregação seria legitimada pelas classes dominantes, que o coagem para que aja em benefício delas. Exerceria assim o que o autor chama de “racismo à brasileira”, ou seja, um racismo que existe mas não é confesso, e que não por isso faz menos vítimas. Essa intolerância à pobreza é revelada em várias ações, exemplifica Ferreira, como no caso de empreendedores de um condomínio de luxo que, incomodados com a vista para uma favela, acharam por bem ‘estimular’ a saída dos indesejados vizinhos pagando-lhes R$ 40 mil por família. E também uma política da prefeitura de São Paulo que se encarrega da ação de ‘limpeza’, oferecendo o ‘cheque de despejo’, R$ 1,5 mil para sair de suas casas, e R$ 5 mil se a família fizer a ‘gentileza’ de voltar ao seu estado de origem.
O Estado, além de não desenvolver políticas habitacionais que beneficie os mais pobres, acaba por impedi-los de viver em bairros mais ricos. Isso faria sentido pelo Estado ser patrimonialista, legitimado pelas classes mais abastadas, e em que o direito à propriedade está acima do direito à moradia. Uma realidade perversa em que a desigualdade não ocorre por falta de leis, mas pelo contrário, é legitimada por elas.
Ferreira aponta caminhos para reverter essa desigualdade, pois desde a redemocratização do país os governos comprometidos com as demandas populares propuseram uma “reforma urbana”, conseguindo pelo menos inserir essa problemática na agenda política. Um exemplo teria sido a criação do Ministério das Cidades e do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – embora até hoje não tenham tido quase nenhuma efetividade. Essa dificuldade em transformar essas propostas em verdadeiras ações ocorreria, segundo explica Ferreira, porque “uma das razões desse impasse está na dificuldade de transformação do próprio Estado e, em maior escala, do sistema e das práticas políticas que o legitimam. Uma máquina aperfeiçoada durante séculos para dificultar qualquer tentativa de transformação da lógica de produção do espaço urbano desigual não facilita a vida daqueles que participam de gestões com intervenções verdadeiramente públicas”.
Por Isabela Palhares, da ComCiência, Revista Eletrônica de Jornalismo Científico, LABJOR/SBPC.
EcoDebate, 11/08/2011
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Ao capitalismo interessa o crescimento da pobreza. Mas a grande população de pobres, ao mesmo tempo que é incentivada pelo sistema para se reproduzir indefinidamente, compõe a paisagem urbana com aspectos de carencia de meios de vida, o que é imensamente desagradável: agride a paisagem , o meio ambiente e a sociedade. Mas a lógica do capitalismo não pode ser outra, e ele estaria se autonegando, se fosse diferente. Para o capitalismo, a pobreza é um mal necessário à sua própria sobrevivência. Evidentemente, não pode haver uma classe de exploradores sem que haja uma muito maior de explorados. E não se pode esperar mais do Estado senão alguns pequenos arranjos. Ele é o Estado dos capitalistas, dos exploradores, e não dos explorados.