Ano de 2010 termina com privatização no SUS, artigo de Raquel Júnia
Em São Paulo, assembléia legislativa aprova reserva de 25% de vagas em hospitais públicos para convênios e planos de saúde. Movimentos planejam questionar lei na justiça
Primeiro, foi criada a Constituição Brasileira, em 1988, e com ela o Sistema Ùnico de Saúde (SUS) para atender a todos os brasileiros. Naquela época, os hospitais do SUS eram públicos. Dez anos depois, em São Paulo, foi permitido por lei estadual que a gestão desses hospitais fosse privatizada e eles passassem a ser administradas pelas Organizações Sociais (OS). Agora, outra vez, pouco mais de dez anos depois, uma modificação na lei permite que leitos e serviços dos hospitais públicos, geridos por OS, sejam vendidos. No dia 21 de dezembro de 2010, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) aprovou por 55 a 18 votos o Projeto de Lei Complementar (PLC) 45 de 2010 , que permite a destinação de 25% dos leitos e atendimentos de hospitais do SUS a particulares e usuários de planos de saúde privados. A mudança valerá para as unidades geridas por OSs, que, segundo a Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, contabilizam 20 hospitais. O projeto foi enviado à Alesp pelo governo de Alberto Goldman (PSDB/SP) em regime de urgência e ainda precisa passar pela sanção do novo governador. Movimentos sociais ligados à saúde asseguram que questionarão a mudança na justiça e que a proposta fere a Constituição federal.
De acordo com Spina, o processo de aprovação do PLC foi conduzido de forma a impossibilitar a discussão da proposta. “Organizamos manifestações na Assembleia Legislativa, junto com o Sindisaúde, o Sindisprev e outros sindicatos aqui de São Paulo. Sempre que havia perspectiva de votar a proposta, reuníamos as pessoas para estarem na porta da Assembleia. No dia em que foi aprovado o projeto eles inverteram a pauta, votaram primeiro o orçamento, deixaram bem esvaziado o plenário para cansar e aprovar apenas no fim da noite, às vésperas do natal”, relata.
O deputado estadual Raul Marcelo (PSOL/SP), um dos que fizeram oposição à iniciativa, reforça a descrição do militante do Fórum Popular de Saúde. “Não houve tempo para nenhuma discussão, foi no apagar das luzes de 2010. Os planos de saúde estão financiando muitas campanhas em São Paulo e aí o lobby é muito pesado na Assembleia”, denuncia.
Em 2009, quando outra modificação na lei de criação das Organizações Sociais (OS) da Saúde foi aprovada – a que permite que unidades de saúde antigas também possam ser geridas por OS – também se tentou aprovar uma emenda que garantia a destinação de 25% dos leitos e serviços para particulares e conveniados. Entretanto, na ocasião, o governador José Serra (PSDB/SP) vetou o trecho. “Era período eleitoral e ele [José Serra] teria desgaste, então vetou. Mas, passada a eleição, novamente o PSDB mandou o projeto e é isso o que está acontecendo”, analisa Paulo Roberto Spina, do Fórum Popular de Saúde do Estado de São Paulo.
Privilégios no SUS
Em nota , a Secretaria de Saúde de São Paulo respondeu que, com a aprovação da proposta, não haverá prioridade para o público pagante nas unidades de saúde. “A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo esclarece que o projeto de lei complementar nº 45/2010, encaminhado à Assembleia Legislativa pelo governo paulista, de maneira nenhuma significa restrição de atendimento aos pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde) em hospitais estaduais, em detrimento dos clientes de planos de saúde. Não é correto, portanto, dizer que os pacientes do SUS poderão perder 25% de suas vagas para os convênios médicos em hospitais públicos estaduais. (…)É importante ressaltar que o projeto, caso seja aprovado, não irá alterar a rotina da prestação de serviços aos pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde) nos hospitais estaduais gerenciados por Organizações Sociais de Saúde. Tampouco haverá qualquer prioridade ao atendimento de usuários de planos ou convênios de saúde”, afirma a nota.
Entretanto, para o pesquisador do departamento de medicina preventiva da faculdade de medicina da Universidade de São Paulo, Mario Scheffer, a iniciativa cria o que ele chama de um “apartheid hospitalar dentro do SUS”. “As pessoas serão atendidas não de acordo com a sua necessidade de saúde, mas de acordo com a sua possibilidade de pagamento, com a possibilidade de ter ou não um plano de saúde. Isso é muito ruim: passa-se a ter cidadãos de primeira e de segunda categoria nas mesmas unidades do SUS”, questiona.
O pesquisador lembra que já há unidades com filas duplas no SUS, como no caso dos hospitais universitários. Ele ressalta que as experiências já existentes mostram que a prioridade de atendimento passa a ser para o público pagante ou conveniado, que tem também um serviço diferenciado de hotelaria. “Além disso, se consegue agendar consultas, exames, internação com bastante antecedência se comparado com os meses de espera para algumas especialidades do SUS”, aponta.
De acordo com a mensagem enviada à Alesp pelo então governador Alberto Goldman, a iniciativa tem como objetivo promover o ressarcimento dos planos de saúde ao SUS, já que cerca de 40% da população do estado de São Paulo possui planos. A nota enviada pela Secretaria Estadual de Saúde confirma a justificativa. “Hoje os hospitais estaduais gerenciados por Organizações Sociais de Saúde (entidades sem fins lucrativos) já recebem, espontaneamente, pacientes que possuem planos ou seguros de saúde privados. Mas não há possibilidade legal de esses hospitais cobrarem das empresas de planos de saúde ressarcimento do valor gasto para atender seus clientes. A conta, portanto, vai para o SUS, onerando o sistema”, diz o texto. A nota cita ainda como exemplo o caso do Instituto do Câncer de São Paulo (Icesp) e afirma que na unidade cerca de 18% do total de usuários possuem planos de saúde.
Mário Scheffer rebate a afirmação da secretaria de que não há possibilidade legal de os hospitais cobrarem o ressarcimento dos planos de saúde. “Já existe a lei dos planos de saúde [Lei 9.656/1998], que prevê o expediente do ressarcimento ao SUS. Toda vez que um paciente de um plano de saúde for atendido num hospital público, a operadora tem que ressarcir os cofres públicos desse atendimento. O SUS não tem recebido porque a Agência Nacional de Saúde (ANS), que regula os planos de saúde, juntamente com o próprio governo do estado de São Paulo não efetivaram o ressarcimento ao SUS”, diz.
Paulo Spina lembra também que em 2010 o Supremo Tribunal Federal determinou que os convênios deveriam cumprir a lei e ressarcir o SUS em nível federal. “Portanto, nós temos mecanismos legais para cobrar do convênio quando a pessoa interna no SUS. Não é preciso fazer uma separação de vagas. Na verdade precisaria que a ANS funcionasse e que não fosse um organismo a serviço dos convênios e dos planos de saúde, mas a serviço dos usuários e do SUS”, critica.
Quem ganha e quem perde
Para a Secretaria Estadual de Saúde, quem sai ganhando com a nova legislação são os hospitais públicos, que terão outra fonte de recursos para investimento. Mas para movimentos sociais e pesquisadores que afirmam que a medida é inconstitucional, quem ganha é o setor privado e os planos de saúde. “É mais uma forma de se entregar o espaço público do SUS para o setor privado. Hoje existe um crescimento grande de planos populares, são planos baratos para as classes c e d, em ascensão, com a rede credenciada muito diminuída. E as operadoras que vendem esses planos certamente vão se beneficiar muito ostentando na sua rede credenciada esses hospitais públicos, que são de excelência, e que vão agregar um valor a esses planos medíocres”, aposta Scheffer. Além disso, o professor reforça que não está especificado na lei para onde vão os recursos que, de acordo com a mudança, serão pagos pelos planos.
Para além da discussão da constitucionalidade da recente medida aprovada pela Alesp, há uma outra ação na justiça que questiona o próprio modelo de gestão por OS aprovado em São Paulo há mais de dez anos. A Adin 1923 tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) desde 1998. “Infelizmente a ação não foi julgada até hoje. As organizações sociais já são inconstitucionais, serviço público tem que ter servidor público concursado, como diz o artigo 37 da Constituição. Além disso, os princípios do SUS de participação, transparência, equidade e os demais são todos desrespeitados pelas OS’s”, diz o deputado Raul Marcelo.
Mário Scheffer acredita que a proposta do PLC 45/2010 evidencia também a falência do modelo das OS. O pesquisador destaca que quando a lei das OS foi aprovada, em 2005, os hospitais geridos por elas receberam momentaneamente muitos recursos, mas que hoje, esse montante diferenciado já não está mais disponível para essas organizações. “Esses hospitais tinham grandes privilégios, receberam um financiamento extraordinário, receberam todo equipamento, não tiveram que colocar recursos de custeio, ou seja, foi criada uma vitrine assistencial. Só que passados dez anos, estes hospitais começam a precisar de reformas, de mais equipamentos, de mais pessoal. E os recursos não são suficientes, porque foram investidos recursos muito privilegiados, que as próprias unidades do SUS não tiveram à disposição. Então, o que aprovaram agora é uma lei também no sentido de salvar essa vitrine assistencial do estado de São Paulo”, afirma.
O SUS é de todos
Para o Fórum de Saúde de São Paulo, no Brasil como um todo há muito mais recursos no setor privado da saúde, o que impede que o SUS seja de fato universal. “Há uma equação totalmente perversa no investimento em saúde no Brasil, com um investimento muito maior na rede privada do que na rede pública, sendo que apenas 20% da população utiliza a saúde privada. O desejável é que 100% das pessoas utilizem o serviço público, por isso a lei aprovada não se justifica”, observa Spina.
Mário destaca ainda que de fato uma porcentagem alta das pessoas que têm planos de saúde acabam recorrendo ao SUS, já que os planos são precários e com várias restrições de atendimento. “Elas entram no sistema porque não conseguem atendimento na rede privada, principalmente nos atendimentos mais caros, de maior complexidade. O SUS atende quase a totalidade dos atendimentos de urgência e emergência, mas também toda a questão dos transplantes, Aids, renais crônicos, atendimentos psiquiátricos”, descreve. E reforça: “Esse fluxo de usuário no SUS já existe, mas o SUS é de todos, tem que atender todo mundo que chega até ele. Então, a distorção é anterior, não será isso que irá resolver a distorção, pelo contrário isso só irá aumentar esta diferenciação”.
Uma preocupação dos setores contrários à lei aprovada em São Paulo é de que essa mudança passe a valer em outros estados e municípios. Por isso, de acordo com Spina, o movimento intensificará as manifestações em cada unidade onde a lei for implementada, além de questionar judicialmente a medida no Ministério Público. “Os usuários e os trabalhadores da saúde já estão enxergando que a privatização não é solução, que está pior, que o serviço de entrega de remédios, por exemplo, funcionava melhor antes, que o laboratório antes de ser terceirizado funcionava melhor”, relata.
Para Mário Scheffer, é preciso também aproveitar que em 2011 uma nova gestão assume o Ministério da Saúde e que será realizada a Conferência Nacional de Saúde para que a questão seja discutida nacionalmente. “Este debate tem que ser nacional, assim como está sendo o debate das OS e das fundações estatais de direito privado”, alerta.
Raquel Júnia – Escola Politécnica de Sáude Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
Artigo socializado pela EPSJV :: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio :: Fiocruz e publicado pelo EcoDebate, 10/01/2011
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