Trem bala: insustentável ambientalmente, artigo de Tomás Togni Tarqüinio
[EcoDebate] Se fosse possível realizar um estudo prospectivo do trem bala à luz da crise ecológica em curso, provavelmente o resultado não seria alentador. A construção de uma linha férrea para Trens de Alta Velocidade (TAV) ligando o Rio de Janeiro a São Paulo, com uma extensão até Campinas, não responde a dois grandes desafios ambientais: o primeiro diz respeito ao esgotamento de recursos naturais não renováveis, no caso o petróleo; o segundo, às mudanças climáticas decorrentes de emissões de gases efeito estufa provenientes do uso de recursos fósseis. Ambas questões estão imbricadas.
Quando se fala em esgotamento do petróleo, isto não significa que o precioso líquido vai desaparecer do planeta de uma hora para outra. Ele existirá ainda por muitos anos, mesmo que seja para fazer velas. Por esgotamento entende-se fim da era do petróleo barato e abundante.
A humanidade está às vésperas de conhecer o pico de produção mundial de petróleo, ponto a partir do qual ela entrará em declino – também conhecido como pico de Hubbert, nome do geólogo americano que previu esse fenômeno nos Estados Unidos, também conhecido como depleção. Há décadas vários especialistas vêm considerando que o pico de produção mundial deverá ocorrer entre 2010 e 2020. Este é alcançado quando a metade da jazida foi extraída, restando no solo a outra metade. Como no caso de qualquer jazida mineral, que dispõe de um estoque inicial fixo, a produção cresce até chegar ao máximo, passa por um pequeno período de estabilidade e depois entra em inevitável depleção (pode ser representada por uma curva de Gauss). A parte que resta a extrair é aquela que apresenta custos de extração elevados e baixa qualidade, é de difícil acesso e exige tecnologia sofisticada. Os especialistas não são meia dúzia de ambientalistas com vocação para Cassandra. São geólogos competentes que tiveram a pachorra de levantar as reservas em todo mundo, poço por poço. Ora, como o pico da produção é para breve, os efeitos do esgotamento progressivo não serão um problema para as gerações futuras, mas sim para a atual. Quando se fala em petróleo barato, significa dizer que, historicamente, os preços conheceram uma tendência para a baixa, em valores constantes, desde o inicio de sua exploração comercial em grande escala, em meados do século XIX, quando o coronel Drake furou o primeiro poço na Pensilvânia e condicionou o produto em barris de arenque para uso como lume. A produção mundial atual é da ordem de 85 milhões de barris/dia e dificilmente chegará a 100 milhões.
Quem observa a matriz energética mundial fica perplexo diante da sua dependência de energias fósseis (petróleo, carvão e gás natural). Estas três fontes são responsáveis por mais de 80% do consumo total de energia do planeta. Em outras palavras, menos de 20% do consumo de energia não emite CO2, entre estes o nuclear. Grosso modo, o petróleo é responsável por mais de um terço do consumo total de energia do planeta (35%), seguido do carvão (25%) e do gás natural (21%). A biomassa, sobretudo a lenha, representa algo em torno de 9%; a hidroeletricidade e o nuclear respondem por 5% do consumo mundial de energia cada um, aproximadamente. As fontes de energia menos representativas são a geotermia com 0,5%, os agro-combustíveis com algo em torno de 0,4%, a energia eólica, com 0,07 e o solar fotovoltaico 0,0007% do consumo mundial total de energia. As energias alternativas, no caso a solar e a eólica, são pouco expressivas e poderão desempenhar um papel mais relevante na matriz energética mundial daqui a 50 anos. Antes disso, elas estarão presentes apenas na imprensa e nos anseios de ambientalistas.
A produção mundial de petróleo foi multiplicada por mais de oito vezes, entre 1950 e 2008, ou seja, durante o tempo de uma vida. Mas, como se trata de recurso não renovável, cujo estoque é invariável, será impossível dar continuidade a este crescimento progressivo tal como ocorreu até agora. Em breve assistiremos a redução da produção, mas com a demanda mundial em crescimento.
A dependência dos transportes de petróleo é absoluta (gasolina, diesel, querosene, óleo combustível). Quando comparado a outras atividades (agricultura, indústria, energia, mineração, etc..), o transportes é o setor mais inflexível no tocante a substituição do petróleo por outras formas de energia primaria, renováveis ou não renováveis. Por exemplo, após os choques do petróleo de 1973 e 1979, os setores industrial e residencial conseguiram substituí-lo pelo carvão, gás natural e nuclear. O mesmo não ocorreu com transportes, apesar de uma notável melhoria da eficiência dos motores térmicos. O único programa de substituição de energia que obteve sucesso foi a transferência da gasolina pelo álcool da cana-de-açúcar, que ,além de renovável, é neutro em matéria de emissões de CO2.
Para se ter uma idéia da sua onipresença no setor transporte, 20% do consumo total de energia no planeta é destinada a este setor. Enquanto que o petróleo responde por 96% da energia mundial consumida pelo transportes. Em outro registro, 55% do petróleo extraído são destinados ao transporte de bens e pessoas. Como se não bastasse, é também onde o crescimento médio da demanda mundial de energia é o mais elevado, da ordem de 2,1% ao ano, enquanto que o do setor industrial e residencial é da ordem de 1,5% anual. Os países emergentes que o digam, com seu vertiginoso aumento da frota de veículos.
Essas cifras nos dão uma exata dimensão do papel desse recurso no processo de globalização, que muitos imaginam perene. Basta observar a nossa volta: todos os objetos que nos cercam foram transportados por um veículo a motor térmico movido por um dos derivados de petróleo. A ponto de permitir certas façanhas, como por exemplo, permitir a um turista, que chega de avião em Florianópolis, almoçar a beira mar um filé de peixe que veio do Vietnã, congelado! Ou a uma empresa do sudeste do país importar fibra de côco da Indonésia!
No Brasil, a dependência do setor também é importante, pois 80% da energia consumida pelo transporte provêem do petróleo, apesar do Plano Álcool. Este produto renovável responde por 17,6% do consumo total de energia do setor. Os caminhões, aviões, ônibus, barcos continuam tributários do diesel e querosene.
Face ao fim do petróleo barato e abundante, o desenvolvimento de ferrovias é a solução que melhor responde às necessidades do desenvolvimento durável, ou ecodesenvolvimento, em um país continental. Preferencialmente se movidas por hidroeletricidade. O Brasil não somente dispõe de grande potencial hidráulico ainda por explorar, como 82% da eletricidade produzida é origem hidroelétrica, inclusive importada. O restante da produção é originário de centrais térmicas a gás e carvão (15,4%) e nuclear (2,8%). Evidentemente que não será possível mover trens por hidroeletricidade se continuarem a desmatar em nome da reprimarização de nossa economia. Quem diz hidroeletricidade, diz água; quem diz água, diz florestas; quem diz florestas, diz água estocada no solo. E água estocada move turbinas. Desta maneira seria possível substituir parte dos derivados do petróleo, preparando o país para melhor enfrentar as vicissitudes do esgotamento de recursos naturais e das mudanças climáticas.
Ainda que o trem bala seja movido a hidroeletricidade, o seu problema é que ele só transporta passageiros. Por esta razão, a sua contribuição para contornar a crise ecológica seria pouco relevante, uma vez que em nada coopera para a descarbonização do transporte de carga, principal consumidor de derivados fósseis do país. Além do mais, como parte significativa dos futuros passageiros serão proprietários de veículos a álcool, ao substituírem o carro pelo trem, substituirão o álcool pela hidroeletricidade. Uma energia renovável por outra. O mesmo ocorre em menor escala no caso dos passageiros com veículos movidos a gasolina, pois a ela agregam álcool em 20% aproximadamente. Face à crise ecológica, este meio de transporte rápido não tem nenhum senso. Tanto mais que se trata de investimento considerável, da ordem de R$ 40,0 bilhões, que ninguém sabe ao certo.
Somente haverá sentido em construir ferrovias se também for destinada ao transporte de cargas e visando interligar as várias regiões do país. Ora, a concepção que está por traz do projeto do TAV se resume no seguinte adágio: “mais rápido, mais longe, mais vezes e mais barato”. Enquanto que, à luz da crise ecológica, ocorrerá exatamente o contrário: “mais devagar, mais perto, menos vezes, e mais caro”. O importante, no futuro, não é tomar um trem pela manhã em São Paulo para assistir a Copa no Rio de Janeiro e voltar para jantar na Avenida Paulista, graças a trocentos quilômetros por hora. O que importa é dispor de um sistema ferroviário que seja capaz de ligar Rio a São Paulo em cinco horas, vinte ou mais vezes ao dia, transportando pessoas e cargas. Mas, isto não existe nem mesmo para Campinas.
Ora, não é necessário sair de Harvard, Sorbonne ou da Politécnica, para ficarmos em tom mais prosaico, para se dar conta de que esse projeto é uma aberração, não somente ecológica, mas também econômica.
Enfim, os transportes terão sempre um papel fundamental. Mas, em pouco tempo, sua exuberância será bem menor. Por esta razão, seremos obrigados a aproximar a esfera da produção da esfera do consumo, produzindo e consumindo na proximidade, tanto quanto for possível, evitando-se ao máximo o transporte de bens. Ao mesmo tempo em que deveremos intensificar o transporte imaterial, graças aos novos meios de comunicação e informação. Caso contrário, assistiremos de maneira drástica ao fim do modo de vida tal como o conhecemos e que muitos tiveram acesso nesses últimos anos. A pressão sobre o clima, o esgotamento dos recursos naturais, a perda de biodiversidade e as poluições diversas e variadas – os novos cavaleiros do apocalipse – se encarregarão de transformar brutalmente as sociedades – econômica, social e politicamente.
Se alguém ainda crê que a tecnologia resolverá o problema, como um “deus ex machina”, esquece que a questão se agrava em razão da pressão desmedida feita sobre os estoques naturais, vivos e inanimados, graças a ela, a própria tecnologia.
Tomás Togni Tarqüinio, Antropólogo e pós-graduado em prospectiva pela EHESS, Paris, 3.ttt{at}bol.com.br
EcoDebate, 29/10/2010
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