O ‘Pai da Coalhada’ chegou sem avisar, artigo de Juracy Nunes
[EcoDebate] Não é assombração nem ente mitológico, é assim como é chamado o trovão no Sertão nordestino. Na última quita feira, 21/10 às 20h ouvi um ruído forte. Pareceu ser um trovão, mas em pleno mês de outubro no Cariri paraibano? Deve ter sido algum avião que passou por aqui perdido.
Mas logo após um clarão seguido de novo estrondo. Estava confirmado, era o relâmpago acompanhado do trovão.
Onde tem fumaça tem fogo, onde tem relâmpago e trovão tem chuva, assim nos ensina a sabedoria popular.
Mas chuva em Monteiro, no mês de outubro? Ou aqui vai virar Sul ou o mundo vai se acabar assim pensam os sertanejos de tanto valorizarem os fenômenos naturais.
Às 23h a chuva chegou, a água correu nas biqueiras, as ruas pareciam riachos com água corrente e uma comemoração abusiva da derrota de um político foi rapidamente suspensa. A pluviosidade chegou a 100 mm em alguns sítios. No dia seguinte fui ao consultório vazio porque ainda chovia e tendo um fato novo do porte de muita chuva fora de tempo, até as doenças vão embora. Mesmo assim chegou uma revisão. Um matuto calejado lá da Serra do Mocó de Cima. Cumprimentei o cliente indagando: Lá choveu?
Doutor choveu a noite inteira e o Pai da Coalhada não deixou ninguém dormir, por isso minha dor piorou.
Explique esta história de Pai da Coalhada, é algum fantasma? Perguntei ao cliente.
Doutor não brinque com as coisas de Deus. O Pai da Coalhada é o trovão. Ele traz a chuva. E o senhor sabe que no nosso Sertão seco cinco dias após uma chuva igual à de ontem o gado já enche o bucho. O aperitivo dos bichos é a ponta de rama, a folha que brota de mato que o senhor vendo na seca jura que morreu. O marmeleiro a jurema e as ervas rasteiras se fazem de mortas, mas com qualquer chuvinha elas brotam e com duas semanas está tudo verde e está garantido a comida farta para os bichos e prá quem cuida deles.
E a coalhada? Bem este rodeio eu fiz para responder melhor a sua pergunta. A vaca comendo pasto verde dá leite e do leite se faz coalhada. A coalhada com açúcar ou com rapadura raspada, engorda menino novo, velho descarnado e trabalhador da enxada. E tudo começa com o trovão. Entendeu?
Entendi muito obrigado pela explicação, essa capacidade de recuperação da flora sertaneja é chamada pelos biólogos de xerofilismo e graças a esta força da Natureza o Sertão não virou deserto.
Mas a chuva chegou sem aviso de meteorologista, de gente do mato ou da cidade, nem caboré ou formiga de asas se manifestaram para que tivéssemos tempo de olhar as goteiras ou limpar as calhas que levam água para as cisternas. Porque o segredo foi tão bem guardado?
È o capricho lá de cima.
O senhor está coberto de razão. Deus queira que venham outras chuvas para o trovão não perder seu apelido tão respeitado.
Monteiro/PB, 23/10/2010
Juracy Nunes juracysnunes{at}gmail.com
EcoDebate, 26/10/2010
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Parodia real.
Dr. Juracy, figura digna de todos os encômios, além dos cediços dotes na ciência médica, revela-se para os leitores como escritor e agora cronista de escol. Brinda-nos mais uma vez com este belo ensaio que, rememorando a cultura nordestina, mostra quão rica de valores ela é. Saúdo o cronista e espero, louvando-me do matuto da serra do mocó, que “venham outras chuvas”, que venham outros artigos e crônicas!