Tragédia das chuvas e o Código Florestal, artigo de Mauro Buarque
[Diário de Pernambuco] No momento em que o Congresso Nacional discute a reforma do Código Florestal, Lei Federal nº 4.771 de 1965, que confere proteção às florestas existentes nas margens dos rios, o que os especialistas chamam de mata ciliar (numa alusão à função dos cílios em relação aos nossos olhos), acontece em nosso Estado mais um incidente de cunho ambiental por desobediência histórica às premissas das leis dos homens e da natureza.
Sem querer apontar culpados, de um lado tem a população que compulsoriamente ocupa de forma irregular e ilegal áreas sob a proteção da Lei Federal; de outro, temos o poder público que é sistematicamente leniente e omisso. Tragédia ocorrida, sabe-se que houve os dois fatos e deve-se neste contexto compreender quais os detalhes jurídicos que legisladores e gestores devem construir para precaver e amparar a população.
A manutenção de um regramento básico e norteador num país megadiverso, comoatualmente é o Código Florestal, seguramente preserva a população de novos desastres ambientais. Fugir desse regramento, baseando-se na tese que o Brasil tem dimensões continentais e que para tanto deve ter regras estaduais para a ocupação dessas áreas frágeis, será o começo do nosso fim.
O deputado Aldo Rebelo, Relator da proposta de alteração do Código Florestal, defendeu em relatório a proposta de isentar pequenas propriedades rurais de respeitar a reserva legal (20% da área da propriedade). Ou seja, o que poderia ser um instrumento de proteção das margens dos rios, já que a reserva legal pode ser a área de preservação permanente se transformará em um estímulo à ocupação de áreas que os rios utilizam para expandir suas calhas e vazar águas no período das chuvas. Transformará alguns casos de exceção e o que foi descumprido (inclusive os que não foram apurados nas esferas administrativa e judicial) em regra.
Caso essa proposta prevaleça, iremos conferir à legislação um grande retrocesso, exatamente em tempos de crise ambiental planetária. Na contramão de outras teses e sabendo que o Brasil já produz mais alimentos do que consome, o deputado defende que “devemos garantir a produção de alimentos para todos os brasileiros a qualquer custo. Para tanto, deve-se ocupar se necessário todas as áreas agricultáveis do território nacional – inclusive as de Reserva Legal e de Preservação Permanente preservadas pelo Código Florestal”. Essa tese, que é a mesma da bancada ruralista, seguramente elevará as cifras que o Estado brasileiro deverá gastar desnecessariamente a partir dessa prática. Isso porque teremos mais tragédias, mais refugiados ambientais para acolher e mais cidades para reconstruir.
A Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo, promoveu recentemente estudos que mostram que somente nas áreas tidos como de pasto (terrenos que já foram modificados) há terra fértil suficiente para dobrar a atual produção de grãos no Brasil. O país tem a possibilidade de duplicar sua área de agricultura e pecuária sem mudar a lei, apenas com investimento em tecnologia agrícola. Já no caso das áreas urbanizadas dos municípios, sabendo-se que muitas cidades foram fundadas antes da entrada em vigor do atual Código Florestal, devemos atentar para o processo de desenvolvimento dessas cidades uma vez que grande parte delas não levou em conta a intenção do legislador de resguardar e proteger áreas para que os rios pudessem pulsar e ocupá-las durante a ocorrência das chuvas. Essa desatenção, juntamente com a ocupação desordenada de encostas de morros (áreas que também são protegidas pela Lei), tem levado à proporção das tragédias, como a do vale do Rio Itajaí (SC) e a que aflige todos os anos os morros do Recife e região metropolitana.
Assim como o estado de Pernambuco está fazendo escola na adoção de políticas para convivência com as mudanças climáticas, a partir da Lei Estadual sancionada na semana passada, devemos também fazer história e investir em inteligência e informação para que possamos prever com mais segurança e mais antecedência (assim como o Lamepe previu), os eventos extremos do clima. Entretanto, de nada adiantará se não trabalharmos em várias frentes. Inicialmente, temos que aprender com os erros do passado e com os que cometemos no presente, especialmente com a ocupação indiscriminada do território e do consumo dos recursos naturais. Por fim, é urgente que mantenhamos as proteções definidas pelo Código Florestal e que na reconstrução das cidades devastadas sejam respeitadas não só a lei dos homens, mas também a lei da natureza.
Mauro Buarque // Presidente Nacional da Associação de Órgãos Municipais de Meio Ambiente
mmbuarque{at}gmail.com
Artigo originalmente publicado no Diário de Pernambuco.
EcoDebate, 01/07/2010
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