A megadiversidade brasileira. Entrevista especial com Paula Leitman e Gustavo Martinelli
A primeira meta da Convenção sobre a Diversidade Biológica da ONU, cujo prazo final é 2010, foi cumprida. Mais de 400 pesquisadores brasileiros se envolveram no trabalho que conseguiu fazer um cadastro inédito com mais de 41.121 espécies da nossa flora. A lista foi idealizada pelo Ministério do Meio Ambiente e elaborada pelo Centro Nacional de Conservação da Flora (CNCFlora). A IHU On-Line conversou, por telefone, com uma das pesquisadoras envolvidas no projeto, Paula Leitman, e o coordenador do CNCFlora, Gustavo Martinelli. Eles contaram como a pesquisa foi feita, as novidades que ela trouxe e a representação dela para a biodiversidade do país.
“Essas 40 mil espécies incluem vegetais, fungos, algas, entre outras. Os cálculos apontam que cerca de uma espécie nova é descrita e publicada a cada dois dias no Brasil”, relatou Gustavo. Paula explica que agora o desafio é fazer outra lista, mas das espécies raras ou em extinção. “Esta pesquisa faz com que tenhamos a real noção de quantas espécies podemos trabalhar e quais estão ameaçadas. Serve também para fazer fóruns regionais com o objetivo de saber o que existe dentro de cada estado, para cruzar os dados com os de unidades de conservação”, explicou.
Paula Leitman é botânica pela Universidade Santa Úrsula (RJ) e assistente de coordenação da Lista de Espécies da flora do Brasil. Atualmente, trabalha no Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Gustavo Martinelli é doutor em Ciências pela University of St. Andrews (Inglaterra). É consultor do Conservation International do Brasil, membro da Fundação SOS Mata Atlântica e pesquisador do Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a grande novidade que traz esse cadastro das espécies da flora brasileira?
Gustavo Martinelli – A novidade é que, após a Flora brasiliensis, feita em 1906, por Von Martius [1] e seus colaboradores, o país tem a lista de suas espécies atualizada.
Paula Leitman – A novidade é reunir, em uma única obra, todos os nomes da botânica que são considerados aceitos para a ciência e ocorrem no Brasil. Essa lista estava até então defasada. Desde a publicação de Martius, não houve nenhuma obra que reunisse todas as espécies da flora brasileiras.
IHU On-Line – São mais de 40 mil espécies. O que isso significa para a biodiversidade brasileira?
Gustavo Martinelli – Essas 40 mil espécies incluem vegetais, fungos, algas, entre outras. Os cálculos apontam que cerca de uma espécie nova é descrita e publicada a cada dois dias no Brasil. Este estudo tem vários significados. Primeiro, ele representa o cumprimento de um objetivo nacional com relação as 60 metas estabelecidas para a biodiversidade no país, que devem ser atingidas até 2010, uma vez que são compromissos assumidos internacionalmente no âmbito da Convenção da ONU. O importante é que essa lista permite uma visão, para a academia, para tomadores de decisão e até para a sociedade, dos nomes científicos, da ocorrência e de onde essas espécies ocorrem.
A outra importância é que medimos a biodiversidade pelo número de espécies. O Brasil é considerado um país de megadiversidades exatamente pelo elevado número de espécies que possui. Porém, esse elevado número sempre foi muito mais de caráter estimativo do que uma aproximação mais acurada. Essa é a grande função dessa lista na medida em que o país passa a ter uma avaliação mais precisa da riqueza de espécies existentes. Esse número representa quase 14% da riqueza de plantas do mundo, o que é bem significativo.
Paula Leitman – Isso serve para termos uma ideia de qual é a real biodiversidade brasileira. As estimativas anteriores eram um tanto superestimadas, de 50 a 70 mil espécies no Brasil. Na verdade, esta pesquisa faz com que tenhamos a real noção de quantas espécies podemos trabalhar e quais estão ameaçadas. Serve também para fazer fóruns regionais com o objetivo de saber o que existe dentro de cada estado, para cruzar os dados com os de unidades de conservação. Saber o que compõe essa diversidade é muito importante para proteger nossas espécies.
IHU On-Line – Há quanto tempo essa pesquisa vem sendo feita?
Paula Leitman – A pesquisa começou a ser feita no início de 2009. Em agosto de 2008, foi formado um comitê organizador para definir quem seriam os coordenadores dos grandes grupos. Depois houve a incorporação de listas, que já foram publicadas, ao sistema com o objetivo de dar uma base em que especialistas pudessem trabalhar. A partir de maio de 2009, começamos a trabalhar realmente na pesquisa.
IHU On-Line – E como a pesquisa foi feita?
Paula Leitman – Foram mais de 400 colaboradores usando um sistema on-line, onde todos trabalhavam ao mesmo tempo, nos mesmos dados. São pesquisadores brasileiros e do exterior, trabalhando em uma reunião de informações que já existiam ou que estavam na cabeça de um pesquisador ou que ainda não estava formalmente publicado. Abrimos uma edição especial da revista Rodriguésia, do Jardim Botânico, para agilizar o processo de descrição de espécies que estavam para ser publicadas. Isso porque as publicações científicas nem sempre são muito rápidas, e essas informações deveriam ser publicadas a tempo da revista ser lançada.
IHU On-Line – O estudo “Plantas raras do Brasil” diz que há 2.291 espécies de plantas que só ocorrem no Brasil. Que tipos de plantas são essas que só vivem aqui?
Gustavo Martinelli – O estudo aponta as espécies que são endêmicas no país e aponta os biomas e estados onde ocorrem. São várias as plantas que só existem no país, como o Pau-Brasil. O número de espécies endêmicas é realmente muito grande.
Agora que temos essas informações sobre as espécies que existem no Brasil, poderemos fazer a lista de espécies ameaçadas de extinção, um trabalho para avaliar todos os tipos de riscos de ameaça. Esta é a meta 2 da Estratégia Global para a Preservação de Plantas. Também é a meta na qual o Centro Nacional de Conservação da Flora, que coordenou todo o processo da lista junto de mais de 400 cientistas e taxonomistas do Brasil e exterior, pretende atuar através de um trabalho de avaliações, de ajustes de metodologias e o aprofundamento de como avaliarmos um número tão grande de espécies quanto ao risco de ameaça.
IHU On-Line – Qual é o estado com a maior diversidade e conservação de espécies?
Gustavo Martinelli – Basicamente, os estados que têm maior riqueza de espécie são aqueles que têm maiores quantidades de informação, o que não significa que sejam mais ou menos ricos. Estados como Amazonas e Pará podem ter um número menor de informações, mas são estados com muita diversidade de espécies. Quando falamos que um estado é mais rico, com maior quantidade de espécies, ele é considerado rico porque tem mais informações. Dentro dessa ótica, estão Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais, São Paulo, por serem regiões onde se concentra um maior número de instituições científicas.
IHU On-Line – Quais são as áreas-chave para a conservação da flora brasileira?
Gustavo Martinelli – Já existe um documento nacional, feito pelo Ministério do Meio Ambiente, chamado “As áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade brasileira”. Ele é dividido por biomas, e para cada um foram feitos mapas apontando as riquezas da fauna, flora e os diferentes ecossistemas. Esses mapas já estão disponíveis e consolidados. Do ponto de vista global, temos duas áreas consideradas que associam maior riqueza de espécies e maior ameaça à conservação: a Mata Atlântica e o Cerrado.
IHU On-Line – Quais as implicações da abundância da biodiversidade para os outros setores da nossa sociedade, como a economia, por exemplo?
Gustavo Martinelli – Isso é muito simples por um aspecto, mas muito difícil por outro. O fato é que quanto maior a riqueza de espécies, maior é o potencial de serviços ecossistêmicos que essas espécies propiciam para a sociedade. Se temos uma região com uma riqueza de espécies e de ambientes, e que, com isso, promove fornecimento de água doce, de matérias-primas naturais, de energia, quanto mais rica ela for, melhor estará a sociedade. A riqueza de espécies está associada a uma possibilidade melhor de vida.
IHU On-Line – Qual sua avaliação sobre as iniciativas de trabalho para reduzir a perda da biodiversidade?
Gustavo Martinelli – Do meu ponto de vista, há avanços muito grandes, porque a biodiversidade começa de fato a se consolidar dentro das agendas políticas e de desenvolvimento do país, mas há muito trabalho a ser feito. Há exemplos muito interessantes de como se pode ter padrões de desenvolvimento, considerando a biodiversidade e a sustentabilidade. Por outro lado, vemos, em muitos segmentos, o desenvolvimento a qualquer custo. O lucro material é o ponto focal, desconsiderando os efeitos que, mais na frente, isso pode causar. Há muitos desafios a serem enfrentados para entrarmos em um equilíbrio entre desenvolvimento e sustentabilidade.
IHU On-Line – A Convenção sobre Diversidade Biológica fala do papel da mulher na conservação e na utilização sustentável da diversidade biológica. Hoje, qual a participação da mulher nessa questão?
Paula Leitman – Não quero parecer feminista, mas acredito que a maioria das especialistas que formam taxonomistas são mulheres. Não sei se é uma questão da facilidade de didática, da habilidade de passar a informação e de ensinar. Vejo uma grande função feminina nesse sentido.
Notas:
[1] Carl Friedrich Philipp von Martius foi um médico, botânico, antropólogo alemão. Von Martius passou dez meses de sua vida na região norte do país, tempo suficiente para marcar os 40 anos posteriores à sua passagem, tão intensa foi sua ligação com essa região, sendo seus estudos sobre botânica um grande legado cultuado até os dias atuais, com a publicação de sua notória obra Flora Brasiliensis. Foi um dos pioneiros no estudo do guaraná.
(Ecodebate, 04/06/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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