Sementes crioulas e a soberania dos povos. Entrevista especial com Gilberto Antonio Bevilaqua
“A utilização das sementes crioulas visa exatamente ao resgate e ao aumento na utilização da biodiversidade local frente ao processo da agricultura moderna”, afirma o agrônomo do Embrapa, Gilberto Antonio Bevilaqua, à IHU On-Line, por telefone. Apesar de as sementes crioulas ainda serem pouco utilizadas na agricultura expansiva, elas “possuem grande potencial para o desenvolvimento de novas cultivares adaptadas a sistemas de produção com baixa utilização de insumos e poupadoras de recursos naturais”.
“A conservação das sementes crioulas faz parte de uma campanha mundial de soberania dos povos quanto à posse de suas sementes, como estratégia de segurança nacional“, afirma.
Bevilaqua é formado em Agronomia pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, mestre e doutor em Ciências pela Universidade Federal de Pelotas – UFPEL. Desde 1996, é pesquisador da Embrapa Clima Temperado. Atualmente, participa de um projeto intitulado Agricultores Guardiões de sementes e desenvolvimento de cultivares crioulas.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como é possível pensar em um resgate da biodiversidade através da expansão de sementes crioulas?
Gilberto Antonio Bevilaqua – A utilização das sementes crioulas visa exatamente o resgate e o aumento na utilização da biodiversidade local frente ao processo da agricultura moderna, focado na uniformização dos cultivares e utilização de um pequeno número de culturas com interesse comercial. Para diversas culturas menos expressivas comercialmente não existem cultivares recomendadas pelas instituições de pesquisa, que realizam melhoramento genético. Assim, as cultivares crioulas passam a ser as únicas em condições de serem utilizadas por apresentarem ampla adaptação aos sistemas locais de produção. A agricultura moderna também está centrada em pequeno número de culturas de interesse como arroz, soja, trigo, milho e batata, e a utilização de cultivares crioulas pode aumentar o número de culturas de interesse, diversificando os sistemas de produção e garantindo maior estabilidade.
IHU On-Line – Qual a importância de resgatar a semente crioula numa época em que se fala tanto na escassez de recursos naturais e alimentos?
Gilberto Antonio Bevilaqua – A agricultura moderna tem ocasionado perda acelerada da agrobiodiversidade pela substituição de cultivares crioulas e tradicionais por cultivares modernas e altamente dependentes de insumos químicos e fertilizantes. Isso está conduzindo à perda de genes constantes das cultivares crioulas, as quais poderiam dar grande contribuição para a agricultura brasileira e mundial, se melhor conhecidos e estudados. As cultivares crioulas possuem grande potencial para o desenvolvimento de novas cultivares adaptadas a sistemas de produção com baixa utilização de insumos e poupadoras de recursos naturais. A coevolução das cultivares crioulas, juntamente com as mudanças ambientais que vêm ocorrendo, propiciam o aparecimento de novas variantes que, sob vários aspectos, representam melhorias no sistema e podem, inclusive, contribuir com os programas tradicionais de melhoramento genético. A conservação das sementes crioulas faz parte de uma campanha mundial de soberania dos povos quanto à posse de suas sementes, como estratégia de segurança nacional.
IHU On-Line – Em que medida a semente crioula pode ser uma alternativa à crise de alimento que é anunciada por vários pesquisadores?
Gilberto Antonio Bevilaqua – As cultivares crioulas possuem um papel importante para vencer a crise de alimentos, embora a escassez de alimentos seja relativa, pois, a nível mundial, a oferta e demanda de alimentos não são tão díspares assim, ou seja, a existência de pessoas com fome ou subnutridas deve-se mais a dificuldades de aquisição dos alimentos do que propriamente a falta de alimento a ser adquirido. As cultivares crioulas possuem um comportamento mais estável quanto à produtividade, apresentando potencial de rendimento menor que as cultivares melhoradas e híbridas, entretanto, produzem relativamente bem em anos e condições climáticas desfavoráveis. O uso de cultivares crioulas seria a estratégia mais acertada para cultivo em áreas marginais de produção, garantindo produção de alimento mesmo sob condições desfavoráveis.
IHU On-Line – Como está a produção de semente crioula no Rio Grande do Sul? Existe um banco de semente crioula, por exemplo?
Gilberto Antonio Bevilaqua – A produção de sementes crioulas no Estado ainda pode ser considerada pequena, embora a procura por cultivares crioulas tenha aumentado, apesar do avanço acelerado das modernas tecnologias. A perspectiva de utilização de sementes crioulas tenderá a aumentar com a exigência dos órgãos certificadores de alimentos orgânicos que estipularem a exigência de sementes ecológicas para a instalação de áreas de produção. Existem vários bancos de sementes no Estado, como iniciativa de grupos de agricultores organizados e entidades representativas da Agricultura Familiar cujo objetivo é disponibilizar sementes de cultivares crioulas, principalmente com a utilização de tecnologias de base ecológicas.
IHU On-Line – De que forma é feita a distribuição da semente crioula entre os agricultores do estado?
Gilberto Antonio Bevilaqua – Existem diversas entidades públicas e privadas organizadas, preocupadas com cultivares crioulas e que desenvolvem atividades de pesquisa e desenvolvimento. Estas entidades e movimentos sociais estão organizadas, juntamente com a Embrapa, em torno de projetos específicos que visam, primeiramente, a caracterização e avaliação das cultivares, e aquelas que se destacam venham a ser utilizadas comercialmente. Os bancos de sementes passam a ser uma importante estratégia para que os agricultores tenham acesso a estas cultivares. Programas públicos específicos para a agricultura familiar, como o troca-troca de sementes, poderiam dar grande contribuição no sentido de que exigissem, mesmo que parcialmente, a utilização de cultivares crioulas.
IHU On-Line – Quais são as formas de preservar a semente crioula diante do cultivo de sementes híbridas?
Gilberto Antonio Bevilaqua – Estamos trabalhando várias estratégias para preservar as cultivares crioulas, acho que a principal delas é o Agricultor Guardião de sementes, que é um agricultor que, por sua vocação, possui um grande número de cultivares e faz seleção das plantas na perspectiva do seu sistema produtivo, conforme suas preferências e condições locais de clima e solo. O guardião é o elo fundamental entre a pesquisa e as entidades preocupadas com o desenvolvimento das cultivares crioulas. A pesquisa vem se dedicando também ao resgate e conservação das cultivares crioulas, reconhecendo as características relevantes das mesmas para que possam ser exploradas comercialmente. Em nosso trabalho, disponibilizamos anualmente dezenas de coleções para avaliação local das cultivares. A formação de uma rede estadual que desenvolve trabalhos e pesquisa e desenvolvimento, focados na agrobiodiversidade local, foi um importante passo para apoiar as iniciativas locais de trabalho com sementes crioulas.
IHU On-Line – A semente híbrida gera que implicações à biodiversidade e ao cultivo das diferentes espécies?
Gilberto Antonio Bevilaqua – A semente híbrida subentende todo um sistema de produção que implica na uniformização do processo produtivo, bem como a utilização de pequeno número de cultivares, fruto também da própria uniformização. As cultivares híbridas são desenvolvidas para sistemas intensivos, que utilizam largamente agrotóxicos e fertilizantes, nos quais as cultivares crioulas não são bem adaptadas, pois são poupadoras de insumos. Observa-se que o acesso dos agricultores a cultivares híbridas implica frequentemente em abandono de suas cultivares tradicionais. Nós temos essa preocupação de que o agricultor ao adotar uma cultivar melhorada não abandone suas cultivares tradicionais.
IHU On-Line – O que justifica a substituição da semente crioula pela semente híbrida?
Gilberto Antonio Bevilaqua – As cultivares híbridas possuem um potencial produtivo superior às cultivares crioulas, especialmente em condições de solo e clima favoráveis, o que significa que as híbridas devem ser utilizadas em sistemas intensivos com alta utilização de tecnologia e solos de alta fertilidade, nestes casos, a produtividade da híbrida será superior a das cultivares crioulas. Em anos considerados desfavoráveis, a produtividade de ambas tende a se igualar, ou, em certos casos, a cultivar crioula pode superar a híbrida. Com isso, a cultivar crioula passa a ser recomendada em condições de clima e solo desfavoráveis pela sua adaptação a estas condições, conferidas ao longo de décadas de seleção pelos agricultores. Além do mais, o uso de cultivar crioula possibilita que o agricultor possa reutilizar essa semente, observando indicações técnicas específicas para garantir a sua qualidade genética, pureza e germinação da semente.
IHU On-Line – Como o senhor percebe a utilização de sementes crioulas entre os agricultores? Por que, apesar de existir uma variedade grande de determinada espécie, como o milho, por exemplo, poucas qualidades de sementes são cultivadas?
Gilberto Antonio Bevilaqua – A utilização de sementes crioulas em cultivos extensivos ainda pode ser considerada pequena, embora os agricultores familiares as utilizem em maior escala, em casos de haver deficiência na oferta de sementes de acordo com o ano. O comportamento do consumidor final também acaba sendo determinante na escolha da cultivar por parte do produtor e afetando o comportamento da indústria processadora na compra do produto. Atualmente, o consumidor tem uma preferência por produtos com aparência homogênea, desconsiderando o valor nutricional do produto e o sistema em que foi produzido. A mudança de hábito do consumidor quanto a produtos com aparência menos impactante terá forte influência na escolha do material genético e na alteração dos sistemas de produção utilizados.
IHU On-Line – Com a introdução da transgenia na agricultura, a semente crioula corre risco de entrar em extinção?
Gilberto Antonio Bevilaqua – O risco efetivamente existe. Tem se observado o aumento dos casos de contaminação das cultivares crioulas por cultivares híbridas e transgênicas, principalmente em espécies alógamas, como o milho. Entretanto, constata-se que as cultivares crioulas incorporam genes destas cultivares, e o processo de evolução deve seguir o caminho natural, pois é impossível deter a movimentação dos grãos de pólen. Mecanismos de controle dos cultivos transgênicos devem ser melhor administrados sob pena da contaminação total dos campos de sementes, inclusive em cultivares convencionais de espécies autógamas, como a soja.
(Ecodebate, 16/04/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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