Amazônia e Cerrado: desta vez vai mesmo? artigo de Washington Novaes
Desmatamento no Cerrado. Infográfico AE. Para acessar o infográfico no tamanho original clique aqui.
[O Estado de S.Paulo] Há poucos dias, o Ministério do Meio Ambiente apresentou seus projetos para conter o desmatamento no Cerrado e na Amazônia e definir atividades compatíveis com a conservação desses biomas. Para o primeiro, o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e Queimadas, que espera ver aprovado ainda este ano. Para o segundo, o projeto de Macrozoneamento Econômico e Ecológico, que se pretende seja transformado em decreto presidencial neste semestre. Em síntese, a intenção é reduzir em 40% até 2020 o desmatamento, conforme a “meta voluntária” apresentada em dezembro à Convenção do Clima, em Copenhague. Ambos podem representar alguns progressos. Mas levantam muitas questões.
Segundo o ministério, até 2008 foi desmatada 47,84% da área originária do Cerrado, que representa 24% do território brasileiro. E, de 2002 a 2008, a taxa de desmatamento nesse bioma significou o triplo da observada na Amazônia em 2008. Seriam, nesse período, 85.075 quilômetros quadrados desmatados no Cerrado, como escreveu neste jornal Lígia Formenti (17/3), com base em dados do ministério, que nos últimos meses os modificou mais de uma vez. E as causas do desmatamento estão, diz o ministério, na pecuária extensiva, no avanço da soja e da cana-de-açúcar e no uso de carvão vegetal principalmente por siderúrgicas.
Para conter o avanço do desmatamento o ministro anunciou que também as siderúrgicas que utilizarem mais de 50 mil metros cúbicos de carvão por ano sofrerão restrições (até aqui, eram apenas para siderúrgicas com mais de 100 mil toneladas). Mas cabe perguntar: Por que só essas, e não todo o uso de carvão ilegal? Além disso, como lembrou Herton Escobar (Estado, 17/3), os proprietários rurais podem desmatar no Cerrado até 80% de suas propriedades (65% nas áreas de transição para a Amazônia). Podem, portanto, transformar em carvão as árvores derrubadas. A questão estará muito mais em falta de monitoramento e fiscalização. E na dificuldade de tornar reais as reservas legais, verdadeira ficção que só existe no papel. O que se promete agora é cortar o crédito para o desmatamento ilegal e incentivar o plantio de florestas para carvão com redução de impostos.
A dificuldade de concretizar a fiscalização está clara num levantamento recente feito no Estado de Goiás (O Popular, 14/3), que mostra só haverem sido pagos R$ 7,5 milhões (5,5%) dos R$ 134 milhões em multas impostas pelo Ibama e por órgãos ambientais do Estado entre 2006 e 2009 a atividades de carvoaria, desmatamento ilegal, invasão de áreas de proteção permanente, etc., além da queima de cana. Não é só. Cabe também perguntar por que se deixou o Cerrado fora do zoneamento ecológico/econômico para a expansão da cana-de-açúcar, quando se sabe que ela continua avançando sobre áreas novas nos dois Mato Grosso, em Goiás, no Tocantins, no Maranhão e até nas bordas do Pantanal.
E ainda sobram perguntas. Por que o Cerrado tem apenas 6,77% de sua área total em unidades de conservação, mas apenas 2,89% em áreas de proteção integral (o restante cabe a unidades de “uso sustentável”)? Por que o zoneamento da Amazônia – que pretende proteger uma faixa ao longo de 1.700 quilômetros – deixa de lado praticamente todas as grandes obras do Programa de Aceleração do Crescimento, aí incluídas as grandes hidrelétricas do Rio Madeira (que terão impactos fortes já diagnosticados); o asfaltamento da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém), onde praticamente nada do acertado nas audiências públicas está sendo cumprido (segundo o próprio Ibama); e a pavimentação da Rodovia Transamazônica?
O fato é que essas e outras iniciativas do próprio poder público continuam a pôr em xeque os propósitos de conservação nos dois biomas. Há poucos dias (21/3), o jornalista João Domingos documentou a destruição de parte do riquíssimo Parque Estadual do Jalapão, no Tocantins, por uma série de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs). Já há no País 359 em operação, mais 72 em construção e 145 outorgadas. Karina Ninni documentou (22/3) que a instalação de 116 PCHs ameaça o Pantanal, principalmente na Bacia do Alto Paraguai. E tudo se fez e faz – como tantas vezes tem sido escrito aqui – com licenciamento e sem discutir a real necessidade de cada empreendimento no âmbito de uma matriz energética – esta, por sua vez, decidida sem informar e ouvir a sociedade, as universidades e especialistas que divergem do modelo oficial. Também por isso se vê a implantação de mega-hidrelétricas destinadas principalmente a atender às necessidades de exportadores de eletrointensivos (alumínio e ferro gusa, especialmente), fortemente subsidiados e de alto custo social e ambiental, mas sem consumo direto pela população regional. Enquanto isso, cidades como Macapá, capital do Amapá, têm seu consumo de energia baseado em 70% na queima de óleo diesel levado de outras regiões.
Volta-se ao começo. Mesmo esquecendo todas as questões mencionadas neste artigo e admitindo que os planos para o Cerrado e a Amazônia sejam desejáveis, resta ver se sairão do papel. Não há nada mais difícil no Brasil do que tirar as intenções do papel em que são escritas e levá-las à prática, à concretude. E para tirá-las do papel é indispensável que o Ministério do Meio Ambiente deixe de trafegar na contramão de tantos outros ministérios (Agricultura, Transportes, Interior e outros) e disponha de recursos à altura das tarefas gigantescas que lhe caberiam (e não menos de 0,5% do Orçamento federal). Que haja uma estratégia efetiva para os dois biomas, centrada no conhecimento e aproveitamento de sua riquíssima biodiversidade. Que se preste atenção às consequências que o desmatamento já está tendo no fluxo das águas brasileiras.
E, neste momento crucial, que a tolerância com rumos devastadores que prometem emprego e renda (quando há outros caminhos para isso) não seja uma arma eleitoral.
JORNALISTA
E-MAIL: WLRNOVAES@UOL.COM.BR
Artigo originalmente publicado no O Estado de S.Paulo.
EcoDebate, 06/04/2010
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