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Artigo

O Consenso de Beijing e a mudança de hegemonia, artigo de José Eustáquio Diniz Alves

[EcoDebate] A crise econômica de 2009, não foi tão grave, longa e profunda como a crise de 1929, mas afetou bastante as chamadas “economias avançadas” e mostrou a capacidade de resiliência da economia chinesa.

Em seu último relatório, World Economic Outlook, de 26/01/2010, o FMI mostrou que o PIB mundial caiu 0,8% em 2009, sendo que as economias avançadas apresentaram um recuo de 3,2% e os EUA tiveram um encolhimento de 2,5% no ano, a maior queda das últimas cinco décadas. A área do Euro teve um declínio de 3,9%. A América Latina e o Caribe também apresentaram uma queda significativa de 2,3%. Por outro lado, a África apresentou crescimento de 1,9%, a Índia (com seus mais de 1,1 bilhão de habitantes) cresceu a 5,6% e a China (com seus mais de 1,3 bilhão de habitantes) apresentou um impressionante crescimento de 8,7% no ano.

Para 2010, as previsões do FMI são: crescimento do PIB mundial de 3,9%; retomada de apenas 2,1% para as economias avançadas (portanto sem recuperar as perdas do ano passado); crescimento de 2,7% para os EUA (ou seja, crescimento próximo de zero no biênio); a área do Euro vai continuar no prejuízo e deve crescer apenas 1,0% em 2010; crescimento de 3,7% para a América Latina e o Caribe (mas com estagnação da renda per capita no biênio); a África deve crescer 4,3% em 2010, também a Índia com projeção de 7,7% e a China deve continuar na liderança com espetaculares 10% de crescimento do PIB.

O que os dados do FMI mostram é que a recessão econômica de 2009 acabou, mas a retomada nos países desenvolvidos vai ser lenta, com baixa capacidade de retomada dos investimentos e geração de emprego, e outros percalços não estão descartados. A Europa que há muito sofre de “euroesclerose” está às voltas com os problemas de endividamento e altos déficits fiscais e, neste início de 2010, tenta solucionar os problemas econômicos de Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha (Spain), países chamados pejorativamente de PIGS. Lembrando que Portugal, Grécia e Espanha tinham governos ditatoriais até meados dos anos de 1970 e não possuem instituições democráticas com longa tradição histórica.

Já os Estados Unidos possuem uma longa tradição democrática, mas encontram-se em uma situação que alguns analistas chamam de “instabilidade política”. Depois de duas eleições presidenciais decididas de maneiras muito apertadas e até com disputas resolvidas de maneira questionável, a eleição de Barack Obama parecia dar governabilidade e maioria folgada ao Partido Democrata no Legislativo. Contudo, as últimas eleições – particularmente a eleição do senador republicano Scott Brown, em Massachusetts (estado tradicionamente democrata) – apontam para uma fragilidade do governo Obama. Cresce no país a ala republicana de direita, dos movimentos conservadores em geral e do “Tea Party”, em particular. A cada dia fica mais difícil para o atual governo dos EUA aprovar a reforma do sistema de saúde, a criação de empregos, o combate ao aquecimento global e os investimentos em segurança energética e energia renovável.

O quadro de “instabilidade política” (falta de uma maioria clara para tomar decisões e dar um rumo para o país) fica mais agravado diante dos crescentes déficits externo e interno (déficits gêmeos) e da crescente dívida interna. O orçamento apresentado por Obama, em 2010, é de US$ 3,8 trilhões, com um deficit previsto de US$ 1,6 trilhão, ou o equivalente a 10,6% do PIB. Este rombo não foi provocado simplesmente pela crise de 2009, mas faz parte de uma nova realidade que veio para se tornar permanente, pelo menos nesta próxima década. Projeta-se, para 2020, que a dívida pública norte-americana terá atingido o patamar de 77% do PIB. Porém, os deputados e senadores democratas e republicanos do Congresso dos EUA não mostram capacidade política para mobilizar a nação e criar os meios de enfrentar de forma efetiva os perigos que estes deficits representam. Os EUA estão sem uma liderança objetiva.

A questão chave que se coloca é a mesma feita pelo economista Lawrence Summers (antes de se tornar o principal assessor econômico do presidente dos EUA): “Por quanto tempo o maior devedor do mundo pode continuar sendo a maior potência do mundo?”.

De certa forma, esta questão já estava colocada nos anos de 1980. O historiador Paul Kennedy, em seu livro “Ascensão e queda das grandes potências”, mostrou que o declínio das potências hegemônicas começa quando estas dedicam uma grande parte da capacidade industrial do país a gastos com armamentos “improdutivos”, enfraquendo a base econômica nacional para a inovação tecnológica e o bem-estar da população. Nos anos 80 os EUA já tinham se convertido no maior devedor do mundo e tinham déficits internos e externos crescentes.

Entretanto, o fim da Guerra Fria e o processo de globalização ocorrido sob a chancela do Consenso de Washington deram um gás novo ao país, que liderou a Revolução nas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e chegou até a esboçar superávits fiscais no fim do governo Bill Clinton. Mas a vitória de George Bush reverteu o processo de redução do endividamento, devido às suas políticas de cortes de impostos para os ricos e de aumento dos gastos militares com o início das guerras do Afeganistão e Iraque.

Em contraparte, a China tem se tornado a maior potencia credora do mundo com seus quase 2,5 trilhões de dólares em reservas internacionais. E não só isto: a China passou o Japão como a segunda maior economia do mundo (já era em termos de dólar em poder de paridade de compra), passou a Alemanha como a maior exportadora do mundo, é a principal parceira comercial do Brasil e da América Latina, aumentou a participação no comércio internacional de 1% nos anos de 1980 para cerca de 10% atualmente. O saldo da balança comercial da China com os EUA foi de US$ 226,8 bilhões em 2009. Além disto a China é responsável por quase 50% do aço produzido no Planeta, está construindo uma ampla rede ferroviária de milhares de quilômetros com trens de alta velocidade, possui uma infra-estrutura rodoviária, aeroviária e de portos cada vez mais eficiente e, dentre outras coisas, está buscando a liderança mundial na produção de energia renovável.

O grande “segredo” do rápido e eficiente crescimento chinês são as altas taxas de investimento que estão acima de 40% ao ano. Esta capacidade de manter investimentos tão altos se deve em grande parte ao processo de decisão política centralizado do país que consegue manter o consumo sobre controle como percentagem do PIB. O consumo em termos absolutos cresce na medida em que cresce a demanda agregada, mas sem impedir a capacidade de investimento e de renovação constante do setor produtivo. Nas três últimas décadas a China cresceu algo como 10% ao ano e neste ritmo não é difícil imaginar que ultrapassará os EUA em pouco tempo.

No processo de construção da hegemonia mundial, a questão da segurança e da eficiência energética é chave. A Inglaterra pulou à frente na Primeira Revolução Industrial quando tirou todas as vantagens da máquina a vapor construida por James Watt na segunda metade do século XVIII. A Alemanha ensaiou uma conquista de hegemonia quando aperfeiçoou o motor a combustão. Mas foram os EUA que tomaram a liderança mundial com o domínio da energia do petróleo e nuclear, com uma sociedade de consumo de massas e com uma base industrial ampla e eficiente ao estilo fordista. Os avanços na Revolução Científica e Tecnológica ampliaram os horizontes da hegemonia americana.

Contudo, a China que é chamada de “fábrica do mundo” (em contraposição aos EUA que são chamados “shopping center do mundo”) tem mostrado sinais inequívocos de que pretende liderar uma corrida na área tecnológica para tomar a frente na produção de energia renovável que, ao mesmo tempo, garanta três objetivos: 1) segurança energética; 2) um novo setor industrial que possibilite aumentar as exportações do país; e 3) reduzir a emissão de gases de efeito estufa que aumentam o aquecimento global. A China já é lider na produção e uso de painéis fotovoltaicos e caminha para liderar a corrida na área de energia solar concentrada, energia eólica, biomassas e nuclear.

Em outros momentos históricos a busca para a liderança na área energética e para a garantia de acesso aos recursos naturais já provocou guerras devastadoras. Atualmente, pelo menos por enquanto, a China tem avançado na busca de recursos naturais na África, na América Latina e no resto do mundo, mas com atritos relativamente pequenos para o tamanho dos novos desafios. Além disto os funcionários do governo e acadêmicos chineses tem aproveitado os fóruns internacionais para criticar o consumismo (baixa taxa de poupança e investimento) dos países ocidentais e até mesmo o estilo de governança democrática capitalista.

A China tem se posicionado, desde o início, contra o decálogo do Consenso de Washington:

1.Disciplina fiscal e baixo déficit público;
2.Focalização dos gastos públicos em educação, saúde e infra-estrutura;
3.Reforma tributária;
4.Liberalização financeira;
5.Taxa de câmbio competitiva;
6.Liberalização do comércio exterior;
7.Eliminação de restrições ao capital externo;
8.Privatização e venda de empresas estatais;
9.Desregulação das relações trabalhistas;
10.Propriedade intelectual.

No lugar do Consenso de Washington tem surgido a idéia do Consenso de Beijing que consiste em pelo menos nas seguintes características:

1.Promoção das economias em que a propriedade estatal continue sendo dominante;
2.Promoção de câmbio competitivo, com mudanças graduais para evitar choques e controle cambial para evitar a especulação;
3.Políticas de promoção das exportações (Export-led growth) com proteção da industria local e dos setores estratégicos do país;
4.Reformas de mercado, mas com controle das instituições políticas e culturais;
5.Centralização das decisões políticas e das estratégias de projeção nacional.

Evidentemente é muito dificil resumir todas as mudanças ocorridas nas últimas décadas e retratar a enorme interdepedência que existe entre as economias dos EUA e da China. Mas os fatos relatados acima referentes à conjuntura internacional apontam para alguns elementos em relação a um baixa recuperação dos países ocidentais e para uma possivel mudança de hegemonia internacional. Quais serão os novos desdobramentos? O mundo caminha para a aceitação de um possível “Consenso de Beijing” ou o crescimento chinês não passa de uma bolha? Este chamado “Consenso de Beijing” é generalizável para outros países do mundo? Uma mudança na hegemonia mundial pode ocorrer de forma relativamente pacífica ou o mundo vai enfrentar uma nova guerra de grandes proporções? O “Consenso de Beijing” ajudará no combate às mudanças climáticas ou a China colocará suas ambições de liderança mundial à frente da luta contra o aquecimento global?

José Eustáquio Diniz Alves, colaborador e articulista do EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular da ENCE/IBGE. Livro publicado: SÁNCHEZ, E. B., ALVES, J.E.D. (orgs) Pobreza y Vulnerabilidad Social Enfoques y Perspectivas. Serie Investigaciones nº 3, ALAP, Córdoba, Argentina, 2008.

EcoDebate, 16/03/2010

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