Urbanização do litoral brasileiro ignorou riscos de acidentes nas encostas. Serra do Mar tem 10 mil moradias em risco
Angra dos Reis (RJ) – Vista do Morro da Carioca, no centro de Angra, onde 21 pessoas morreram por causa do deslizamento. Foto: Roosewelt Pinheiro/Abr
Se retroativo, decreto de 2004 tornaria ilegais construções de grande parte da costa
Apesar de avançados, parâmetros não são rígidos o suficiente para eliminar o risco de acidentes nas encostas, diz especialista
Se tivesse aplicação retroativa, o decreto federal número 5.300, de dezembro de 2004, colocaria na ilegalidade boa parte da área urbanizada da orla marítima brasileira.
A situação abrangeria não apenas ocupações irregulares, como nas áreas alagadiças da Baixada Fluminense, no fundo da baía de Guanabara, afetadas pelas chuvas da virada de 2010, mas marcos turísticos como os calçadões de Fortaleza e do trecho entre Arpoador e Leblon, no Rio de Janeiro.
Com atraso em relação a países desenvolvidos e a vizinhos latino-americanos, o decreto estabeleceu pela primeira vez os limites a serem respeitados das praias e outros ecossistemas, como dunas, falésias, costões, lagunas e manguezais.
Mas chegou tarde para evitar “coisas barbarescas”, como define Paulo Rosman -especialista em engenharia oceânica e costeira da Coppe (Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia) da UFRJ (Universidade Federal do Rio e Janeiro). Reportagem de Claudia Antunes, na Folha de S.Paulo.
O decreto regulamentou, 16 anos depois, o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (PNGC), criado em 1988.
Suas disposições são até “flexíveis” em demasia, na opinião do veterano geógrafo Dieter Muehe, professor aposentado da UFRJ que colaborou com o Ministério do Meio Ambiente na produção do “Macrodiagnóstico da Zona Costeira”, série de mapas que localizam os pontos de risco nos 8.698 km do litoral do país.
Muehe critica o fato de a “linha do preamar [maré alta]” ser mencionada como um dos pontos a partir do qual pode ser contada a distância de 50 m entre as praias e as construções, nas áreas já urbanizadas. Nas regiões ainda sem urbanização, a distância fixada é de 200 m.
Segundo o geógrafo, a linha da maré alta é variável demais para servir como marco, ainda mais num litoral em que boa parte do fundo marinho tem baixa declividade, o que o torna mais sensível a eventual aumento do nível do mar. Na Grécia, a distância chega a 500 m. França, Turquia, Suécia e Noruega adotaram o limite mínimo de 100 m.
Mesmo assim, Muehe vê o PNGC como um avanço, diante da escassez de parâmetros para a ocupação costeira no período que coincidiu com a expansão das 13 regiões metropolitanas no litoral, que vão de Belém a Porto Alegre e reúnem cerca de 19% da população brasileira.
Foi nesse meio século que se ergueu a maioria das barbaridades citadas por Rosman, ignorando o hoje sacramentado princípio de que “a praia é a barreira mais eficiente para conter a ação das ondas”
“Toda a ocupação foi intuitiva, feita com ignorância. Hoje devemos usar o conhecimento para errar menos”, diz.
Além de Fortaleza e do Rio, Rosman cita maus exemplos nas orlas de Maceió, Aracaju, pedaços da praia da Boa Viagem, no Recife, onde há “edifícios com a onda no pé”, e o trecho litorâneo do Paraná que vai de Matinhos a Paranaguá, “um convite ao suicídio coletivo”, com o casario separado das águas do mar por ruas ou avenidas, protegidas por muros de concreto e pedra.
Ao contrário da areia, explica, que dissipa o efeito das ondas e vai sendo movimentada ao longo da praia, em ciclos que tendem à estabilidade, esses paredões refletem essa energia. A estrutura de suposta contenção acaba danificada e a praia, ainda mais erodida, com sua areia carregada para bancos submersos.
No caso das baixadas costeiras e sistemas de lagunas, jovens em termos geológicos, Rosman diz que os seguidos aterros e construções tendem a reforçar a tendência de rebaixamento desses terrenos.
Em estudo de 2007 sobre o litoral fluminense, ele sugeriu a retirada da população de áreas como essas, que seriam usadas para lazer em tempo seco e transformadas em “piscinões naturais” quando ocorressem marés altas e chuvas fortes, evitando o alagamento.
Muehe diz que seria preciso fazer estudo específico para ver como o decreto 5.300 se aplicaria a regiões como a Ilha Grande. Na enseada do Bananal, onde um desabamento de encosta matou ao menos 31 pessoas no Réveillon, há apenas uma faixa estreita de areia entre o mar e o costão rochoso.
“Uma encosta como aquela pode ficar estável durante décadas, e só um estudo integrado de mecânica do solo e geomorfologia poderia apontar os riscos”, afirma.
Serra do Mar tem 10 mil moradias em risco
Pelo menos a metade desta população ocupa terrenos irregularmente e fica exposta à ocorrência de deslizamentos. Entre as edificações já legalizadas pelas prefeituras locais, por volta de 30% das 10 mil casas não são de famílias de baixa renda
Os habitantes de pelo menos 10 mil moradias, têm motivos de sobra para se preocupar por causa das chuvas que vão continuar fortes neste mês.
Todo este contingente, mostra levantamento da Folha, vive em áreas de risco na serra no Mar, entre a Baixada Santista e o litoral norte paulista.
Pelo menos metade desrespeita algum tipo de legislação e está em situação irregular.
Entre as edificações legalizadas pelas prefeituras locais, por volta de 30% das 10 mil casas não são de baixa renda. Reportagem de Eduardo Geraque, na Folha de S.Paulo.
Basta olhar para os morros de São Vicente ou de Ilhabela, por exemplo. Nenhuma cidade da região está recebendo recursos federais para conter riscos. Só 15 cidades, em todo o Brasil, têm ações em curso, diz o Ministério das Cidades.
“Nós estimamos que apenas 10% dos municípios têm uma carta geotécnica detalhada”, diz o geólogo Cássio Roberto.
O documento, diz o especialista, é básico para a ordenação da ocupação dos morros. Ele indica, do ponto de vista geológico, onde é possível ocupar.
Mesmo sem ele, muitas cidades, baseadas em seus planos diretores, permitem que encostas com uma inclinação superior a 16 graus sejam usadas.
“Aqui essa permissão existe. Neste caso, o responsável pela construção precisa documentar a segurança da obra”, afirma Kátia Kornnetoff, secretária de Obras de Ilhabela.
A ilha oceânica tem 350 moradias sob risco, em encostas. A prefeitura admite que 10% são casas de alto padrão.
No continente, mais precisamente em Cubatão, existe a irregularidade histórica dos chamados bairros cotas. Há décadas, 30 mil pessoas vivem dentro do parque da serra do Mar.
Diz o coronel Elizeu Borges, assessor do governador José Serra (PSDB), que 800 famílias serão retiradas em fevereiro. No local, onde em 1988 um deslizamento matou dez pessoas, 3.600 famílias vivem sob risco.
EcoDebate, 11/01/2010
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