‘A usina de Mauá, no Paraná, não é necessária.’ Entrevista especial com Isabel Cristina Diniz
Além dos impactos ambientais, sociais, econômicos, políticos e culturais para a população ribeirinha, a construção da Usina Hidrelétrica de Mauá não responde a necessidades locais: toda a energia será exportada, já tendo sido até vendida para exportação. Essa é a afirmação da historiadora Isabel Cristina Diniz, coordenadora regional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Paraná, em entrevista, por telefone, para a IHU On-Line.
A bacia do Rio Tibagi, no norte do estado do Paraná, possui uma extensão de 616 km, iniciando na Serra das Almas, município de Palmeira, e desaguando no rio Paranapanema. É considerada a segunda bacia de maior importância no Paraná, com área total de 24.711 quilômetros quadrados, cerca de 13% do território estadual. “É um rio totalmente paranaense, e não está secionado por nenhum projeto hidrelétrico”, afirma Diniz.
Segundo ela, se a construção for autorizada, serão cerca de 176 unidades familiares diretamente impactadas. No total, cerca de 3 mil pessoas de uma região que compreende os municípios de Telêmaco Borba, Ortigueira, Reserva e Tibagi sofrerão as consequências. “Se amanhã ou depois nós tivermos famílias desaparecidas na barragem, não vai ser surpresa pela forma como vêm sendo encaminhadas as questões pelo consórcio e pelos seus representantes para com o conjunto da população”, diz a historiadora.
“Nós sabemos que esse empreendimento não é necessário para o Paraná. É simplesmente para responder a uma necessidade de modelo de consumo e de produção, e nós, as populações direta e indiretamente impactadas, só vamos ficar com o prejuízo e as consequências que, agora e futuramente, infelizmente nem todos os estudos técnicos dão conta de apurar”, critica.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A Usina Hidrelétrica de Mauá é o maior empreendimento do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal no Paraná. A senhora poderia caracterizar esse empreendimento: sua localização, os valores de investimento, o tamanho do barramento e do lago a ser formado?
Isabel Diniz – O empreendimento é a principal obra do PAC, em número de recursos e de impacto. Os dados mais precisos nós não temos. O consórcio diz que tudo deve estar no site, mas como ainda existem muitos estudos faltantes, eles não liberam por escrito. Ainda não temos a área geral de quilometragem, a altura e os valores, pois são dados técnicos. O que eu posso informar é que o empreendimento da Usina hidrelétrica Mauá está localizado no Rio Tibagi, um dos últimos rios do Paraná que nasce e se encerra no estado (é totalmente paranaense) e que não estava secionado por nenhum projeto hidroelétrico. Tem algumas unidades de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) na mesma região onde estão os municípios de Telêmaco e Ortigueira. Inclusive a própria Klabin tem uma unidade de geração de energia para sua fábrica localizada no município de Telêmaco Borba, mas sem maiores impactos para as populações ribeirinha e microrregional em torno da bacia.
O empreendimento da Usina está sendo instalado no coração de uma APP, Área de Proteção Permanente, de maior conjunto de biodiversidade, tanto de fauna como de flora. É uma região marcada pela produção de apicultura. Toda essa produção está sendo impactada e é a segunda maior produção de mel e derivados em volume a nível nacional. Isso sem contar os impactos para as comunidades ribeirinhas, o conjunto de pescadores, na agricultura de subsistência, assim como na agricultura agroexportadora, como produção de grãos e pecuária. Esse impacto é cercado diretamente de vários estudos que comprovam a enorme violência ambiental, sem contar os impactos socioculturais, pela riqueza de diversidade, vida, recursos e bens naturais, e o envolvimento com a riqueza de uma das principais áreas permanentes de preservação localizada nesta região.
Implantação da hidrelétrica
Num primeiro momento, houve toda uma discussão sobre a implantação do empreendimento, porque o estudo de avaliação de impacto, o EIA/RIMA, quando apresentado na primeira versão, compreendia falhas enormes que não davam conta de toda essa riqueza de diversidade que a APP impactada contém. É de conhecimento público que existem hoje várias ações ainda correndo na justiça que cercam as irregularidades que acompanham a instalação deste empreendimento. Isto mesmo depois dele ser assumido pelo consórcio Cruzeiro do Sul, compreendendo Copel e Eletrosul, e a contratação de outras empresas para a complementação do estudo. Este estudo, já concluído por parte do consórcio, não dá conta de responder a todas as questões que foram levantadas, e que toda uma área de riqueza e diversidade como esta não compreende.
Fato que hoje, na fase de implantação, com o canteiro de obras em pleno funcionamento, já com muitos problemas ambientais, estruturais e técnicos e com impactos no rio e nas populações ribeirinhas, existem várias irregularidades que acompanham esta fase de autorização prévia de instalação do empreendimento. E são irregularidades graves. Por exemplo, a Assembleia Legislativa do Paraná não deu autorização, não reafirmou a autorização prévia de instalação. Isso serve para percebermos que além de outros estudos técnicos e de uma série de questões que precisam ainda ser identificadas e analisadas para a autorização do início da obra, o empreendimento está em fase de implantação bastante avançada, com muitos impactos já existentes, e com um conjunto de irregularidades que continuam cercando a instalação desse empreendimento. Uma obra de tão grande envergadura e volume de recursos, que está dentro do “pacotão do PAC” como uma das principais obras do PAC no Paraná, preocupa-nos do ponto de vista tanto do governo federal como das autoridades paranaenses, pois não existem seriedade e responsabilidade política no acompanhamento das irregularidades que cercam a implantação deste empreendimento.
IHU On-Line – Essa usina é realmente indispensável para o Paraná? Quais serão os principais beneficiários da obra?
Isabel Diniz – Do ponto de vista de real necessidade de implantação deste empreendimento para fornecimento de energia para a população do estado do Paraná, é dispensável. Estudos técnicos mostram que o Paraná não necessitaria de novas usinas para a produção de energia até 2020. Em termos de consumo interno, a usina não é necessária para o Paraná. Acontece que, por ser uma obra colocada dentro do PAC, há um acordo estabelecido entre as autoridades do Paraná e o governo federal para o fornecimento. Toda a energia a ser produzida pela Usina Hidrelétrica de Mauá será exportada para o sudeste brasileiro, compreendendo os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, todas para fornecimento, principalmente, das fornalhas para refinamento de aço e minérios.
Do ponto de vista técnico, teríamos condições de produzir, caso haja necessidade, mais energia para o consumo interno do Paraná. Isso é outro agravante nesta questão deste empreendimento que traz impactos ambientais, sociais, econômicos, políticos e culturais, que irão ficar para a população ribeirinha, para as comunidades da bacia desta região do Tibagi e toda a energia será exportada, inclusive essa energia já foi vendida para o consumo da exportação. Por isso, a presa e o atropelo para a implantação desse empreendimento.
Foz do Rio Tibagi, no Paraná |
IHU On-Line – Qual é o número de famílias que terão que ser deslocadas?
Isabel Diniz – Segundo os estudos que o consórcio tem apresentado para o conjunto da população, são cerca de 176 unidades familiares diretamente impactadas. Num total aproximado de 2.500 a 3 mil pessoas atingidas diretamente. Indiretamente se tem todo o conjunto de uma região que compreende os municípios de Telêmaco, Ortigueira, Reserva, Tibagi, e toda uma relação cultural inclusive de dados das comunidades indígenas a serem impactadas, fato que não é considerado pelos estudos e reconhecido do ponto de vista do empreendimento. Será impactado não só quem está na barranca do rio, no caso os pescadores, os posseiros, garimpeiros, exploradores de areia, mas está comprometida toda a produção de apicultura daquela região.
IHU On-Line – Existem famílias indígenas nesta região?
Isabel Diniz – É outro dado faltante no estudo dos impactos, e depois nos estudos complementares, que o consórcio até agora não reconhece os impactos de instalação do empreendimento sobre as comunidades indígenas daquela região, que são dois povos. Minimamente quem compreende a cultura e maneira de relação com o seu território das populações indígenas, sabe que não se trata de vida geográfica. A instalação do empreendimento impacta diretamente o modo de vida, as relações comunitárias, a cultura, a relação com o meio ambiente e com os recursos naturais de duas comunidades indígenas que estão na fronteira da área considerada limite geográfico para os impactos.
Porém, essas populações indígenas têm outra relação com a terra que a demarcação geográfica não dá conta de responder. Se perguntarmos para o representante do consórcio, ele irá negar. Mas todos os estudos antropológicos dão conta disso. Inclusive existe um conjunto de organizações de movimentos sociais requerendo na justiça a anexação desse estudo complementar ao estudo dos impactos da instalação do empreendimento. Portanto a questão do reconhecimento dos impactos para as duas comunidades indígenas ainda é uma demanda que o consórcio não considera. É mais um desrespeito, no nosso entendimento, ao conjunto dos direitos humanos, sociais, culturais, que sabemos que devem ser considerados na instalação de um empreendimento de tão grande envergadura.
IHU On-Line – Sob a perspectiva da devastação ambiental da fauna e da flora já se tem um inventário do que irá acontecer?
Isabel Diniz – Há um conjunto de estudiosos que tem encaminhado esta questão aos órgãos competentes, não só ao Ministério do Meio Ambiente, mas à Casa Civil, questionando ao próprio IBAMA que já deveria ter se posicionado. Esse é um emblema, uma questão emblemática do empreendimento. Não temos até agora, na escalação do empreendimento, o posicionamento do IBAMA, que já recebeu, por parte de organizações, relatórios que são conta de todos os impactos. A instalação do empreendimento está no coração da APP, que é do ponto de vista do Paraná, o lugar com maior número de diversidade de seres vivos, considerando que, para nós, os recursos naturais também são seres vivos.
O estrago é enorme, inclusive do ponto de vista do que irá ser feito, do reflorestamento, da transferência desta biodiversidade e do ponto de vista da fauna e da flora. O próprio consórcio até agora não finalizou a sua proposta de reparo. Há denúncias de que não se tem uma proposta não só de retirada dos animais silvestres, mas também da própria questão da madeira e assim por diante. É uma coisa absurda, que causa indignação até a mais insensível das criaturas, quando se vai lá e identifica o que está acontecendo e o que irá acontecer não só com a população, mas com todo aquele território rico de biodiversidade, de natureza, de plantas exóticas e já em extinção. Isso sem contar nos impactos diretos na qualidade da água, da vida do rio e dos peixes. O Rio Tibagi é um dos últimos rios com a maior diversidade de tipos de peixes, que resistem apesar de toda a poluição. E sabemos que isso vai ser totalmente alterado e mudado.
IHU On-Line – A usina hidrelétrica de Mauá está sendo construída no município de Telêmaco Borba que dista 200 km de Londrina. Por que a cidade de Londrina é que mais se opõe à construção da Usina?
Isabel Diniz – Ela está sendo instalada no município de Telêmaco Borba, mas o município mais impactado é o município de Ortigueira, que, do ponto de vista de IDH, é considerado um dos municípios mais pobres do estado do Paraná. Inclusive, esses dois municípios estão dentro de um outro programa do governo federal chamado “Territórios da Cidadania”, que, por critérios, são aqueles que têm maiores carências em um conjunto de políticas públicas. Então, a contradição da instalação de um megaprojeto de infraestrutura que não é para a qualidade de vida, para mudar as relações sociais, de um ponto de vista de transferência de renda para a população, mas sim o impacto da retirada dessas famílias, o modo como está sendo feito é um desastre sócio-cultural. É uma região do ponto de vista histórico de ocupação do estado do Paraná marcadamente por parte de populações pobres, posseiras. É, de fato, uma região rica, em termos de diversidade, mas empobrecida historicamente pela não presença do estado, pela não efetivação das políticas públicas, ou seja, pela não garantia dos direitos das pessoas e daquelas populações. E quando o Estado vem e se faz presente, é a total contradição: é justamente para retirar famílias que, centenariamente, estão vivendo em torno do rio, que construíram sua vida, a sua história em torno da vida do rio, e agora têm de sair.
Então, na verdade, não é que Londrina é a que mais se opõe. É todo um conjunto de comunidades, que sabem das gravidades dos impactos, não só locais. Londrina, assim como outros municípios que estarão abaixo da barragem, vai sofrer o impacto indireto, porque Londrina e vários municípios em torno do rio Tibagi fazem a captação de água para o consumo na bacia do rio. Nós entendemos que a questão de pensar, refletir a envergadura de impacto de um empreendimento como a usina hidrelétrica diz respeito, sim, às populações das cidades. Nós temos situações já bastante agravadas de contaminação e poluição não só pelos agrotóxicos, mas pelo chumbo e pela questão das minas de carvão recentemente encontradas abertas, que estão impactando na qualidade de água do rio Tibagi. E sabemos também que o projeto da construção da barragem de Mauá inclui a construção de novas unidades hidrelétricas na bacia do rio Tibagi, que estão dentro desse “pacotão” federal de exploração de hidrelétricas para consumo da indústria exportadora. Nós já temos tido bastantes problemas com a qualidade da água nos últimos dois anos, no período de seca, e nós sabemos o impacto na qualidade da água por causa de toda a putrefação do conjunto da biodiversidade que vai ficar no fundo do lago.
Nós sabemos que esse empreendimento não é necessário para o Paraná, é simplesmente para responder a uma necessidade de modelo de consumo e de produção, e nós, as populações direta e indiretamente impactadas, só vamos ficar com o prejuízo e as consequências que, agora e futuramente, infelizmente nem todos os estudos técnicos dão conta de apurar.
IHU On-Line – Na avaliação da senhora, por que o movimento social do Paraná está silencioso sobre esta megaobra?
Isabel Diniz – Generalizar que o conjunto das organizações e dos movimentos sociais está silencioso não seria legítimo com um outro conjunto de organizações que, não só no caso da instalação da unidade de Mauá, mas desde 1994, historicamente, tem travado um embate social de reivindicação de estudos e de questionamentos da não necessidade de instalação de novas hidrelétricas no Paraná, com o grau de envergadura e de impactação que é explícito no caso de Mauá. Nós já tivemos outros momentos de embate quando do projeto de construção das unidades São Jerônimo e Cebolão, no rio Tibagi, em que o estudo de impactação, cercado de irregularidades, foi motivo de várias ações judiciais de um conjunto de organizações sociais do Paraná, e que nós conseguimos reverter. Só para lembrar, em 1999-2000, a Justiça acatou e não autorizou a construção das usinas Cebolão e São Jerônimo.
Desde esse período, há um conjunto de entidades que se organizam em torno da chamada “Frente de Proteção ao Rio Tibagi” – a própria Comissão Pastoral da Terra, alguns parlamentares, vários estudiosos da Universidade Estadual de Londrina, de Ponta Grossa, de Maringá, alguns segmentos do Judiciário paranaense –, que têm se envolvido e que têm se mobilizado. Sabemos que as mobilizações feitas não deram conta de responder a todo o conjunto de demandas trazido.
Por outro lado, é correto: o conjunto da sociedade organizada paranaense, nos seus vários segmentos, de fato não tem olhado com a devida atenção para a gravidade das irregularidades, para a gravidade da impactação desse empreendimento no único rio do Paraná ainda não secionado, para a real não necessidade de produção de energia para o consumo interno. De fato, há um conjunto de questões que são frágeis diante da não participação de toda a sociedade. Mas isso não nega as pequenas ações realizadas e feitas, haja vista inclusive que nós temos rodando, nos vários níveis da Justiça do Paraná e em nível nacional, várias ações que também são o suporte das ações de mobilização, de organização, inclusive lá nas comunidades impactadas, de assembleias e de audiências públicas, de reuniões de cobrança de esclarecimento, de acompanhamento de vários casos graves de desrespeito, de tratamento desumano, de abuso de autoridade, de intimidação que vem acontecendo nas comunidades ribeirinhas.
Além de todas essas questões, o que está muito complicado lá na região é essa questão da intimidação, da pressa do consórcio em tratar as questões que ainda não estão decididas, resolvidas. Nessa questão de complementação de estudo, de cadastro, há sempre um questionamento por parte da comunidade de que o cadastro que o consórcio tem – e que já está na segunda fase de levantamento – não dá conta das reais necessidades.
No último ano, nós acompanhamos várias situações de intimidação, de retirada à força de famílias da barranca do rio, de pessoas que tinham que retirar suas coisas e seus animais de um dia para o outro, pessoas que passaram mal, que ficaram doentes, que tiveram, por exemplo, ataques cardíacos, AVC, um conjunto de questões que, junto o Ministério Público Federal, nós estamos acompanhando. E por conta desses cadastros incompletos, nós tivemos o primeiro caso de suicídio de impactado, que foi um senhor, um posseiro, que, no primeiro cadastro do consórcio, ele era considerado agregado do proprietário. E, no segundo cadastro, a empresa contratada para fazer o levantamento para a indenização não o considerou. Foram considerados apenas o proprietário, outras duas famílias de agregados, e esse senhor, que vivia sozinho, não foi considerado e acabou se suicidando agora no dia 20 de novembro. Na tratativa com o consórcio, nas denúncias, isso é tratado como normal. Isso nos preocupa bastante, essa forma desrespeitosa, além das irregularidades com que o consórcio age, delibera, legisla e muda a vida das pessoas, sem nenhum escrúpulo, sem nenhuma preocupação.
Se o conjunto das autoridades, se as organizações dos direitos humanos não forem para a região e não pegarem firme, o desastre pode ser muito maior. Nós podemos ter casos desastrosos como foi Salto Segredo. E se amanhã ou depois nós tivermos famílias desaparecidas na barragem, não vai ser surpresa pela forma como vêm sendo encaminhadas as questões pelo consórcio e pelos seus representantes para com o conjunto da população.
(Ecodebate, 07/01/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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