Aquecimento global deve provocar aumento de desastres naturais, afetando 175 milhões de crianças por ano
Pequenas vítimas - Meninos e meninas sofrerão mais com a fome e doenças como a diarreia e a desnutrição.
Fome, sede, doenças e oceanos em fúria. Os cenários catastróficos previstos pela ciência caso o homem não consiga frear o avanço do aquecimento global afetarão drasticamente quem menos tem culpa pelas emissões de carbono na atmosfera. Enquanto delegados de quase 200 países se digladiavam na capital da Catalunha, tentando encontrar um consenso sobre números e cifras, a organização não governamental Save the Children fez um apelo: não se esqueçam das crianças.
No relatório Feeling the heat — child survival in a changing climate (Sentindo o calor — a sobrevivência das crianças nas mudanças climáticas), lançado em Barcelona, a ONG alerta que, na próxima década, 175 milhões de meninos e meninas serão afetados, a cada ano, por desastres naturais, como inundações, ciclones e secas. As estatísticas do informe são baseadas em dados oficiais do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), além de pesquisas do Banco Mundial e de universidades ao redor do planeta. Reportagem de Paloma Oliveto*, no Correio Braziliense.
Combinados com um incremento da desnutrição e de enfermidades como a diarreia e as doenças tropicais, os fenômenos naturais deverão aumentar as taxas de mortalidade infantil. Todos os anos, aproximadamente 9 milhões de crianças morrem antes de completar 5 anos. Noventa e oito por cento desses óbitos ocorrem em países pobres e em desenvolvimento, que concentram as mais altas taxas de mortalidade infantil. O relatório mostra que o cenário pode piorar em 2020 por causa das mudanças climáticas. A estimativa é que os casos de diarreia, que matam 1 milhão de crianças por ano, aumentarão 10%. Já as mortes por desnutrição deverão passar de 3,2 milhões para 25 milhões em 2050.
“As crianças das comunidades mais pobres serão as mais afetadas, à medida que as mudanças climáticas reduzem o acesso à água e ao solo cultivável. Pelo mesmo motivo, o preço dos alimentos vai aumentar”, explica Alberto Soteres, executivo do Save the Children na Espanha. “Também estamos preocupados porque a frequência e a intensidade maior dos desastres naturais, consequências das mudanças climáticas, vão se associar ao aumento da desnutrição e de doenças como a diarreia e a malária, que já são as grandes causadoras das mortes infantis.”
O especialista em mudanças climáticas da Save the Children inglesa Benedict Dempsey conta que, desde a década de 1980, o número de desastres naturais aumentou de 200 ocorrências por ano para 400. “E há outros problemas. À medida que as temperaturas sobem, os mosquitos transmissores da malária vão se espalhar para novas áreas, de forma que, por volta de 2080, entre 260 e 320 milhões de pessoas poderão ser infectadas”, prevê. Dempsey também lembra que a mudança climática vai provocar migrações, afetando, principalmente, os mais pobres.
Vice-presidente da ONG nos Estados Unidos, Rudy Von Bernuth aponta quais crianças sofrerão mais os impactos das mudanças no clima. “No leste da África, a atual crise dos alimentos, exacerbada pelas alterações anormais do tempo, está ficado cada vez pior. Cerca de 20 milhões de pessoas passam fome e, somente no Quênia, onde a Save the Children lançou um grande apelo global por assistência emergencial, perto de 4 milhões de crianças estão perto de morrer de fome”, alerta.
Foi o caso do pequeno Abdi, 4 anos, morador de Mandera, no leste do país, que perdeu um terço do seu peso depois de ser infectado pela malária. A criança conseguiu ser salva por causa de ajuda humanitária. De 2005 até este ano, o Quênia vem enfrentando um longo período de secas, o que contribuiu para aumentar o número de pessoas sem acesso a comida. Abdi e sua família, formada tradicionalmente por agricultores, agora dependem de doações e, mesmo com a colaboração de ONGs, só conseguem se alimentar duas vezes por dia, em pratos rasos.
“Tragicamente, essas coisas que vimos no leste africano se tornarão cada vez mais comuns”, alerta Von Bernuth. “Hoje, estamos convocando governos para fortalecer ações nas áreas de saúde, saneamento e acesso à água nas nações mais pobres da Terra de forma que elas consigam suportar os efeitos da mudança climática”, diz. Ele cita como exemplo a necessidade de providenciar intervenções simples, mas que podem salvar vidas, como mosquiteiros, soro oral e vacinas.
Prevenção
Bernuth diz que é essencial promover capacitação nas áreas mais vulneráveis aos fenômenos climáticos. “A redução de riscos em desastres é o primeiro passo para ajudar as comunidades a se adaptarem aos fenômenos naturais. Em Bangladesh, por exemplo, nós estamos treinando voluntários para garantir a evacuação das áreas quando o alarme dos ciclones é acionado”, conta.
Nos locais onde não há sinais preventivos, a população tem de contar com a própria sorte. Em maio de 2008, aproximadamente 140 mil pessoas morreram e 2,4 milhões foram atingidas pelo ciclone Nargis, em Mianmar. Nyi Lay, 12 anos, morador de uma vila em Labutta, está entre os afetados que tiveram a sorte de sobreviver. Quando começou o ataque do ciclone, a casa do menino quase desabou. O pai de Nyi decidiu, então, correr com a família para um banco de praça.
“Minha mãe segurava meu irmão mais novo, e minha irmã mais velha segurava a caçula. Tinha umas 30 pessoas no banco”, relatou o menino ao informe do Save the Children. “O vento e a chuva começaram a ficar tão fortes que o banco ficou coberto de água. Quando a água estava na altura do peito do meu pai, decidimos subir nas árvores.”
De repente, disse Nyi, as árvores caíram. “Então me separei da minha mãe e do meu pai. Agarrei um tronco de árvore e fiquei flutuando a noite inteira. Foi assustador”, contou. Apesar de se salvar, o menino perdeu os pais e o irmão mais novo na tragédia — eles nunca mais foram vistos. “Eu sinto a falta deles. Sempre fico pensando se continuam vivos.”
Na Índia, além dos ciclones, a população vive sob a ameaça de inundações e perdas agrícolas. O país é considerado um dos mais vulneráveis da Terra às mudanças climáticas e também lidera o ranking mundial de mortalidade infantil: aproximadamente 2 milhões de crianças indianas morrem com menos de 5 anos.
Praveen, moradora do Rajaquistão, relatou seu sofrimento no informe da Save the Children. Mãe de oito crianças que sempre estão com alguma doença, ela perdeu recentemente um filho de 5 meses, vítima da desnutrição. Uma de suas filhas está parcialmente cega depois de sofrer de um mal não diagnosticado. “Eu não sei a quem recorrer quando preciso de remédios. Acho que doenças e má saúde acontecem para algumas crianças, e as minhas estão entre elas”, diz.
“As crianças dos países mais pobres do mundo não são responsáveis pelas mudanças climáticas, embora estejam entre as mais afetadas”, afirma Von Bernuth, que defende um financiamento específico para a infância por parte das nações desenvolvidas para mitigar os danos causados a milhares de meninos e meninas. “Dar suporte a essas crianças não é um ato de caridade. Aqueles que causaram a mudança climática têm a responsabilidade de assistir aqueles que estão sofrendo por isso.”
* A repórter viajou a convite da organização da COP-15
Leia a íntegra do relatório da Save the Children, em inglês
EcoDebate, 09/11/2009
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