Dossiê EcoDebate: Demarcação de terras indígenas no Mato Grosso do Sul
Coronel Sapucaia (MS) – Dentro de barracões de lona à beira de rodovia, índios da comunidade do Kurussu Ambá chegam a dormir no chão pela falta de espaço e de colchões Foto: Valter Campanato/ABr
- Sem terras, indígenas sobrevivem às margens de rodovia em Mato Grosso do Sul
- Às margens de rodovia, guarani kaiowá reivindicam “cemitério de antepassados”
- Índios de Amambai sonham com mais terra para produzir e reduzir dependência
- Fazendeiros dizem que demarcação em Mato Grosso do Sul é discussão econômica
- MPF: destinação de terras para os guarani kaiowá é caminho sem volta
- Índios atribuem violência em reserva à falta de espaço e entrada de brancos
- Área sob litígio aumenta tensão entre índios e fazendeiros na fronteira com o Paraguai
- Indígenas de Amambai reclamam de ameaças de fazendeiros e perseguição da polícia
- Produtores recorrem à segurança privada para evitar invasões de índios
- À espera de mais terras, famílias da reserva de Dourados enfrentam dificuldades
- Funai reconhece falhas na prestação de assistência aos guarani kaiowá
- Área homologada mostra diferença entre modo de vida indígena e de colonos
- Antropólogo diz que estudos não são jogo de cartas marcadas a favor de índios
* Sem terras, indígenas sobrevivem às margens de rodovia em Mato Grosso do Sul
Coronel Sapucaia (MS) – Às margens da Rodovia MS-284, que liga a cidade de Amambai a Coronel Sapucaia, próximo da fronteira com o Paraguai, dezenas de barracas de lona servem como abrigo para 76 famílias de índios da etnia Guarani Kaiowá.
Eles esperam o reconhecimento do direito de posse das terras tradicionais, hoje ocupadas por mais de dez fazendas nos limites entre os dois municípios vizinhos. Formam a comunidade ou aldeia do Kurussu Ambá.
A recepção a quem chega tem a desconfiança de quem já deparou com visitas pouco amistosas e se acostumou a viver sob ameaça desde 2007. Pelo menos três líderes indígenas foram mortos após tentativas de ocupação de parte das terras reivindicadas. Uma das vítimas foi Ortiz Lopes, executado a tiros por um desconhecido na porta de casa, em 8 de julho de 2007. Os índios dizem que os crimes foram cometidos por jagunços a mando de fazendeiros.
Após detalhada identificação, os homens – que costumam se aproximar de visitantes desconhecidos munidos de porretes para, se necessário, se defender – se dispõem a falar sobre o drama em que se encontram. Querem se pintar para a ocasião e providenciam até uma espécie de “brincadeira de adultos”, que funciona como dança de boas-vindas. A alegria some, entretanto, ao lembrarem que a luta pela terra segue sem previsão de fim.
Os estudos de demarcação que antecedem a homologação da área ainda não foram concluídos. Fica a persistência, como relata Cilene Fernandes, 28 anos, indicada para ser a porta-voz do grupo na entrevista.
“A gente vai caminhando em frente, mesmo que aconteça alguma coisa a mais. A gente não vai desistir da nossa terra. Não podemos deixar isso para os fazendeiros. Se não entrarmos lá, eles vão destruir todas as florestas. Antes que façam isso, temos que retomar o que é nosso”, afirmou Cilene. “A gente se protege. Qualquer ameaça, todo mundo se junta e assim nós vivemos aqui dentro”, acrescentou.
No barracões precários, as famílias se espremem. Até mães com crianças de colo dormem no chão. Para se alimentar, dependem da distribuição de cestas básicas pelos governos federal ou estadual, sujeita a atrasos. Em troca de algum mantimento, os homens prestam pequenos serviços na Aldeia Taquaperi, vizinha à área das barracas improvisadas.
As crianças não estudam e são as mais prejudicadas pela frágil alimentação. Desde 2007, duas morreram de desnutrição na comunidade. “As crianças passam muita dificuldade, elas estão desnutridas, precisam de alimentação e a gente não tem de onde tirar, não consegue plantar nada”, disse Cilene.
Bem perto dali, o contraste social da região se evidencia. Do outro lado da rodovia, há uma grande plantação de soja, já colhida. Índios contam que ficaram gripados quando o vento jogou sobre eles parte do veneno usado na plantação. Alguns quilômetros acima, é possível ver as boiadas em imensos pastos.
Na despedida, os índios sem terra pedem para não serem esquecidos pelas autoridades. “Nossa situação tem que ser resolvida. A gente se envergonha de ficar nessa beira de estrada. Só estamos esperando a demarcação para voltar a nossa terra e plantar alguma coisa para as crianças”, afirmou Cilene.
Dourados (MS) – Crianças indígenas crescem em acampamento precário à beira de rodovia federal Foto: Valter Campanato/ABr
* Às margens de rodovia, guarani kaiowá reivindicam “cemitério de antepassados”
A apenas 5 quilômetros do centro de Dourados, 12 índios da etnia Guarani Kaiowá vivem acampados às margens da Rodovia BR-463, na saída para Ponta Porã, em frente a uma grande fazenda na qual dizem estar enterrados alguns de seus antepassados.
Os três barracos, improvisados com lona e pedaços de madeira velha, contrastam com as grandes propriedades rurais da região. No acampamento não há energia elétrica e os índios tomam banho e bebem água em um córrego próximo que está poluído. Eles se alimentam de cestas básicas entregues pela Fundação Nacional do Índio (Funai) a cada 15 dias. Não trabalham e às vezes vendem latinhas e garrafas descartáveis recolhidas às margens da rodovia. Dormem no chão ou em finos e gastos colchonetes, num local usado como galinheiro durante o dia.
“Estamos passando dificuldade aqui. A comunidade está sem coberta, dormindo no chão, fazendeiro não deixa a gente cortar nem lenha seca. Já falou que se cortar madeira lá, pistoleiro vai matar índio aqui e se pescar no córrego também”, lamentou a líder do grupo, Damiana Cavanha, 75 anos.
“A gente já pediu pão na cidade. Aqui não dá para plantar nada nem para criar galinha direito. Ainda tem dez [galinhas], mas estão acabando. Se chove, molha a gurizada toda, que não tem cama nem coberta para diminuir o frio. Precisamos de lona, agasalhos e roupinhas”, acrescentou.
Na luta pela terra, os índios já se instalaram além dos limites da cerca. Nas duas vezes foram retirados – uma pela Polícia Federal e outra por uma empresa de segurança privada contratada pela fazenda.
Os indígenas dizem ter sido orientados pela Funai a se manterem pacificamente às margens da rodovia até que tenham uma autorização judicial para ocupar parte do que hoje é a fazenda. “Tem que esperar a ordem do juiz. Mas essa terra é do índio mesmo. Minha tia está enterrada num cemitério lá. Tem que pegar para a gente pelo menos um pedaço de terra”, afirmou Damiana.
“Quando a gente quer muito conseguir alguma coisa, tem que cantar e rezar”, explicou Damiana ao fazer uma demonstração de sua cultura tradicional, com cantos e danças. Nas andanças pela aldeia, a líder indígena tem a companhia constante de um urubu que costuma pousar em sua cabeça como se fosse de estimação.
Os donos da propriedade não foram localizados para comentar a reivindicação dos índios de ter parte da área reconhecida. Outros fazendeiros da região disseram que a família já se aborreceu muito com a situação e evita comentar o assunto.
* Índios de Amambai sonham com mais terra para produzir e reduzir dependência
Com aproximadamente 6 mil índios em uma área de 2,2 mil hectares, a aldeia de Amambai abriga famílias que sonham em recuperar terras de seus antepassados e enfrentam os reflexos negativos da falta de espaço para manter hábitos de uma cultura tradicional.
Há moradias em boas condições, mas também muitas casas de sapê, com coberturas improvisadas por indígenas que chegaram ao local depois de serem expulsos ou removidos de outras localidades que deram lugar a fazendas.
Calejado na luta pela terra, o índio kaiowá Italiano Vásquez, 52 anos, estima que as famílias da aldeia teriam direito a pelo menos mais 1,5 mil hectares onde viveram antigas gerações. Os estudos de demarcação iniciados em 2008 foram suspensos por determinação judicial. No fim de agosto, entretanto, a Advocacia-Geral da União (AGU) conseguiu cassar a liminar na Justiça liberando a retomada dos estudos na região.
“Aqui em Amambai está lotado e não cabe mais ninguém. Estamos cheios de gente morando praticamente um em cima do outro. Cada patrício tem só 1 hectare”, descreveu Italiano, pai de oito filhos, ao caminhar entre pequenas plantações de mandioca, banana e cana-de-açúcar.
“Tinha 3,6 mil hectares o nosso tekoha [o lugar onde o indígena realiza o seu modo de ser, na língua guarani], que agora se chama aldeia indígena de Amambai. Cada vez mais foi diminuindo e a população Guarani Kaiowá cada vez mais aumenta. Queremos terra para trabalhar e plantar, porque tem mais crianças chegando”, acrescentou o indígena, ex-capitão da aldeia em que nasceu e presidente de uma associação de produtores indígenas.
Italiano sabe que a esperança de recuperar a terra depende de um acordo entre produtores rurais e autoridades para desapropriação das áreas.
“Nossa luta é para retomar o chão que foi nosso. Isso é o mínimo que nós queremos do governo federal e da Funai [Fundação Nacional do Índio], o nosso chão de volta. Não estou pedindo ao fazendeiro para me dar área produtiva dele, só o que é nosso”, argumentou.
Retomar o chão tradicional, entretanto, não será suficiente para garantir melhores condições de sustento. Uma queixa geral da comunidade é a ausência de assistência técnica adequada para lidar com a lavoura. Sem ela, há dependência das cestas básicas doadas pelo governo.
“Precisamos de orientação, acompanhamento técnico, defensivos, adubos e sementes na época certa. Muitas vezes chegam as coisas depois que passou a época certa e aí falam que os indígenas não querem trabalhar. Depois que passou a época do plantio não adianta”, ressaltou Italiano.
A aldeia de Amambai, como outras na região, está cercada por latifúndios nos quais há produção de soja e outros cereais e criação de grandes rebanhos bovinos.
É embaixo de parte dessas terras que os índios encontram os argumentos para reivindicar o direito às áreas. “Queremos o lugar onde moravam nossos avós. Lá tem cemitério indígena em que os fazendeiros meteram trator em cima”, disse Italiano.
Acampada em barracos improvisados em um canto da aldeia de Amambai, os cerca de 20 integrantes da família do kaiowá Nízio Gomes têm de se acomodar com dificuldade para dormir no chão, enrolados apenas em um pano. Eles reivindicam outra área que hoje está ocupada por uma fazenda. Segundo o indígena, a cesta básica distribuída pela Funai é insuficiente para o sustento. A precariedade faz com que Gomes deseje ainda mais depressa a “recuperação” da terra de onde seus antepassados teriam sido expulsos na década de 70.
“Essa aldeia é dos outros, não é minha. Quero entrar [na outra área], acampar, sem prejudicar fazendeiro. Se ele quer, pode retirar tudo, madeira, árvore. Só queremos uma terra, na quantia que o governo demarcar”, afirmou.
A falta de terra cria distintas situações na aldeia de Amambai. Enquanto famílias ficam dependentes das cestas básicas doadas pelo governo, outras tentam melhorar de vida com ajuda dos mais jovens que deixam aldeia em busca de trabalho na lavoura de cana. As usinas que usam a mão de obra indígena ficam a até 500 quilômetros de distância. Pela temporada de trabalho com o facão, em torno de 70 dias, cada índio volta para casa com a quantia de R$ 1 mil a R$ 2 mil. Com esse dinheiro, a família compra material de construção, móveis e paga dívidas.
“[O índio] Não acha serviço por aqui, tem muito preconceito. Quase não tem patrício que trabalha na cidade”, queixou-se Italiano.
* Fazendeiros dizem que demarcação em Mato Grosso do Sul é discussão econômica
Os produtores rurais do sudoeste de Mato Grosso do Sul, onde estão algumas da terras mais férteis e produtivas do país, acreditam que os estudos técnicos para identificação de áreas indígenas na região são inúteis e não resultarão em medidas práticas.
Para esses fazendeiros, que têm documentos de posse da terra, a discussão de uma solução para os índios que vivem em aldeias próximas ou em acampamentos à beira de estrada tem viés estritamente econômico, diferentemente do cenário que resultou na demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
“Não precisa do terrorismo instalado pelo governo federal, pela Funai [Fundação Nacional do Índio] e pelas ONGs [organizações não governamentais] no nosso estado. Aqui não é Roraima. Com certeza não vai haver demarcação de terra indígena. Pode haver uma aquisição de terras pelo governo federal, se o proprietário quiser. E tem que pagar por elas, pois temos títulos emitidos pela União. Temos documentação”, ressaltou o pecuarista Gino José Ferreira, que tem área arrendada no município de Bela Vista e cria gado em Dourados, onde presidiu o Sindicato Rural.
“Tem proprietários que vendem sua propriedade e outros que não vendem. Mas nunca vamos voltar à origem dos indígenas de 100 anos atrás. Isso é a utopia dos medíocres. Se quiserem sentar com os proprietários rurais para resolver o problema indígena no nosso estado, vamos sentar e resolver, ver de que o governo federal dispõe para indenizar os produtores”, acrescentou.
Segundo o presidente do Sindicato Rural de Dourados, Marisvaldo Zeuli, 1 hectare de terra na região está avaliado em R$ 20 mil para uma eventual desapropriação. Mas, de acordo com ele, os produtores também têm vínculos fortes com a terra. “Tem pessoas com laços familiares aqui e muito amor pela terra. Não é comprando que se resolve. Existe terra do narcotráfico e do governo para dar aos índios. Não precisa tirar de quem está produzindo”, defendeu.
Para os produtores, a demarcação de terras indígenas atende a interesses estrangeiros. O pecuarista Dácio Queiroz, diretor da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), diz que os atrativos da terra vermelha da região vão além da fertilidade.
“Quando você vê o subsolo, a biodiversidade, o Aquífero Guarani, só pode ter nisso interesse externo por recursos naturais sob o manto da causa indígena. Nossa política indigenista está carregada de sotaque”, criticou Queiroz. “São interesses de fora do país para desestabilizar o setor produtivo do Brasil. Quem vai mandar no mundo é quem produzir mais alimentos e essa é uma da regiões mais produtivas do mundo”, completou Ferreira.
Os fazendeiros garantem ter uma solução melhor para os indígenas da região, sem levar em consideração, entretanto, as tradições e os costumes da outra cultura.
“Antigamente os proprietários rurais tinham como parceiros em lavouras os indígenas. Na fazenda do meu pai sempre trabalhavam 20, 30 indígenas na lavoura e na pecuária, e todos viviam bem, tinham salário. Índio que trabalha não quer demarcação de terra”, argumentou o pecuarista Gino José Ferreira Ferreira, criador de gado na região de Dourados.
Segundo o pecuarista Dácio Queiroz, há no Brasil atualmente uma “política equivocada de segregação da espécie humana”.
Na concepção dele, o índio quer receber documentos e as mesmas condições de educação dos que os brancos e dessa forma se integrar à sociedade e ter qualidade de vida. Queiroz destaca o grande número de índios empregados em usinas de cana-de-açúcar na região como exemplo.
Os fazendeiros criticam o trabalho dos antropólogos que antecede as demarcações e homologações de terras indígenas no Brasil. No caso de Mato Grosso do Sul, os produtores argumentam que os títulos de posse das áreas superam qualquer estudo.
“Não adianta estudar minha propriedade se tenho título definitivo. Se algum dia ela foi de índio, o Brasil inteiro também foi. Tinha que arrumar uma enxada para esses antropólogos, para eles não ficarem em sala com ar condicionado criando conflito”, ironizou Ferreira.
* MPF: destinação de terras para os guarani kaiowá é caminho sem volta
O procurador da República em Dourados, Marco Antonio Delfino de Almeida, garante que as novas demarcações de terras indígenas destinadas aos guarani kaiowá em Mato Grosso do Sul irão ocorrer.
“O que a sociedade sul-mato-grossense precisa entender é que esse processo de demarcação não tem volta. Não há nenhuma possibilidade de colocar 40 mil índios debaixo do tapete. A demanda humanitária é muito grave”, afirmou.
Praticamente todos os produtores rurais do sudoeste de Mato Grosso do Sul possuem títulos de propriedade emitidos pela União e as destinações de terra a indígenas enfrentam resistências de setores da sociedade e do governo estadual.
“Houve titulação indevida [de propriedades rurais]. O governo não poderia ter titulado, titulou, e agora vai ter que compensar essas pessoas”, acrescentou Delfino, ao ressaltar que o governo estadual também emitiu documentos de posse a produtores da região e poderá ter que arcar com algumas indenizações.
Segundo o procurador, a União cometeu um equívoco histórico no estado ao obrigar os índios a deixar as terras tradicionais e viver em espaços reduzidos nas reservas. “Há por parte da União um dever indiscutível de reparação a essa população.”
A pedido do MPF, a Advocacia-Geral da União (AGU) conseguiu cassar no fim de agosto uma liminar – concedida pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região à Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul) – que suspendia a retomada dos estudos técnicos por antropólogos.
O trabalho de identificação compreende a vistoria de áreas particulares em 26 municípios. Essa é uma etapa que antecede a demarcação e homologação de terras indígenas.
Portarias da Fundação Nacional do Índio (Funai) sobre os estudos antropológicos preveem a participação de representantes do governo estadual na elaboração dos documentos e nas coletas de informações. Mas o Mistério Público Federal (MPF) tentará impedir essa atuação, sob alegação de que o estado teria ajudado entidades ligadas aos produtores a contratar advogados para emperrar o processo. O MPF só aceita o acompanhamento de representante do governo estadual na vistoria a fazendas.
“Não há a mínima possibilidade de que o diálogo permaneça, já que as partes romperam o acordo. A observação é, sob certos aspectos, possível, mas, a partir do momento em que a ideia do governo do estado é judicializar o processo, temos que nos acautelar e não permitir que ele participe”, justificou Delfino.
O governo de Mato Grosso do Sul informou que só irá se pronunciar depois que for notificado oficialmente do pedido do Ministério Público Federal.
O MPF firmou com a Funai, em novembro de 2007, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para que a cessão de terras aos guarani kaiowá esteja resolvida até o fim de 2010. A procuradoria estuda saídas para que o prazo possa ser cumprido.
“O processo administrativo e judicial é muito moroso e impossibilita que as populações indígenas tenham uma vida digna. Estamos pensando em medidas judiciais para, de uma forma ou outra, tornar esse rito mais célere. O TAC não está sendo descumprido por força da Funai, há elementos políticos e jurídicos”, disse Delfino.
Uma medida emergencial adotada pela procuradoria foi determinar o reforço de policiamento na reserva de Dourados, que receberá operações rotineiras coordenadas pela Polícia Federal, com participação da Polícia Militar e colaboração de líderes indígenas, que vão fornecer informações.
Delfino já cobrou da Funai melhorias na prestação de assistência nas aldeias. Os índios reclamam de atrasos na distribuição de materiais para projetos agrícolas e de cestas básicas. O procurador entende que a fundação precisa de pelo menos mais 100 servidores no estado e que as cestas básicas devem ser eliminadas futuramente.
Ele rebateu a acusação de fazendeiros de que o MPF tenta “anarquizar” a região e incitar conflitos. Disse que os ruralistas devem se informar melhor sobre as leis. “Vejo por parte dos produtores rurais uma leitura míope da Constituição, por preguiça ou má-fé. A Constituição não garante apenas o direito de propriedade, mas também a terra para as comunidades indígenas”, destacou Delfino.
* Índios atribuem violência em reserva à falta de espaço e entrada de brancos
Principal exemplo da concentração populacional de índios Guarani Kaiowá em espaços reduzidos (ilhas) em Mato Grosso do Sul, a reserva de Dourados – onde mais de 13 mil indígenas dividem 3,5 mil hectares – enfrenta problemas sociais que vão além da escassez de terra para plantar.
Alcoolismo, assassinatos, suicídios e disputas internas são faces da realidade cotidiana na aldeia. Quem nasceu e cresceu na região defende reforço policial e garante que as principais causas da violência são a superlotação e a presença de mestiços e brancos no local.
“Essas drogas e bebidas que entram é porque pessoas não indígenas ficam aqui quase 24 horas por dia. A cidade é pertinho e eles entram com essa droga porque os indígenas que trabalham na usina [de cana-de-açúcar] têm seu dinheirinho e compram essa droga, porque fazem a cabeça do índio, que é fraca demais”, assinalou Getúlio Juca de Oliveira, 56 anos, tradicional líder da reserva de Dourados. Ele já foi capitão da aldeia e hoje ajuda a organizar assembleias indígenas.
“Tem uma família aqui, outra ali, outra lá e não tem como sair. Queremos plantar, mas não tem espaço. O índio sai de manhã e já vê a cara do vizinho a uma distância de 20 metros. Antigamente um vizinho, uma família, vivia a 20 quilômetros um do outro, uma da outra”, acrescentou ele, que vive com dez parentes em casa de sapê.
O número crescente de assassinatos na aldeia preocupa as famílias. A reserva de Dourados, que fica a poucos quilômetros do perímetro urbano do município sul-mato-grossense de mesmo nome, tem um índice de 145 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes, de acordo com dados do MPF. A média brasileira é de 24,5.
Muitos indígenas, como Itamar da Silva, 32 anos, pai de três filhos pequenos, evitam sair de casa à noite. “Aqui perto de casa, toda noite, depois das 8h, ficam dando tiro na encruzilhada. São caras que vêm da cidade e se juntam com o pessoal novo, trazem bebida e saem por aí provocando os moradores”, relatou Silva.
“Hoje, para mandar a criança para escola à noite não dá mais, porque lá na frente já encontra gente com facão e arma de fogo na estrada. E também lá dentro da escola já começa essa coisa maldita de cigarro e droga”, reforçou Alda, 58 anos, mulher de Oliveira. Ela, como outros líderes da aldeia, acredita que só a presença mais ostensiva de policiais poderá levar paz ao local.
“Por causa do mestiço e do branco que entram na nossa aldeia é que estão acontecendo os problemas. Precisamos de Justiça e segurança. Se tivesse mais polícia fazendo ronda, a gente ficaria feliz. Pedimos, pelo amor de Deus, socorro. Até criancinha pequena está tomando [bebida alcoólica] e fumando”, disse Alda.
Para o líder Getúlio, a impunidade em relação aos crimes na aldeia gera mais violência. “O parente do finado fica bravo igual a uma onça quando vê que não acontece nada e aí pioram as coisas. Tem que ter um castigo”, defendeu.
Uma força-tarefa envolvendo agentes da Polícia Federal e policiais militares está responsável por fazer policiamento de rotina nas aldeias Jaguapiru e Bororó, que integram a reserva de Dourados, a pedido do Ministério Público Federal (MPF). Não está descartado a solicitação de reforço da Força Nacional de Segurança Pública para conter a violência na área.
Os suicídios são encarados como uma doença que se espalha e são combatidos, segundo Getúlio, com muito trabalho dos líderes espirituais.
* Área sob litígio aumenta tensão entre índios e fazendeiros na fronteira com o Paraguai
No sudoeste de Mato Grosso do Sul, índios e fazendeiros vivem sob clima de tensão permanente em áreas já homologadas para as comunidades tradicionais, mas com situação pendente de decisão judicial. Uma das áreas em litígio fica no município de Antônio João, a cerca de 200 quilômetros de Dourados, em uma faixa da fronteira com o Paraguai.
Cerca de 700 índios guarani kaiowá vivem sem energia elétrica na aldeia Nhanderu Marangatu, em 128 hectares, apesar de a área homologada pelo governo, em março de 2005, ser de mais de 9,4 mil hectares. Grande parte dessas terras está dentro da Fazenda Fronteira, unidade de produção pecuária. Segundo os proprietários que recorreram na Justiça contra a homologação e obtiveram liminar para permanecer até o julgamento de mérito, existem no local mais de 3 mil cabeças de gado. Eles dizem que a terra foi devidamente titulada na década de 50.
Acomodados em barracos precários de sapê, madeira, lona e folhas, os índios kaiowá se dizem cansados de esperar pelo direito de ocupar a terra onde viveram seus antepassados, como comprovam laudos antropológicos, e cogitam invadir a área da fazenda.
“Se não liberar logo essa terra para nós, vamos invadir. Cansamos de esperar. Essa terra já está há quase 15 anos para ser entregue e temos que nos virar para dar comida aos nossos filhos. O governo fala que vai liberar a terra, mas não libera”, reclamou Andrés Morel, índio de 61 anos que vive com cinco filhos na aldeia.
Os indígenas afirmam que são constantemente intimidados por “pistoleiros dos fazendeiros” quando andam pelas redondezas.
“Eles [fazendeiros] não querem entregar para nós [a terra]. E os pistoleiros ficam em cima. Lenha nem folha dá pegar mais mais. Tomam machado, mandam a gente deitar. Ficamos sempre com medo, encostam arma na gente”, contou Salvador Reinoso, 67 anos, auxiliar do capitão da aldeia.
“Aqui é muito apertado, a gente planta pouco. Tudo falta para nós. Precisamos ocupar a área toda onde nossos avós morreram. Demoram para chegar aqui as cesta básicas. A Funai [Fundação Nacional do Índio] prometeu cesta para nós a cada 15 dias, mas [elas] não vêm”, acrescentou.
Os donos da Fazenda Fronteira não foram encontrados na sede da propriedade. Em entrevista por telefone, um deles, Dácio Queiroz, 51 anos, diretor da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), afirmou que lutará até o fim na Justiça para não deixar a área, da qual teria de sair recebendo apenas indenização por benfeitorias. “Os índios só vão invadir a fazenda se passarem por cima do meu cadáver”.
Queiroz admitiu ter contratado seguranças armados para vigiar a propriedade e não autorizar a entrada dos índios. “Não posso permitir que índios invadam e prejudiquem minha atividade econômica, que é essencialmente pecuária. Eles põem fogo em áreas. É um engodo dizer que índio protege o meio ambiente.”
O pecuarista não aceita a homologação feita pelo governo. Segundo ele, quando o seu pai, comprou a área, em 1947, não havia indício de moradia indígena nos limites da fazenda, mas “vestígios rupestres”.
“Fizemos laudos contraditórios, com documentos, mas não adiantou nada. Foram insensíveis com os pioneiros que desenvolveram a região”, reclamou. “Agora temos que nos segurar com a luta de liminares na Justiça.”
Queiroz alega também que, até 1995, na área onde hoje está localizada a aldeia Nhanderu Marangatu, só havia cerca de 35 índios. Ele diz que o processo de ocupação da comunidade foi intensificado para forçar o reconhecimento de mais terras como indígenas.
“De repente começou a aparecer Kombi, ONG [organização não governamental], caminhão, antropólogo e ônibus cheio de índio de outros lugares”, criticou.
* Indígenas de Amambai reclamam de ameaças de fazendeiros e perseguição da polícia
A luta dos índios da etnia Guarani Kaiowá pelo reconhecimento da posse de terras tradicionais no sudoeste de Mato Grosso do Sul coincide com o aumento de casos de suicídio das aldeias, sobretudo, nos últimos 20 anos, e também com o crescimento do número de assassinatos.
Entre as razões para esse quadro, os indígenas apontam ameaças constantes a mando de fazendeiros, preconceito de autoridades e divergências internas decorrentes da escassez de espaço.
“Muitos já morreram, outros sofrem ameaças e são atropelados em rodovias. Sofremos muitos acidentes de trânsito sem o motorista prestar algum socorro. Passa, mata e vai embora por causa dessa demarcação. Para sairmos por aí, temos que nos cuidar”, disse Italiano Vásquez, ex-capitão da aldeia de Amambai, ao se referir à reação dos fazendeiros após o início dos estudos antropológicos na região.
O kaiowá Nízio Gomes diz que já sentiu na pele os efeitos de sua persistência em “recuperar” terras que hoje fazem parte de fazendas da região. A família, diz ele, foi expulsa do local em 1975.
“Já me bateram na beira da rodovia quando eu vinha à noite. Tenho medo, mas não paro [a luta pela terra], porque, se eu morrer, misturo com a terra de novo”, disse o índio.
Os indígenas também reclamam da conduta de autoridades de Amambai com relação à comunidade tradicional. Muitos índios são presos na região.
“Autoridades também perseguem muito os guarani kaiowá. Polícia Civil e Militar sempre entram [na aldeia] atrás dos patrícios. Por causa até de briga de casal pega aqui e leva algemado, porque tem pressão dos fazendeiros. Muitos homens brancos não gostam da gente. Nos levam presos por pouca coisa”, contou Italiano.
Outra preocupação das famílias indígenas é o crescente número de suicídios, principalmente entre os jovens. Estudiosos apontam razões espirituais, somadas a divergências familiares e à falta de perspectiva como fatores que levam ao aumento de casos. A escassez de terra também é uma das causas do problema, segundo os índios.
“Todo mundo fica muito perto um do outro. A família vem crescendo e não tem terra suficiente, não tem condição de achar trabalho e aí alguns pensam que se suicidar vai melhorar. Não é por causa de embriaguez”, analisou Italiano.
“Pensamos em trabalhar, daqui uns dias ganhar de volta a nossa terra e em melhorias que virão para superar o problema do suicídio”, completou.
* Produtores recorrem à segurança privada para evitar invasões de índios
Acusados por várias comunidades indígenas de fazerem uso de pistoleiros como estratégia de intimidação na luta pela terra, os produtores rurais do sudoeste de Mato Grosso do Sul negam a prática, mas reconhecem a contratação de empresas legais de segurança privada para proteger as fazendas de eventuais invasões.
O presidente do Sindicato Rural de Dourados, Marisvaldo Zeuli, confirmou que o gasto com esse tipo de serviço é recorrente entre os filiados, já que a lei permite a adoção de medidas pelo proprietário em até 48 horas após a invasão.
“Na verdade nós não temos pistolagem. Estamos apenas mantendo a ordem. A Constituição garante que não se pode entrar em propriedade particular a não ser com autorização da Justiça. Invasão não vamos permitir em hipótese alguma”, ressaltou Zeuli.
Segundo o pecuarista e vereador em Dourados, Gino José Ferreira, “se existe pistoleiro, tem que mandar prender”. Ele alegou que a segurança privada contratada pelos produtores quando há necessidade é semelhante à que presta serviço para bancos e mercados.
“Já vimos propriedade com casais de velhos sendo expulsos por 50, 60 índios vindos até do Paraguai. Isso não vamos aceitar mais, e vamos fazer cumprir a lei, que garante o nosso direito de propriedade”, reiterou.
* À espera de mais terras, famílias da reserva de Dourados enfrentam dificuldades
A falta de espaço para os índios plantarem na reserva de Dourados – são mais de 13 mil índios em 3,5 mil hectares – ganha contornos dramáticos para algumas famílias. Celina Oliveira, 29 anos, mora com três filhos pequenos e o marido em um barraco precário de tijolo e madeirite, de um cômodo. Em um pequeno quintal conseguem plantar apenas banana.
O marido sofreu um acidente de trabalho em uma usina de cana-de-açúcar da região e não tem condições de ajudar no sustento da casa. A família se mantém com os R$ 102 recebidos do programa Bolsa Família e cestas básicas doadas esporadicamente. Enquanto Celina conversava com a equipe da Agência Brasil, um de seus filhos descascava e comia uma banana nitidamente verde.
“Com mais terra eu poderia plantar batata e mandioca para alimentar as crianças. Aqui só tem banana, que nem sempre dá. Quando chove pinga tudo na minha casa, fica ruim. A gente dorme tudo amontoado”, lamentou Celina.
Quem não recebe o Bolsa Família ou cestas básicas enfrenta mais dificuldades. Há famílias da aldeia que sobrevivem das aposentadorias recebidas pelos mais idosos ou da renda dos jovens que conseguem emprego, sobretudo, em usinas da região, no corte de cana-de-açúcar. Na cidade, o preconceito ainda é uma barreira para muitos que buscam uma ocupação.
“Na cidade é difícil ver um índio trabalhando. Tem muito índio capaz de trabalhar em posto de gasolina, farmácia, mercado, uns até formados, mas não conseguem uma oportunidade. Os [indígenas] de 35 a 60 anos não conseguem emprego nem nas usinas e não têm como se aposentar”, relatou o líder Getúlio Juca de Oliveira, que organiza as assembleias indígenas do local.
Para minimizar a situação de confinamento, os guarani kaiowá da reserva de Dourados reivindicam o reconhecimento da posse de uma extensa faixa de terra entre os municípios de Dourados e Itaporã, onde seria o tekoha [lugar onde os índios realizam o seu modo de ser, na língua guarani], no qual viviam seus antepassados. Os líderes estimam que a comunidade poderia ganhar até 200 mil hectares, mas reconhecem que os fazendeiros precisam ser indenizados para deixar as áreas ocupadas.
“Queremos plantar, mas não tem espaço. Se o governo não tem como devolver nossa terra pelo direito, precisa indenizar aqueles que têm propriedade e já gastaram lá. Tem que ter indenização para o fazendeiro, porque ele não é culpado. Comprou ou ganhou um pedaço de terra que não era dele. Mas não podemos trocar o nosso tekoha por outro lugar”, ressaltou Getúlio. “Violência nós não vamos fazer. Não vamos invadir. Queremos respeito e vamos respeitar os outros também”, acrescentou.
Ele adiantou que nas próximas assembleias a comunidade da reserva pretende cobrar da Fundação Nacional do Índio (Funai) mais agilidade na distribuição de sementes e implementação de projetos de agricultura, e da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) remédios e médicos para atender à demanda das famílias.
* Funai reconhece falhas na prestação de assistência aos guarani kaiowá
A administradora regional da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Dourados, Margarida Nicolleti, admite a ocorrência de atrasos na entrega de cestas básicas e de sementes para projetos agrícolas nas aldeias e acampamentos indígenas no sudoeste de Mato Grosso do Sul. Durante visita de quatro dias à região, a equipe da Agência Brasil ouviu reclamações de diversos líderes sobre a assistência prestada pela fundação às comunidades. Os índios da etnia Guarani Kaiowá sonham em recuperar áreas onde viveram seus antepassados e que hoje são ocupadas por fazendas.
Segundo Margarida, a implementação de projetos agrícolas nas reservas depende do repasse de recursos pela Funai às administrações regionais. A Funai nacional, por sua vez, também precisa aguardar a liberação de verba pelo governo federal. Os atrasos na distribuição de cestas se limitam, de acordo com a Funai, a 22 comunidades que recebem o auxílio duas vezes por mês.
“É um trabalho operacional difícil. Às vezes chove demais e as estradas ficam muito ruins”, alegou Margarida, em entrevista por telefone.
A administradora considera, assim como o Ministério Público Federal (MPF), a estrutura funcional da Funai na região insuficiente diante do desafio de atender 40 mil índios, muitos vivendo em condição degradante.
“A gente também tem feito essa solicitação à presidência da Funai. É preciso melhorar o quadro, com profissionais qualificados de áreas afins como serviço social e agricultura de subsistência, para podermos prestar um bom serviço à comunidade, da forma que os índios merecem”, disse.
Para a Funai, o preconceito agrava a situação dos índios confinados em pequenos espaços na região. “Infelizmente existe muito preconceito e desconhecimento da cultura [indígena] por parte da sociedade. Isso faz com que as pessoas tenham um entendimento diferente do que é o índio e da forma como ele vive”, destacou a administradora.
Margarida criticou a postura de fazendeiros que responsabilizam a Funai pela precariedade das aldeias.
“No meu ponto de vista, a responsabilidade é de toda sociedade brasileira. Os governos do passado causaram esse problema, tirando índios de suas terras tradicionais e colocando em pequenas áreas. A Funai não tem como melhorar atendimento sem espaço. Há áreas que não tem onde plantar. Temos 23 acampamentos à beira de estrada onde não se tem o que fazer a não ser a ação emergencial de entrega de mantimentos.”
Segundo a administradora, a Funai não pode remover os índios que vivem em acampamentos improvisados às margens de rodovias. Para minimizar o problema, a fundação distribui cestas básicas e doa lonas, casacos e cobertores para as famílias que esperam pelo reconhecimento de áreas tradicionais.
“A Funai não trabalha com a prerrogativa de tirar [índio] aqui e colocar lá. Os próprios grupos que foram para beira de estrada não querem retornar para aldeias velhas, porque saíram de lá para não brigarem entre si pelo espaço reduzido, com famílias muito próximas umas das outras. Não aceitam retornar por falta de condições de vida digna”, explicou.
* Área homologada mostra diferença entre modo de vida indígena e de colonos
Homologada em 2004, a aldeia de Panambizinho, é citada como exemplo pelos grupos favoráveis e contrários ao reconhecimento de áreas indígenas na região.
Os índios e antropólogos dizem que a vida das comunidades melhorou. Os colonos que deixaram a área, entretanto, acusam os índios de preguiça e de desperdiçarem terras que eram produtivas. A aldeia de Panambizinho abriga 400 índios em 1,2 mil hectares a 25 quilômetros de Dourados.
A estrada que hoje separa a área particular da terra indígena já evidencia diferenças. Do lado privado, há plantações extensas. Do lado demarcado, um pasto não trabalhado bastante alto, onde se destaca o colonião, uma espécie de capim.
As moradias indígenas, por sua vez, são melhores do que as de outras reservas da região onde há grande concentração populacional. As famílias continuam recebendo duas cestas básicas por mês – uma do governo federal e outra do governo estadual.
Dentro da aldeia, num caminho por estradas de terra que parecem labirintos em meio à vegetação alta, chega-se à casa de madeira do capitão Valdomiro Aquino, herdada de colonos. No local moram sete pessoas, entre adultos e crianças sorridentes, que se espalham em colchões por três cômodos. A casa tem televisão, geladeira, DVD e som.
Ao lado, ele cria 12 vacas, 15 porcos e 42 galinhas. Planta mandioca que “dá para passar o resto da vida”, um pouco de milho, batata, tomate e melancia. Mas admite que a vida “seria muito apertada” se não tivesse cesta básica, mesmo considerando o direito à terra mais importante.
O capitão explicou o ideal de vida indígena. “Nossa vida não é para ficar rico. Queremos ficar é com um espaço bem adequado para as crianças, filhos e netos. Cesta básica não é tão importante para nós. O mais importante é terra e água. Nossa vida é a cultura da gente, com reza [atualmente contra o suicídio e a influenza A (H1N1) – gripe suína] e tradição.”
Esse modo de vida não é compreendido pelas 38 famílias de colonos que foram indenizados pelas benfeitorias e reassentados para deixar a área aos índios. Eles se sentem injustiçados.
“A gente fica aborrecido porque era gente que trabalhava, de idade, que tinha tudo para ficar tranquilo. Agora os índios deixam mato e abandono. Tudo que se planta naquela terra dá”, criticou Maria Rosa Cardoso, 50 anos, cuja família ocupava 10 hectares na área desapropriada.
Ela também afirmou que a Terra do Boi, área a 110 quilômetros de Panambizinho onde os colonos foram reassentados em pedaços um pouco maiores, é imprópria para o cultivo, diagnóstico confirmado pelo Sindicato Rural de Dourados.
“A soja produziu pouco, o milho não produziu nada, a terra é areia pura. Ninguém teve boa colheita lá até hoje”, lamentou Rosa, que mantém um comércio no distrito de Panambi.
Produtor rural vizinho à aldeia, João Batista se solidariza aos colonos que tiveram de deixar a região. Segundo ele, na área se produzia soja no verão e milho safrinha no inverno e hoje “não se colhe uma carroça”. “[O índio] vive ali igual a um animal”, disse.
Para Batista e Rosa, o governo federal deveria descartar novas desapropriações de terras para beneficiar índios na região.
“Não adianta dar terra e não ter uma infraestrutura. O índio vai comer terra?”, questionou Batista. “Não podem cometer outro erro na região e tirar os produtores de lugar. É triste e dará prejuízo ao governo, que vai perder impostos”, argumentou Rosa.
Segundo o capitão Valdomiro Aquino, os índios passaram por muitas dificuldades depois de 1940, quando houve a colonização da região. A comunidade vivia em apenas 60 hectares, faltava espaço para construir moradias à medida que as famílias cresciam. Segundo ele, o não aproveitamento de toda a terra homologada é, em parte, proposital e justificado por questões de tradição, técnicas e ambientais.
“Alguém vai morar ali. Quando casar as filhas, já tem espaço para morar e criar coisas. E a gente não planta tanto assim porque colocaram muito veneno nessa terra. A gente não quer isso porque amanhã crianças podem nascer deficientes”, disse Aquino.
“Tem gente que fala que não trabalhamos. A gente trabalha, mas não temos trator suficiente. A Funai [Fundação Nacional do Índio] manda um trator para atender várias aldeias e diz que não tem verba agora [para ajudar nas plantações], aí a gente tem que esperar.”
* Antropólogo diz que estudos não são jogo de cartas marcadas a favor de índios
A identificação de áreas indígenas desperta reações contrárias da classe produtiva. Em Mato Grosso do Sul, onde 45 mil índios reivindicam mais espaço, os fazendeiros taxam como “viciado” o trabalhos dos especialistas responsáveis pelos estudos.
O antropólogo Rubem Thomaz de Almeida, que há 30 anos estuda a região, garante que os levantamentos feitos para embasar as demarcações pelo governo federal não são um jogo de cartas marcadas a favor dos indígenas. Ele atribui a “desconhecimento de causa” as críticas dos ruralistas.
“É necessário que eles [fazendeiros] entendam que o estudo não vem definido. Em estudos passados, inclusive, deixamos de incluir área porque não tínhamos argumentos nem dados suficientes para colocar espaços como terra indígena. É fundamental realizar os estudos para que o governo possa atuar e decidir um problema social gigantesco, que são 45 mil índios que estão ali sem terra, sem ter onde plantar”, afirmou Almeida.
“Temos atrás da gente a academia. Somos vinculados à Associação Brasileira de Antropologia e, se a gente incorrer em desvios na nossa produção científica, haverá facilidade em derrubar [os laudos]”, acrescentou.
Almeida diz ser contrário à “criminalização” dos fazendeiros e reconhece que eles deveriam ser recompensados pelo governo para deixar a terra, em valor além das benfeitorias.
“Dificilmente essa coisa vai resolver sem negociação com os produtores rurais. Não podemos criminalizar os fazendeiros, dizer que são todos bandidos. Ficará muito difícil dar conta do problema se não houver mecanismo para se pagar a terra aos fazendeiros”, ressaltou.
Entretanto, o antropólogo classifica de “absurdos” os argumentos que tentam vincular a luta dos índios pela terra a interesses estrangeiros.
“São 45 mil pessoas que têm uma história, tradição, e sabem exatamente onde vivem e o que querem. Não tem Cimi [Conselho Indigenista Missionário], antropólogo nem estrangeiro, absolutamente ninguém. Eles não vão deixar de reivindicar a terra. O fazem por sua conta. Quem fala o contrário é para jogar fumaça e não enfrentar o problema”, criticou.
Pesquisa da década de 80 já alertava o governo para a necessidade de reconhecer mais áreas indígenas em Mato Grosso do Sul, após o processo de colonização que resultou no confinamento de índios em aldeias delimitadas pelo próprio governo. Hoje o sudoeste do estado é apontado por estudiosos e pela própria Fundação Nacional do Índio (Funai) como o espaço mais problemático da questão indígena no Brasil. Para Almeida, o país já poderia ter superado o quadro.
“Faltou um pouco de decisão política e de ânimo do governo para dar conta antes do problema. É necessário que o governo pegue esse touro a unha e decida levar adiante primeiro os estudos e depois as decisões [de demarcação e homologação de áreas]” , defendeu o antropólogo.
A expectativa dos profissionais envolvidos no trabalho de identificação em Mato Grosso do Sul é concluir a fase dos estudos em abril de 2010.
O antropólogo entende que as críticas de parte da população de Mato Grosso do Sul à vida dos índios em áreas homologadas, como a aldeia de Panambizinho, a 25 quilômetros de Dourados, deve-se a uma percepção equivocada da cultura tradicional. Na região, áreas antes produtivas viraram mato e os índios trabalham apenas com agricultura de subsistência.
“Não podemos esperar que os guarani vão produzir como nós produzimos. Eles têm um viés cultural e se mostram abertamente contra a produção em larga escala. Eles têm uma relação cosmológica importante com o mato. Buscam o mato, porque lá tem que ter bicho e tem que proteger a água. Mas eles também têm plena consciência de que quem não trabalha não come.”
Se os estudos na região confirmarem as reivindicações indígenas, os antropólogos calculam que o problema fundiário das comunidades tradicionais estará resolvido para pelo menos três gerações, cabendo aos indígenas se organizarem futuramente para viver ali.
Durante os estudos antropológicos, as equipes deverão ser acompanhadas por representantes do governo estadual e de proprietários rurais na vistoria em fazendas, além de receberem escolta policial. No ano passado, quando os estudos começaram, especialistas foram seguidos e fotografados por desconhecidos.
“A presença da polícia é um modo de a gente entrar nas áreas que precisam ser verificadas”, disse Almeida ao destacar a importância do estudo para o processo de demarcação.
Reportagem especial de Marco Antonio Soalheiro, da Agência Brasil, publicada pelo EcoDebate, 08/09/2009
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