Abandono e incompreensão ameaçam legado de Burle Marx
No centenário de nascimento do célebre paisagista, especialistas cobram atenção a sua obra
Burle Marx: “É preciso proteger a natureza como repositório da beleza”. Arquivo/AE
Haruyoshi Ono não pode acreditar. Um dia depois de contar ao estadao.com.br que o Parque do Flamengo, no Rio, era a “menina dos olhos” do paisagista Roberto Burle Marx, o prefeito da cidade, Eduardo Paes, postou no Twitter a intenção de promover justamente por lá a etapa inaugural da temporada 2010 de Fórmula Indy. “Só posso achar que é brincadeira. Somos totalmente contra”, reage o ex-assistente e depois sócio do mais célebre paisagista brasileiro, cujo centenário de nascimento é lembrado nesta terça-feira (4). Reportagem de Daniel Jelin, do estadao.com.br
O episódio ilustra bem a constante ameaça que ronda o legado de Burle Marx, inventor do jardim moderno brasileiro. O parque é, entre mais de 2 mil projetos, um dos mais bem sucedidos de Burle Marx. É exemplo único de projeto tombado mesmo antes de ser concluído, nos anos 60, tamanho o impacto da obra. Mas isso nem o livrou de intervenções imprevistas – como a Marina da Glória, que se fez por uma canetada durante regime militar – nem garante sua devida manutenção. Há uma década, o parque passou por obras de recuperação, mas hoje seu estado, na descrição do arquiteto Eduardo Barra, é “lastimável”. “Se isso ocorre num parque daquelas proporções, imagine nos espaços menores, mais escondidos”, diz.
Esta inquietação levou a Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas en 2007, então presidida por Barra, a solicitar o tombamento de toda a obra de Burle Marx no Rio, cidade em que o paisagista imprimiu uma série de marcas: o calçadão da Avenida Atlântica, os jardins do MAM, do Largo da Carioca e outras dezenas de obras. “É uma forma de frear esse arroubo de criatividade de nossos governantes e mesmo de alguns profissionais que ainda não compreenderam a importância do legado do mestre”, diz Barra, dando por exemplo a intenção de um colega de interferir em uma obra de Burle Marx “transformando-a de contemplativa em interativa, seja lá o que isso venha a significar”.
O pedido de tombamento foi encampado pela prefeitura e – surpresa – resistiu à troca de administração, em 2008. Mas ainda está no papel: estuda-se agora uma relação de 80 a 100 obras para o tombamento, mas não há previsão para que seja concluído.
Recife, em que Burle Marx também imprimiu uma forte identidade paisagística, está na frente. O inventário de obras está pronto e aguarda-se para este ano o tombamento de seis praças públicas, tanto no âmbito estadual (Fundarpe) como federal (Iphan). E o mais importante: três praças já foram reformadas, uma já tem o plano de restauro pronto e em outras duas nem precisa mexer porque estão razoavelmente bem conservadas, informa a arquiteta Ana Rita Sá Carneiro, especialista em Burle Marx e coordenadora do Laboratório da Paisagem, da Universidade Federal de Pernambuco.
Outros jardins de Burle Marx não tiveram a mesma sorte e sumiram completamente da paisagem: desde jóias privadas, como os da residência de Carlos Somlo, em Teresópolis, até os pátios da Unesco, em Paris, que foram destruídos em uma criticada reforma nos anos 90. Outros se desfiguram e somem aos poucos, como o Jardim das Nações, em Viena, cuja ruína é testemunhada pelo arquiteto paisagista Erich Proglhof, brasileiro de São José dos Campos que mora há 22 anos na capital austríaca. Seu estado atual é “deplorável”, conta.
EFÊMERO
“Paisagismo é arte efêmera”, diz o arquiteto Guilherme Mazza Dourado. “Se você não tiver um cuidado sistemático, desaparece”, ensina. Dourado está lançando o livro ‘Modernidade Verde’. A obra é resultado de uma longa pesquisa que teve por ponto de partida uma entrevista concedida por Burle Marx em 1991, três anos antes de sua morte, e cujo registro em áudio o estadao.com.br publica agora pela primeira vez.
O arquiteto tem boas memórias do encontro. “Cheguei temeroso”, escreve, na apresentação do livro, “sem saber como proceder diante de uma figura mítica do paisagismo moderno”. Acabou por descobrir “um senhor muito afável, espontâneo, comunicativo e que não fazia a menor questão de manter uma cerimoniosa distância de mortais como eu”.
O trabalho de Dourado tem o mérito de manter distância do folclore que envolveu o trabalho e a vida do paisagista e se apoiar numa pesquisa cuidadosa e documentada, que, antes do livro, lhe rendeu em 2000 o título de mestre pela Escola de Engenharia de São Carlos, da Universidade de São Paulo. Centrou foco no que chama a maturidade profissional de Burle Marx, cobrindo dos jardins públicos do Recife, nos anos 30, à implantação do Parque do Flamengo.
VIVER A ARTE
Roberto Burle Marx nasceu na Vila Fortunata, na Avenida Paulista, de mãe pernambucana (Cecilia Burle) e pai judeu alemão (Wilhelm Marx, de longínquo parentesco com o famigerado Karl, segundo o foclore familiar). Em 1914, a família mudou-se para o Leme, no Rio, e dessa mudança o pequeno Burle Marx guardou a imagem da mãe transplantando roseiras de uma cidade a outra. Tal cultivo Burle Marx mais tarde iria combater, em favor de espécies da flora brasileira. Dizia que não se pode esperar que uma rosa repita nos trópicos o desempenho que lhe é natural em clima temperado. De qualquer forma, o paisagista creditava à sua mãe o amor às plantas e a lição de que “a arte deve ser vivida”.
Foi bem o que ele fez. Antes de se tornar o notório paisagista, já era um premiado pintor, depois escultor, gravurista, figurinista, tapeceiro, ceramista, designer de jóias. Criança, foi vizinho de frente de Manuel Bandeira, a quem divertia com seus desenhos. Foi amigo de infância – e por toda a vida – de Lúcio Costa. Estudou com Oscar Niemeyer e Hélio Uchoa. Foi aluno de Leo Putz e Portinari. Deu aula para Ligia Clark.
Quer dizer, Burle Marx exerceu diversas formas de expressão e dialogou com alguns de seus mestres, e a pesquisa de Dourado é bem sucedida ao apontar conexões entre seu paisagismo e o meio cultural da primeira metade do século 20. Como outros modernos, ele também descobriu o Brasil no exterior, ao encantar-se com espécies da flora nacional em uma estufa na Alemanha. Como outros modernos, também alimentou-se das vanguardas européias, em particular do repertório de curvas de pintores abstratos, marca de seus trabalhos mais conhecidos. Finalmente, também procurou imprimir em seus jardins certo caráter brasileiro, “como Tarsila do Amaral na pitura e Villa-Lobos na música”, explica Dourado.
O pesquisador anota que, à época em que Burle Marx se decidia pelo paisagismo, “os poetas, os pintores, o movimento moderno em geral também estava olhando para a paisagem, e alguns elementos vegetais se tornaram muito emblemáticos.”
CACTOS
Um destes elementos emblemáticos é o cacto, presente em Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Manuel Bandeira, entre outros. Pois Burle Marx, convidado a assumir a direção de Parques e Jardins de Recife em 1935, foi justamente propor o Cactário da Madalena, que espantou Recife ainda mais que seus lenços e paletós coloridos. Depois rebatizada Euclides da Cunha, a praça resume bem uma questão cara ao movimento moderno, a expressão da identidade brasileira, e outra especificamente importante para o paisagista: o sucesso ecológico de um jardim.
Era a ruptura. Era o fim do paisagismo de importação. Daí em diante Burle Marx passaria a explorar sistematicamente espécies das matas tropicais, de restinga, do cerrado. Passou a viajar o País a fim de alargar seu vocabulário botânico e acabou alargando a própria botânica: descobriu diversas espécies e batizou pelo menos 14 e ainda todo um gênero novo, o Burlemarxia spiralis. Adquiriu em sociedade com o irmão Guilherme o Sítio Santo Antônio da Bica, em Barra de Guaratiba, que se tornaria um fabuloso laboratório paisagístico e, por fim, sua residência, onde chegou a colecionar 3,5 mil espécies de plantas.
O livro de Dourado é repleto de projetos originais que permitem conhecer este rico repertório (incluindo um índice botânico), mesmo no caso de obras que nunca saíram do papel, como a Praça Santa Rosa, em Belo Horizonte. É um caso exemplar. A área destinada ao projeto, nos anos 40, não parecia prestar: seca e pedregosa. Mas para Burle Marx isso foi antes um estímulo, a que respondeu empregando seu mais extenso programa vegetal, com 191 espécies diferentes, incluindo uma vasta série de plantas adaptadas aos rigores da região. “Era a vegetação das Minas, de cerrado”, diz Dourado. “E não havia viveirista que oferecesse. Acho que isso foi um dos motivos que inviabilizaram o projeto.”
A ESCOLA
Das viagens pelo Brasil e do interesse botânico, nasceu sua militância pela preservação ambiental. Desde os anos 40, Burle Marx aproveitou toda oportunidade para alertar contra o desmatamento. “É preciso proteger a natureza como repositório da beleza”, pregava. “Ninguém quer confinar as pessoas em suas áreas de origem ou impedir a instalação de fábricas, mas é preciso mais talento para que essa ocupação ocorra sem prejuízo generalizado” Às vezes, parecia se render: “O brasileiro não gosta de planta. É um grande depredador.” Mas a cada nova entrevista, cada nova premiação, voltava à carga, cobrando ora o combate ao desmatamento, ora a criação de mais áreas verdes nas cidades, ora a conservação de sua própria obra.
Embora preferisse os parques públicos, de um modo geral foram os jardins privados que tiveram melhor sorte, como o da residência Odete Monteiro, atual Fazenda Marambaia, no Rio de Janeiro. Em impecável estado de preservação, este jardim era um dos mais queridos do paisagista, na lembrança de Haruyoshi. É também um dos mais premiados, desde a Bienal de São Paulo. “Burle Marx traz o cenário das Serra dos Órgãos para dentro do jardim”, descreve Dourado. “É assombroso.”
Por lá Burle Marx experimentou uma de suas últimas paixões, as veloziáceas – como a canela-de-ema. “Ele gostava de todas as plantas, mas tinha suas preferências”, conta Haruyoshi. “Uma época ele gostava muito das aráceas (dos filodendros e antúrios). Depois passou para marantáceas, bromeliáceas, palmáceas e, principalmente no final da vida, as veloziáceas.” Ao morrer, em 1994, Burle Marx já havia deixado sua marca por diversas cidades, um sítio tombado como patrimônio histórico e uma escola: “Ele inovou o aspecto da composição de um jardim, utilizando a flora brasileira, a exuberância das folhagens”, diz Haruyoshi.
RETROCESSO
Mas tanto Dourado, em São Paulo, como Proglhof, em Viena, enxergam certo retrocesso na influência exercida por Burle Marx. “Vou ao Brasil pelo menos duas vezes ao ano e percebo que muita gente o venera sem realmente entender seu trabalho”, diz Proglhof. “Basta observar como o gosto geral vem regredindo para a estética medíocre americanizada de jardim ‘limpo’ de condomínio”, completa – ressalvando, claro, que muitos profissionais nem vivem à sombra de Burle Marx, nem se rendem ao que chama de “disneyficação” da paisagem.
“Estamos vivendo um momento retrógrado”, confirma Dourado. “Hoje, novamente, se voltou a valorizar muito mais o que vem de fora.” E não se trata dos jardins temáticos saídos das revistas especializadas. “É pior. É uma imitação do jardim clássico francês, que chega até nós via Miami, com plantas podadas, para adquirir volumes, elementos geométricas, imitando pequenas paredes”, descreve. “Estamos reproduzindo o pior que tem nos Estados Unidos e filtrando uma tradição francesa que nem tem a ver com o que era a tradição francesa.”
“O QUE O PODER PÚBLICO COSTUMA FAZER”
Haruyoshi teme pela obra do mestre. Receia que um dia ela só seja conhecida em livros como o de Dourado. Ou em mostras, como ‘A Permanência do Instável’, que está em cartaz em São Paulo, no Museu de Arte Moderna, e ‘Burle Marx por Gautherot’, que será aberta dia 8 no Rio, no Institudo Moreira Salles (que, diga-se, exibe um de seus mais belos e bem conservados jardins). Não seria surpresa nenhuma para Burle Marx. Dizia que no Brasil jardim é feito para a festa de inauguração, a que se segue “o que o poder público costuma fazer com suas obras: abandoná-las”.
“Modernidade Verde – Jardins de Burle Marx”, de Guilherme Mazza Dourado (Senac São Paulo, Edusp; 320 páginas; R$ 90). Lançamento: 18 de agosto, 19h, Livraria Martins Fontes.
“Roberto Burle Marx 100 Anos: A Permanência do Instável”, Museu de Arte Moderna, Pq. do Ibirapuera, portão 3, tel. 11 5085-1300. Das 10h às 17h30 (fecha 2ª). Até 13/9. Ingresso: R$ 5,50 (dom. grátis).
“Burle Marx por Gautherot”, IMS-RJ, Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea, tel.: 21 3284-7400. De 8 de agosto a 27 de setembro de 2009.
EcoDebate, 04/08/2009
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