Do ventre da terra, o grito que vem da Amazônia, artigo de Antônio Cechin e Jacques Távora Alfonsin
“Na contramão da história, o Brasil está devastando sua Amazônia, com uma agressividade inaudita, utilizando uma tecnologia infernal. O último pulmão da terra que causa inveja a todos os povos do mundo, está nas vascas da agonia, agravando a doença do planeta“, escrevem Antônio Cechin e Jacques Távora Alfonsin, em artigo que publicamos na íntegra.
Antônio Cechin, participou do 12o. Encontro Intereclesial de Comunidades Eclesiais de Base, realizado, recentemente, em Porto Velho, RO.
Antonio Cechin é irmão marista, miltante dos movimentos sociais. Jacques Távora Alfonsin é advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado.
Eis o artigo.
José Lutzemberger, nosso ecologista maior, através de sua fundação Gaya, localizada no município de Pantano Grande, divulgou entre nós o dado científico levantado por Lovelock, de que o planeta Terra é um ser vivo. O cientista europeu passou a se referir ao planeta, desde então, com o carinhoso nome mitológico de Gaya.
Ninguém mais ignora, hoje, que Gaya está doente, ferida de morte. Lutz, como era também designado pelos íntimos nosso ecologista conterrâneo, certamente foi levado a também “batizar”de Gaya, em Pantano Grande, a cratera a que estava reduzida uma imensa pedreira abandonada. Chamando de Gaya a cicatriz rochosa, Lutz demonstrou que escutara o grito lancinante lançado aos céus pela natureza em revolta. Mais que um grito, esse animal Terra ferido, a partir da Amazônia, último rincão de natureza ainda virgem, repleto de biodiversidade, solta hoje um grito terrificante face ás terríveis agressões que recebe do bípede predador por excelência, em que se transformou o homem. É verdade que esse grande defensor da natureza fez restrições equivocadas, segundo nosso ver, aos objetivos e à ação dos agricultores sem terra, mas isso não pode lhe tirar o mérito do pioneirismo com que desbravou, no nosso país, a defesa do meio-ambiente.
O 12º Encontro Intereclesial de Comunidades Eclesiais de Base que acaba de se realizar na Amazônia, foi convocado pela Igreja que está em Porto Velho, capital do Estado de Rondônia, através de seu Pastor, Dom Moacir Grechi. De todos os recantos do país acorreram 3.010 lideranças de Comunidades, mais 2000 pessoas envolvidas nas equipes de serviço, perfazendo um total de mais de 5 mil pessoas. De 1975, ano do primeiro Encontro Nacional, este 12º de 2009 é o que conseguiu reunir maior quantidade de participantes populares das CEBs, mau grado as quase infinitas distâncias desse país continente.
O lema do Encontro foi: “Do ventre da Terra, o grito que vem da Amazônia!” “Põe GRITO nisso aí” exclamam em coro hoje, os ecologistas do mundo. Esse lema que deu o mote para a grande convocação do POVO DE DEUS das eclesíolas de base, foi secundado à perfeição pelo tema: Ecologia e Missão.
O objetivo do Encontro era trazer para a Amazônia a representatividade de toda a Igreja da Libertação do Brasil. Sabemos que somente duas instituições nacionais cobrem absolutamente todo o território brasileiro, não sobrando sequer um metro quadrado sob o qual não tenham jurisdição: a Igreja Católica e o exército brasileiro. Estiveram presentes quase todas as 272 dioceses do Brasil. As 3010 lideranças que estiveram em Porto Velho eram leigos (povão), sendo 1.234 mulheres e 940 homens. Pela primeira vez, uma maioria constituída de mulheres. Já aqui enxergamos o avanço acontecido. No início da Caminhada das CEBs, ainda imperava muito machismo, fazendo com que dificilmente o homem deixasse a mulher sair sozinha para longas distâncias. Através do método educativo das CEBs avançou a mulher em seu esforço de emancipação feminina.
Além dos leigos, 197 religiosas, 41 religiosos irmãos, 331 sacerdotes, 56 bispos dos quais um da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, além de pastores, pastoras e fiéis dessa Igreja; da Igreja Metodista, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e da Igreja Unida de Cristo do Japão. Nada menos que 38 nações indígenas representadas, além de irmãos e irmãs de 9 países da América Latina e Caribe, cinco da Europa, um da África, outro da Ásia e da América do Norte. Muitos jovens e de múltiplas organizações. Foi um sucesso em termos de macro-ecumenismo.
Além de trazer toda a Igreja da Libertação do Brasil, também a finalidade era a constatação in loco, do grande grito de infinita dor da Amazônia, devastada a ferro e fogo. Esse objetivo de conscientização totalmente ecológica, também foi plenamente atingido. Por isso o Encontro foi espraiado ao máximo. Visitamos muitos rios, igarapés, muitas matas, comunidades indígenas, de quilombolas, de seringueiros, de ribeirinhos, de posseiros, de migrantes do campo e da cidade. Todos foram imbuídos de sumo cuidado – os que vínham de fora da Amazônia – para abrir bem olhos e ouvidos a fim de poderem voltar para seus pagos como doutores em Amazônia, em condições de converter os sofrimentos dos povos da floresta, em preocupação de todos os brasileiros sem exceção. Fazer eco ao grito imenso que é reprodução do grito do povo escravo do Egito que, como escrito na Bíblia, foi escutado por Deus desde o sétimo céu, e também foi grito final de Cristo na Cruz antes de entregar seu Espírito nos braços de seu Pai.
Entre tantas andanças, com mais de 50 ônibus diariamente à disposição, os participantes foram para uma liturgia penitencial a 18 quilômetros de Porto Velho, onde está sendo construída a famigerada hidroelétrica de Santo Antônio, junto ao rio Madeira. Mais a juzante será também local de mais uma: a do Jirau. Que profanação “batizar” esse aborto da moderna tecnologia, com o nome do Santo mais querido do povo brasileiro. Deve-se esse nome à igreja de Santo Antônio, uma das mais antigas de Porto Velho, construída no contraforte da usina em construção.
Saltando dos ônibus na coxilha em que está a igrejinha, ao deparar com a cratera à frente, deu vontade a todos, de chorar de indignação. Imaginavam estar vendo o que terá sido a bomba atômica sobre Hiroshima ou Nagasaki. Aterros e mais aterros, ao lado de paredões de pedra e concreto. Uma azáfama de tratores e caçambas indo e vindo. As mais de 3000 pessoas recém-chegadas foram descendo até o rio Madeira, imenso caudal de águas, agora bem próximo, já transposto em seu novo leito, para o outro lado da montanha à nossa frente, bem ao fundo, no horizonte.. Mas aqui pertinho, no pedaço de leito em que as águas já não correm mais, imensas pedras cobertas de limo. Havia aqui uma linda cachoeira. Do grande poço que restou, um cheiro fétido da quantidade de animais aquáticos mortos. A mídia nos informara que, quando da transposição, neste pedaço de rio desviado, pela preocupação de ação “ecologicamente” correta, haviam extraído 15 toneladas de peixes. Mera propaganda. O fedor se encarregou de escancarar a verdade sobre a tragédia da morte de peixes que aconteceu.
Estavam todos iniciando a liturgia penitencial quando lá ao longe, em cima do trecho em que a usina geradora de energia vai ser construída, um enorme estrondo fez estremecer a terra. Nada menos que uma linha reta do solo, medindo uns 300 ou 400 metros de comprimento, se ergue lançando material para o ar em meio a uma coluna de poeira. Essa fumaceira demorou mais de hora para se esvair no espaço, levada pela brisa amena que soprava. À direita do estrago “atômico”, a beleza da paisagem aquática e florestal, com navios indo e vindo, de uma margem a outra, carregando materiais de todo tipo.
Na contramão da história, o Brasil está devastando sua Amazônia, com uma agressividade inaudita, utilizando uma tecnologia infernal. O último pulmão da terra que causa inveja a todos os povos do mundo, está nas vascas da agonia, agravando a doença do planeta.
Em outro momento da Missão, um dia inteirinho com mais 50 companheiros, em uma Comunidade Extrativista. As famílias de seringueiros relataram a história da borracha no Brasil. Destacaram o grande surto desenvolvimentista, quando os nordestinos foram premidos pelos exército brasileiro a mando dos Estados Unidos a abandonar seus rincões de origem, para se transformarem em soldados da borracha, particularmente durante as duas últimas grandes guerras mundiais, em condições de total escravidão. Depois quando os próprios americanos do norte levaram as sementes de seringueiras para a Ásia, como naquele continente a borracha ficou muito mais barata, a decadência econômica que sobreveio sobre toda a Amazônia. Nesses tempos que são os últimos, está acontecendo um verdadeiro assalto dos sequiosos de lucro fácil por capitalistas do sul do país: gaúchos, paulistas ou paranaenses, chamados todos pelos povos da floresta pelo genérico de “paulistanos”, que estão invadindo rios, campos, florestas, etc. A exuberante natureza se reduz a desmatamentos, grandes criações de gado, plantações infinitas de soja, garimpo, etc. etc.
Porém o Povo de Deus que está na Base não se entrega. Através das Comunidades Ecológicas de Base, Chico Mendes, o mártir organizador dos povos da floresta, especialmente índios e seringueiros, inventou os Empates que estão na ordem do dia até hoje. A Comunidade da Seringa teatralizou para todos a realização de um EMPATE. Quando gente com motosserra se anuncia ao longe, a quilômetros de distância, o povo de Deus se articula rapidamente, com umas 20 a 30 pessoas no mínimo. Munido de alguma garrucha ou arma de caça, vai em direção ao lugar em que ronca a ferramenta desmatadora. O grosso da caravana segue unida, e um que outro, por duas outras frentes. Chegam até os derrubadores e “mãos ao alto!”gritam em coro. Dependendo da reação, às vezes também é necessário um tiro para o alto. Vão até os 2 ou 3 trabalhadores de motosserra e mandam soltar ao chão a máquina derrubadora.
Se não soltam, começa imediatamente o diálogo: “sabemos que é o ganha-pão de vocês… vocês são tão pobres quanto nós… porém nós, para sobreviver necessitamos da floresta em pé… nós não vamos prejudicar vocês… queremos o bem de vocês tanto quanto o nosso… Prometemos que vamos até o patrão de vocês, todos juntos, para defende-los, dizendo que fomos nós que os impedimos de desmatar…”
Se ainda não largaram ao chão a motosserra, ainda há um recurso quase infalível: um da Comunidade sugere: ”Companheiros, vamos pedir a Deus que ilumine nossos irmãos para que entendam a necessidade de atender nossas colocações”. Juntos rezam um Pai Nosso. Não raro, os das motosserras, para rezar, das cócoras em que estavam para o manuseio da motosserra enfiada na árvore, se levantam para rezar juntos, e instintivamente colocam a ferramenta no chão. Aí, sorrateiramente, um dos seringueiros que veio para o empate, por detrás, sem ser visto, recolhe a ferramenta. Todos juntos então, em cortejo, caminham à procura do patrão ou coronel para a negociação. Na maioria dos empates, do patrão, a negociação acaba no INCRA e aí, geralmente os seringueiros esbarram no fato de que a papelada dos desmatadores está totalmente “em ordem”. Sim, mas que tipo de ordem? Sabemos como impera a corrupção aí onde não funciona o poder judiciário.
Nosso José Lutzemberger, quando soube da invenção do empate por Chico Mendes, foi até Xapuri, cidade do Acre em que o seringueiro morava e convenceu-o a fazer-lhe companhia numa viagem. Lutz, com o herói-mártir a tiracolo, seguiu para Washington. Os dois lograram convencer o Banco Mundial para não emprestar mais dinheiro para empresas desmatadoras.
Concluindo: Assim como aqui no Rio Grande do Sul as Comunidades Eclesiais de Base – Povo de Deus – pariram o Movimento dos Sem Terra, exatamente no dia 7 de setembro de 1979 com a ocupação da Fazenda Macáli em Ronda Alata, Chico Mendes e Marina Silva, à frente das Comunidades Eclesiais de Base da Amazônia, pariram os Movimentos Populares dos Povos da Floresta, particularmente Índios e Seringueiros. Aqui são os assentamentos da Reforma Agrária a caminho, e lá são as Reservas Extrativistas.
Confirmam-se as palavras de Maria, a mãe de Jesus, em seu canto de ação de graças, quando entoa: “Deus depôs os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Saciou de bens os famintos e despediu os ricos de mãos vazias”. Também enche-se de razão Gustavo Gutierrez o criador da Teologia da Libertação quando assim intitula um de seus livros: “A força histórica dos pobres.”
Até parece que o poeta modernista Mário de Andrade, um dos corifeus da ”Semana de arte moderna” em São Paulo, que revolucionou nossa cultura brasileira, descreveu antecipadamente como se deu o processo de conversão realizado pelo o 12º Encontro com a seguinte poesia:
DESCOBRIMENTO
Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De sopetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido.
com o livro palerma olhando para mim.
Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus!
Muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu.
(Ecodebate, 03/08/2009) publicado pelo IHU On-line, 01/08/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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