Revolução verde: uma promessa fracassada. Entrevista especial com Carlos Vicente
“Temos uma história de 10 mil anos de agricultura, e os agrotóxicos foram introduzidos nos últimos 60 anos como parte de um modelo agrícola que busca mercantilizar nossa alimentação para engordar corporações”, diz o ecologista Carlos Vicente, da revista Biodiversidad, uma publicação da Grain. Segundo ele, é possível manter a agricultura sem a utilização de agrotóxicos, e o segredo é simples: “desmantelar o poder que as corporações adquiriram para recuperar o controle dos povos sobre a agricultura e a alimentação”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Vicente apresenta a realidade dos agricultores do Cone Sul e afirma que a revolução verde iniciada nos anos 1960 e acentuada na década de 1990 tem tornado o trabalhador rural “cada vez menos importante”. Com o avanço da transgenia e dos agrotóxicos, “os trabalhadores rurais se veem expulsos de seus territórios para ir engrossar as zonas de pobreza das grandes cidades”, informa. Os que permanecem no campo, acrescenta, “se veem permanentemente agredidos pelos riscos que envolvem ter de lidar com esses tóxicos ou ser literalmente fumigados em suas moradias pelas fumigações aéreas massivas que abrangem milhões de hectares no Cone Sul”.
Grain é uma ONG internacional dedicada à promoção do manejo e do uso sustentáveis da biodiversidade agrícola, baseados no controle dos povos sobre os recursos genéticos e o conhecimento tradicional.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor acompanha os trabalhadores rurais. Em que sentido o avanço dos agrotóxicos tem mudado a vida dessas pessoas?
Carlos Vicente – O uso intensivo de agrotóxicos hoje em dia está inserido em um modelo de agricultura industrializada que inclui, além do uso de maquinaria pesada, a monocultura, a utilização de sementes transgênicas e a produção de commodities, para a qual o trabalhador rural é cada vez menos importante, já que a tendência é a de reduzir de maneira significativa a utilização de mão-de-obra. Por esse motivo, os trabalhadores rurais se veem expulsos de seus territórios para ir engrossar as zonas de pobreza das grandes cidades.
Os que ficam no campo se veem permanentemente agredidos pelos riscos que envolvem ter de lidar com esses tóxicos ou ser literalmente fumigados em suas moradias pelas fumigações aéreas massivas que abrangem milhões de hectares no Cone Sul.
Obviamente, quem está se vendo dramaticamente afetado por essa “chuva de agrotóxicos” são os agricultores rurais que tentam continuar com suas produções e estilo de vida nas proximidades desses “territórios do agronegócio”, já que suas produções agrícolas, seus animais e sua saúde estão profundamente afetados por essa agressão contínua. O mesmo ocorre com famílias que vivem na periferia das cidades, na proximidade com as zonas onde essas monoculturas se impuseram.
IHU On-Line – Quais são as alternativas aos agrotóxicos?
Carlos Vicente – Com certeza existem alternativas. De fato, temos uma história de 10 mil anos de agricultura, e os agrotóxicos foram introduzidos nos últimos 60 anos como parte de um modelo agrícola que busca mercantilizar nossa alimentação para engordar corporações. Hoje em dia, dispomos dos conhecimentos, da tecnologia e das capacidades para produzir alimentos para toda a humanidade sem utilizar agrotóxicos. É preciso não esquecer que a promessa das duas revoluções verdes – a dos anos 1960 com as monoculturas e a dos anos 1990 com os transgênicos – de resolver o problema da fome no mundo foi o que nos levou a um planeta que, neste ano, superou, pela primeira vez, um bilhão de famintos.
IHU On-Line – A utilização das substâncias químicas cresceu em todo o mundo. Essa perspectiva tende a aumentar? Que ações são necessárias para bloquear a utilização dos agrotóxicos?
Carlos Vicente – Enquanto continuar crescendo na agricultura e na produção de alimentos, em nível mundial, o controle corporativo, continuará aumentando a utilização de agrotóxicos. É por meio deles que as grandes corporações obtêm uma parte importante de seus ganhos.
É muito claro que é possível reverter esse processo, e o segredo é um só e é simples: desmantelar o poder que as corporações adquiriram para recuperar o controle dos povos sobre a agricultura e a alimentação. Claro que, enquanto os governos continuarem sendo reféns do poder corporativo, esse desafio se mostra muito difícil de ser obtido.
Nesse sentido, a Soberania Alimentar, exigida e proposta pela Via Campesina, é a resposta a qual centenas de movimentos sociais de todo o continente se somaram. Hoje, o grande desafio é que a Soberania Alimentar mantenha seu poder transformador e não seja esvaziada de conteúdo pelo seu uso em um discurso que não implique em políticas explícitas de instrumentalização.
IHU On-Line – Notícias denunciam mortes, enfermidades e êxodo rural no Paraguai, devido à expansão do plantio de soja e o uso de agrotóxicos. Como o senhor percebe essa situação? O que se pode esperar da América Latina, enquanto maior território produtor de grãos?
Carlos Vicente – Tanto no Paraguai como na Argentina, na Bolívia, no Brasil e no Uruguai, nos territórios dominados pela monocultura da soja, que a Syngenta batizou sem nenhuma ironia de República Unida da Soja, o drama das monoculturas é uma realidade esmagadora que já não pode ser ocultada e que, dia-a-dia, soma mais vozes à sua denúncia e à sua resistência.
IHU On-Line – Que perspectiva o senhor vislumbra para os trabalhadores rurais em longo prazo, no continente, considerando a perspectiva de incentivo às grandes monoculturas e ao uso intenso de venenos?
Carlos Vicente – A única perspectiva possível é a do crescimento do tecido de resistência das organizações campesinas e locais de denúncia para conseguir transformar essa realidade e conquistar as mudanças possíveis para que o tecido do agronegócio seja desmantelado (incluindo o poder dos grandes donos de terra da região), e seja recuperado um tecido social e produtivo centrado no bem comum.
IHU On-Line – Quais são os maiores riscos para as populações expostas aos agrotóxicos?
Carlos Vicente – Os riscos que os agrotóxicos implicam para as famílias rurais pela sua exposição contínua são problemas de saúde agudos (doenças respiratórias, lesões na pele, infecções gastrointestinais etc.) e problemas crônicos que, em muitos casos, são visualizados depois de anos de exposição. Os casos de câncer crescentes em todas as comunidades rurais e nas periferias das cidades, as gravidezes interrompidas e os nascimentos de crianças com má formação são a forma mais brutal em que esse genocídio do agronegócio se expressa.
Há centenas de espaços em que as denúncias das comunidades e as organizações da sociedade civil estão multiplicando as denúncias. Em www.biodiversidadla.org tentamos fazer eco a todas essas lutas.
(Ecodebate, 15/07/2009) publicado pelo IHU On-line, 13/07/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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Vivo na Zona da Mata de Minas gerais, região dominada por pequenas propriedades, típicas da agricultura familiar. Mas o quadro rural é de mera subsitência. Os pequenos proprietários vivem do trabalho, quando encontram, de quem tem um pouco mais de área (a cultura predominante é café). E quando trabalham em suas áreas também usam agrotóxicos. O problema, portanto , é bem mais complexo do que a ação corporativa. A agricultura familiar está, hoje, sufocada pela legislação. Por exemplo, como trabalhar com a família se os menores de 16 anos não podem colaborar no trabalho? Menores, no Brasil, só podem trabalhar em programas de televisão, até com contratos assinados pelos pais. No campo, não. Os fiscais do trabalho, aqui na nossa região, se apanharem um menor buscando um cavalo no pasto para o pai, este será denunciado à promotoria como criminoso. Não sou propagandista do trabalho infantil, nem seu defensor, mas acho que o Estado, que não tem como sequer oferecer escola integral, está exagerando na sua intervenção no seio das famílias. Portanto, a não ser nos assentamentos, mantidos muitas vezes com recursos públicos, a agricultura familiar está em franca decadência. Os pequenos estão deixando de produzir. As propriedades não são mais do que locais de residência.