Cultivo de eucalipto destinado à produção de celulose avança e ameaça São Luiz do Paraitinga
Plantam eucalipto, colhem discórdia – Quem se aventura a estudar os problemas da porção paulista do vale do Paraíba deve inevitavelmente se debruçar sobre a literatura de Monteiro Lobato, um dos mais conhecidos escritores brasileiros. Em livros como Urupês e Cidades Mortas, o autor pintou retratos amargurados dessa região, que conheceu uma grave crise social e econômica com a decadência do ciclo do café, na primeira metade do século passado. De suas andanças por lá, ele também tirou inspiração para conceber a famigerada figura do Jeca Tatu, caricatura que de forma inegável manchou para sempre a imagem do caipira, associando seu modo de vida a estereótipos de atraso e rusticidade.
Há quem diga que Monteiro Lobato até pediu desculpas por ter maculado a reputação da população rural do vale do Paraíba. De qualquer modo, hoje em dia, a cultura genuinamente caipira virou motivo de orgulho e resistência, principalmente no município de São Luiz do Paraitinga, a 185 quilômetros da capital paulista, encravado em uma área apelidada de “mares de morros” devido à topografia bastante acidentada.
Já vai longe, porém, o tempo em que o café respondia pela economia local. Até mesmo a pecuária leiteira, outra atividade tradicional, vem perdendo seu espaço. Atualmente, uma árvore natural da Austrália, e que já domina parte expressiva da paisagem do vale do Paraíba, encontra-se no centro de acalorados debates que mobilizam sociedade civil, poder público e iniciativa privada: o eucalipto.
Famoso pelo potencial ecoturístico e pelas festas populares, que englobam desde procissões religiosas a um animado carnaval, esse charmoso município com pouco mais de 10 mil habitantes curiosamente virou palco de uma disputa judicial entre a Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE/SP) e duas gigantes do setor de reflorestamento comercial de eucalipto. A primeira delas é a Votorantim Celulose e Papel (VCP), que recentemente se transformou na maior empresa do mundo nesse segmento, com a aquisição de outra importante companhia do ramo, a Aracruz, em negócio bilionário. A segunda peso pesado é a Suzano, que cultiva a árvore australiana em São Luiz do Paraitinga desde a década de 1970.
Da belíssima sede da cidade, onde se destaca o casario de arquitetura colonial, é possível mirar o motivo da discórdia. As plantações de eucalipto, que nas últimas duas décadas vêm se expandindo no meio rural a um ritmo bastante acelerado, já estão batendo à porta da zona urbana. No entanto, em março do ano passado, esse avanço foi freado por uma liminar do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP). Desde então, para que sejam feitos novos plantios no município, é necessária a realização prévia de um estudo de impacto ambiental/relatório de impacto ambiental (EIA/Rima). A liminar do TJ/SP atendeu a um dos pedidos de uma ação civil pública (ACP) ajuizada meses antes pelo defensor público Wagner Giron de La Torre, da regional de Taubaté, contra as duas empresas. “Não estamos falando de meia dúzia, mas de milhões de eucaliptos. O impacto ambiental precisa ser medido”, sustenta Giron.
De acordo com a ACP, os eucaliptais já ocupam quase 20% do território de São Luiz do Paraitinga. O texto da ação aponta ainda infrações ambientais que teriam sido cometidas pela VCP e pela Suzano, e também por produtores particulares – os chamados “fomentados” –, que celebram uma espécie de contrato de fidelidade com as empresas, recebendo adiantamento em dinheiro e assistência técnica para cultivar mudas fornecidas pelas próprias companhias. Entre as principais acusações formuladas pelo defensor público aparece o plantio dessas árvores em áreas de preservação permanente, onde só deveria haver mata nativa, segundo a legislação ambiental.
É importante frisar que o julgamento final dos problemas apontados na ACP ainda vai levar alguns anos, e que as empresas não foram condenadas. Porém, se ao término do processo ficarem comprovadas as irregularidades, e se os pedidos contidos na ação forem acolhidos integralmente, elas serão obrigadas a destinar a quantia de 5 mil salários mínimos a um fundo público de proteção e recomposição do meio ambiente. A ACP também determina que os órgãos competentes municipais e estaduais intensifiquem as atividades de fiscalização, sob pena de multa. Como esse imbróglio vai se arrastar por um bom tempo, a liminar concedida pelo TJ/SP foi considerada por ambientalistas uma vitória, ao barrar em caráter emergencial a expansão do eucalipto em São Luiz do Paraitinga. “Ao se impor uma monocultura, queira ou não, ocorre impacto ambiental. Que se faça, então, um EIA/Rima com audiências públicas, para discutir com a população local”, completa o defensor público.
Na avaliação de Carlos Bocuhy, membro do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) e presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), a decisão do TJ/SP representa um “paradigma” positivo ao colocar em debate novos critérios de sustentabilidade para o avanço das monoculturas em São Paulo, como a realização de estudos de impacto ambiental que antecedam o plantio em massa de espécies como o eucalipto ou a cana-de-açúcar, por exemplo. “Precisamos avançar para que isso seja de fato uma obrigatoriedade prévia, e não póstuma, depois que os impactos já ocorreram. Nossa preocupação é que a sociedade tenha mecanismos para visualizar esses processos e que eles sejam licenciados adequadamente, com as medidas compensatórias de proteção aos ecossistemas envolvidos”, afirma.
Reclamações
A ACP foi motivada por uma série de queixas de pequenos agricultores cuja vida foi afetada pela massa de eucaliptos que vêm tomando São Luiz do Paraitinga. Um dos casos que mais renderam polêmica é o de Benedita de Moraes de Oliveira. Desde 1974, ela vive como agregada em uma humilde casa localizada na fazenda Santa Cecília, onde se dedica basicamente à produção de requeijão feito a partir do leite das poucas vacas que cria.
Há cerca de quatro anos, a VCP passou a cultivar eucaliptos na propriedade. Durante o processo de preparação da terra para plantio das mudas, Benedita afirma haver ingerido agrotóxicos, devido à contaminação da fonte de água que ela usava para beber. “Depois que chegou o eucalipto, minha vida piorou, porque perdi a saúde, que é o principal”, diz emocionada. O caso foi parar na Justiça, mas também não teve seu julgamento concluído. O principal argumento utilizado contra a VCP pelo defensor público Giron, que representa Benedita em ação indenizatória movida pela agricultora, é a entrevista de uma funcionária da empresa a uma rede de televisão em que ela própria reconhece a possibilidade de falha operacional na aplicação dos herbicidas, na época em que teria ocorrido o acidente.
Aliás, a utilização desses produtos para fazer a chamada “capina química” – limpeza das áreas para plantio do eucalipto que utiliza pouca mão de obra, mas muito agrotóxico – é outro importante item questionado pela ACP. “Qual é a alteração para o ecossistema com o plantio contínuo de um só tipo de vegetação? Se há um agrotóxico específico utilizado, qual é a sua toxicidade? Como isso repercute no lençol freático? É preciso fazer essa avaliação”, afirma Bocuhy.
Há no entanto preocupações de outra ordem que também têm tirado o sono da população de São Luiz do Paraitinga. No acanhado distrito de Catuçaba, por exemplo, moradores já recolheram centenas de assinaturas em um abaixo-assinado para evitar que, daqui a alguns meses, a VCP transporte pelas vias que cortam o bairro as toras que serão extraídas de uma fazenda vizinha. “O asfalto aqui foi um sonho realizado, e a circulação de carretas pode danificar tudo. Quando passa ônibus, a gente já sente a janela trepidar. Se houver tráfego de caminhões e as paredes das casas trincarem, quem vai arcar com isso?”, questiona José Carlos de Campos, um dos idealizadores da mobilização.
Na realidade, já existe uma lei municipal que restringe a circulação pelo interior de Catuçaba a veículos de no máximo três eixos. Porém, mesmo que esse limite seja respeitado, os moradores temem que o trânsito de caminhões abarrotados de árvores abale a estrutura das moradias simples do local. A prefeita Ana Lúcia Sicherle (PSDB) acredita que a VCP vai abrir um novo caminho para escoar a futura produção, sem gerar transtornos às famílias do pequeno distrito, que torcem para que a promessa seja cumprida de fato. Por sinal, a deterioração das estradas por conta do intenso movimento de carretas carregadas é outro problema provocado pela atividade das companhias de celulose, segundo a própria prefeita. Para compensar essa dor de cabeça, ela gostaria que as empresas contribuíssem de alguma forma com os cofres municipais. Porém, como o processamento industrial do eucalipto não ocorre em São Luiz do Paraitinga, a VCP e a Suzano não recolhem impostos para a cidade.
Impactos socioambientais
Desde que se conhece por gente, Pedro Galvão Moreira, de 69 anos, que nasceu e cresceu no bairro rural Alvarenga, toca uma pequena propriedade onde cria animais e cultiva alimentos que comercializa no mercado municipal. “Aqui era um bairro grande, havia quase 200 famílias. Hoje existem umas 30, no máximo”, conta. As transformações sociais e culturais geradas pelo avanço do eucalipto em São Luiz do Paraitinga, testemunhadas por Moreira, também foram abordadas na ação movida pela DPE.
Para o antropólogo André Luiz da Silva, da Universidade de Taubaté (Unitau), a expansão da monocultura sobre áreas que antes eram ocupadas pela atividade da pecuária leiteira, além de expulsar os trabalhadores do campo, inibe a manutenção dos costumes típicos do vale do Paraíba. “A pecuária é associada a formas tradicionais de relação com a terra que a escala dessas plantações, destinadas à indústria de celulose, aniquila”, afirma. Até mesmo práticas religiosas centenárias da população rural foram comprometidas. O historiador e ex-vereador Marcelo Toledo afirma que capelas de valor imensurável tiveram seu acesso restringido pelos eucaliptais, prejudicando a interação social dos caipiras. “Antes havia muitas festas nos povoados, onde a maioria das pessoas viviam como agregadas das fazendas de pecuária”, afirma.
De acordo com João Dagoberto dos Santos, engenheiro florestal e pesquisador da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), existe outro aspecto social bastante dramático na atividade de reflorestamento comercial. “A taxa de geração de emprego é baixíssima. Geralmente, quem faz o plantio é gente de fora, são funcionários de empresas sublocadas para fazer a implantação. E, para fazer a manutenção dos eucaliptais, não é necessário mão de obra”, explica. Além disso, a chegada desses trabalhadores provoca o inchaço das periferias dos municípios, onde eles acabam se instalando. “Isso altera a dinâmica sociocultural da cidade. Os custos dessas plantações de eucalipto são muito grandes em relação ao retorno econômico que proporcionam. Elas ocupam quase um quinto do território de São Luiz do Paraitinga, mas geram muito pouco emprego e não contribuem em nada com impostos”, acrescenta o antropólogo da Unitau.
No entanto, a maior polêmica decorrente do embate judicial entre a DPE e as duas companhias reflorestadoras diz respeito às violações à legislação ambiental, que teriam sido cometidas pelas empresas e pelos chamados “fomentados”. A ACP denuncia a presença de eucaliptos em áreas de preservação permanente, apresentando inclusive fotografias que mostram essas árvores em beiras de córregos e ribeirões – o que é proibido por lei. Há denúncias de irregularidades em outros locais protegidos, como topos de morro. Nesses casos, porém, é necessário proceder a uma perícia técnica mais complexa, o que pode demandar tempo até que se obtenha um resultado.
Somente com as plantas altimétricas dos imóveis rurais em mãos será possível dizer se há plantio em topos de morro. Segundo Danilo de Miranda, diretor da unidade de Taubaté do Departamento Estadual de Proteção de Recursos Naturais (Deprn), as companhias reflorestadoras já iniciaram um diálogo com o órgão para demarcar as reservas legais em suas próprias fazendas e nas propriedades dos fomentados. Para tanto, deverão apresentar as plantas altimétricas dos imóveis, agilizando assim a fiscalização.
Na opinião do engenheiro florestal da Esalq, tanto a VCP quanto a Suzano figuram entre as melhores empresas do país do ponto de vista técnico, e investem para respeitar as áreas de preservação permanente nos imóveis rurais próprios. Duas ressalvas, porém, precisam ser levadas em conta. Em primeiro lugar, há a questão da monocultura em si, ambientalmente condenável para qualquer espécie. Em uma região de “mares de morros”, como o vale do Paraíba, o eucalipto até pode ser considerado menos degradador que as pastagens, uma vez que as árvores protegem mais o solo da erosão e permitem maior infiltração de água nos lençóis subterrâneos do que o capim. Isso não quer dizer, contudo, que a atividade das indústrias papeleiras não gere impactos ao meio ambiente, ainda mais quando se leva em conta a larga escala das lavouras e as toneladas de agrotóxicos empregados na implantação das mudas. Daí a importância da realização do EIA/Rima antes de novos plantios, a fim de minorar os efeitos da ampliação da monocultura.
O segundo ponto é que, ainda de acordo com o pesquisador da Esalq, nas fazendas dos produtores particulares fomentados pelas empresas reflorestadoras, não se registra o mesmo padrão de controle ambiental verificado nos imóveis rurais pertencentes às companhias. “Elas não têm comando sobre os fomentados, que fazem barbaridades, mesmo porque, quanto mais eucalipto plantam, mais dinheiro ganham. No entanto, se o produtor planta em topos de morro ou beira de córregos, a responsabilidade também é da empresa”, afirma Santos. Além disso, quem destina toda a terra para o cultivo dessa espécie está fadado a lidar com a árvore pelo resto da vida. “A monocultura do eucalipto imobiliza a terra para sempre e deixa o solo morto”, explica.
Se no âmbito judicial a ação civil pública movida pela DPE ainda vai levar certo tempo até ser julgada em definitivo, a restrição a novos plantios vem ocupando há alguns anos a agenda do Poder Legislativo municipal. Em novembro de 2006, o ex-vereador Marcelo Toledo recolheu centenas de assinaturas e apresentou um projeto de lei popular à Câmara dos Vereadores pelo qual se estabelecia uma porcentagem máxima ao plantio de eucalipto, de acordo com o tamanho dos imóveis rurais de São Luiz do Paraitinga. A proposta foi rejeitada em uma votação apertada, decidida pelo então presidente da Câmara, o vereador Antonio Sales (PSDB). “Querendo ou não, as empresas de celulose também geram postos de trabalho. Além disso, o fazendeiro manda no que é dele. E o prefeito disse que vetaria o projeto se fosse aprovado”, argumenta Sales.
No entanto, o tema não se esgotou com a reprovação do projeto de lei popular. Agora, a bola da vez é o plano diretor, em discussão no Poder Legislativo desde 2007. Se a atual versão for aprovada, serão proibidos plantios de eucalipto a menos de 3 quilômetros do perímetro urbano. Além disso, contraditoriamente, o limite às lavouras será mais rígido do que previa a proposta recusada pelos vereadores em 2006, chegando a um máximo de 25% da área de cada imóvel rural. O fato é que essa novela ainda está longe do fim. Mas os caipiras de São Luiz do Paraitinga que ousaram levantar a voz contra a monocultura já conseguiram ao menos sensibilizar a Justiça para uma decisão emblemática, condicionando novos plantios de eucalipto à realização de estudos de impacto ambiental. Monteiro Lobato talvez se orgulhasse do feito.
O que dizem as empresas
A Votorantim Celulose e Papel foi insistentemente procurada pela reportagem de Problemas Brasileiros, mas afirmou oficialmente que não iria comentar o assunto. A Suzano, por sua vez, emitiu o seguinte comunicado:
“Em relação à solicitação feita a respeito da proibição do plantio de novas áreas de eucalipto na zona rural do município de São Luiz do Paraitinga (SP), a Suzano Papel e Celulose informa que:
• Como empresa de base florestal que elegeu a sustentabilidade como fio condutor de todas as práticas, preocupa-se em realizar a produção com apurados critérios de qualidade e respeito aos recursos naturais;
• Utiliza as mais avançadas práticas de manejo florestal, que garantem a renovação do solo, a preservação da biodiversidade, a manutenção de mananciais e matas ciliares, além de estabelecer relações sociais de qualidade com as comunidades em que atua;
• Possui 2,8 mil hectares de área em São Luiz do Paraitinga, com cerca de 40% deles destinados à conservação ambiental (acima dos 20% previstos pela legislação);
• Todas as suas áreas de plantio são certificadas pelo FSC (Forest Stewardship Council), entidade independente reconhecida mundialmente como a mais séria na avaliação de produção florestal economicamente viável, ambientalmente correta e socialmente justa;
• Todas as suas áreas florestais são também certificadas pela ISO 14001, pela ISO 9000 e pela Ohsas 18001”.
Reportagem de Carlos Juliano Barros, na Revista Problemas Brasileiros, nº 393
Enviada pelo Fórum Carajás.
EcoDebate, 11/07/2009
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