Os ambientalistas e o governo federal, artigo de José Goldemberg
[O Estado de S.Paulo] O movimento ambientalista do século 20 se caracterizou inicialmente pela exposição das mazelas do sistema produtivo em muitos países onde a preocupação dominante era o crescimento econômico. E se caracterizou também, de modo geral, pelo “denuncismo” – e até pela desobediência civil – contra muitos empreendimentos, entre os quais a construção de reatores nucleares.
Mais recentemente, porém, principalmente nos Estados Unidos, o movimento ambientalista entrou numa outra fase, que é a de preparar e propor alternativas para a solução dos problemas. Muitas organizações se profissionalizaram, contratando técnicos competentes, capazes de suprir as deficiências dos próprios governos na área ambiental.
Em contrapartida – como, aliás, seria de esperar -, os principais poluidores, sobretudo as indústrias do carvão e do petróleo, que têm interesse na manutenção do status quo, também se prepararam para enfrentar críticas crescentes e bloquear mudanças de legislação que afetariam os seus negócios.
Não atingimos ainda, no Brasil, esse grau de sofisticação, apesar dos sérios problemas ambientais que enfrentamos, tais como o desmatamento predatório da Amazônia e a poluição urbana do ar nas grandes cidades.
Parte do problema é que a imprensa frequentemente dá ampla cobertura a esses temas sem muito critério, exagerando problemas que às vezes são apenas pontuais. A tendência de parte dos ambientalistas é ver “as árvores”, mas não “a floresta”, como, por exemplo, demonizar a “casa do Clodovil” – construída ilegalmente numa área de mata atlântica – sem lembrar que mais de 100 mil hectares de mata atlântica original foram recuperados no Estado de São Paulo de 1991 a 2005.
Setores do governo e o setor produtivo aproveitam essas distorções, tentando caracterizar o movimento ambientalista como adversário do progresso e do crescimento econômico. Estes setores “não só não veem as árvores, como nem a floresta”.
A eles se juntou até o presidente da República, ao declarar recentemente: “Se o Juscelino Kubitschek fosse construir Brasília hoje, não teria nem licença ambiental para construir a pista para ele descer com seu aviãozinho.” Essa declaração afronta as leis ambientais vigentes no País e também a Constituição, que o presidente, ao tomar posse, jurou respeitar e defender.
Mudar as leis é possível e o governo está tentando fazê-lo, como, por exemplo, fazendo aprovar na Câmara dos Deputados uma medida provisória que dispensa de licença ambiental prévia obras na faixa de domínio de estradas, além de fixar o prazo de 30 dias para a emissão da licença de instalação pelo órgão ambiental, sob pena de aprovação por decurso de prazo na hipótese de inobservância do mencionado prazo. Este é um precedente perigosíssimo, porque com isso o empreendedor terá de apresentar propostas completas – isto é, um projeto executivo, o que uma licença prévia não exige -, que tornarão sua análise em 30 dias inviável. Com o “decurso do prazo”, na prática, a obra será feita sem licença ambiental, o que, a nosso ver, viola a Constituição da República. A sistemática atual, com suas várias etapas (licença prévia, licença de instalação e licença de operação), é mais razoável e dá tempo ao próprio empreendedor para detalhar e adaptar o projeto. Essa lei certamente não resistirá à analise do Poder Judiciário.
A noção que o governo federal está tentando passar à sociedade do papel negativo das exigências ambientais, e que elas representam um obstáculo ao progresso, tem origem na inoperância do próprio governo, cujos órgãos técnicos não conseguem licenciar em tempo hábil as obras necessárias, exatamente pela falta de estrutura de pessoal e equipamentos que o governo tem a obrigação de suprir. Em contraste, existem exemplos de obras extremamente complexas que foram realizadas – como a Rodovia dos Imigrantes e o Rodoanel Mário Covas, em São Paulo – e seguiram rigorosamente todos os trâmites legais. O Trecho Sul do Rodoanel é uma obra complexa, que cruza áreas de proteção ambiental, áreas indígenas e áreas densamente povoadas, cujo licenciamento se compara ao de uma usina hidrelétrica na Amazônia. Não foi preciso mudar as leis ambientais para licenciá-lo.
Se a lei proposta entrar em vigor, até a Rodovia dos Imigrantes poderá ser duplicada sem licença prévia e de instalação, restando ao poder público apenas expedir a licença de operação, quando os impactos ambientais todos já tiverem ocorrido.
É por essa razão que o governo federal está seguindo o caminho errado e, ao fazê-lo, comete erros crescentes, que é o que está ocorrendo com as hidrelétricas da Amazônia. Qualquer obra de grande vulto, seja uma estrada, uma usina hidrelétrica, um porto ou uma instalação industrial, tem impactos ambientais que são inevitáveis. No passado essas obras eram realizadas sem nenhuma consideração séria sobre suas consequências e opor-se a elas parecia a única medida efetiva a tomar.
A solução é comparar os custos ambientais com os benefícios que a realização das obras pode trazer, mesmo a custos mais elevados. A construção de uma hidrelétrica na Amazônia pode afetar milhares de pessoas, mas beneficia milhões de pessoas nas grandes cidades do Sudeste do País e pode ser uma alternativa energética menos onerosa ambientalmente do que outras. Isso é o que o poder público tem a obrigação de fazer, opondo-se, quando for o caso, a interesses de grupos. O que o governo precisa entender é que a legislação ambiental foi criada para permitir que esta análise seja feita, e não para impedir o progresso.
José Goldemberg, professor da USP, foi secretário de Meio Ambiente do Estado de São Paulo
* Artigo originalmente publicado no O Estado de S.Paulo, 18/05/2009.
[EcoDebate, 19/05/2009]
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