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A urgência da ecologia da ação: Modelo de desenvolvimento superado

Como vimos, tanto o governo federal como o grosso do movimento sindical e social rodam sobre um hardware preso à matriz econômica e desenvolvimentista tributária da revolução industrial. Disso resulta uma economia política contraditória, como também observado.

Entretanto, essa maneira de ver e compreender o mundo apresenta outras contradições, sobre as quais queremos refletir agora. Entramos no século XXI e com ele nos defrontamos com novas questões, cujo enfrentamento diz respeito ao futuro da vida (humana) no Planeta Terra. A questão ambiental e climática traz desafios que devem ser enfrentados em base a um novo paradigma de desenvolvimento. E essa não deve ser uma questão marginal ao debate atual que se dá hoje, sob pena de não estar à altura dos desafios.

O sociólogo francês Alain Touraine, detecta, em suas análises, uma mudança de paradigma. Essa mudança estaria se processando na medida em que saímos de um paradigma econômico e social e entramos em outro, de cunho cultural. Diz ele:

“Durante três séculos, digamos, falamos do social em termos políticos, da paz, da guerra, porque o problema era a criação do Estado. Depois tivemos enfoques econômico-social: luta de classes, sindicatos, exploração, luta social, riqueza, estratificação social. Então, do meu ponto de vista, isso desaparece e é o que chamo de o fim do social. Passamos, sem nos darmos conta, de um discurso, de uma linguagem social, a uma linguagem cultural. Falava-se de trabalho, de capital, agora se fala de ecologia, de mulheres, de gênero, de sexo, de minorais. Todos estes temas têm algo em comum: são culturais. A explicação mais simples é que passamos de uma sociedade industrial, na qual a sociedade de massas existia somente no nível da produção, a uma sociedade na qual há massificação no consumo, na comunicação, em todas as partes”, diz Touraine, em entrevista publicada no Boletim CEPAT Informa n. 117, jan. 2007, p. 27-31).

As categorias “sociais”, com as quais se analisava a realidade, perdem centralidade para as categorias de ordem cultural. É a essa passagem, que Touraine vai chamar de “fim do social”, que ele mesmo qualifica de “fascinante e inquietante”. Esse movimento representa a passagem do paradigma econômico e social ao paradigma cultural. Ou seja, doravante, mesmo os fatos econômicos e sociais serão analisados com categorias culturais. A realidade será vista em chave cultural, e não mais exclusivamente em chave econômica e social.

Edgar Morin, também sociólogo francês, por sua vez, também detecta uma passagem que ele classifica como um deslocamento do paradigma analítico ao paradigma da complexidade. Para Morin, trata-se de ultrapassar a visão simplista da realidade de lado, para apreender o real na sua complexidade. Não mais separar, próprio do método cartesiano, mas unir, “religar”. Superar as dicotomias da modernidade é também o ensejo de Touraine.

Essa reflexão, aparentemente desconexa da nossa análise, é de vital importância para compreender a visão de mundo do Presidente Lula e do movimento sindical e social. Diante dos novos desafios, Morin invoca a necessidade da “ecologia da ação”. “Desde o momento em que um indivíduo empreende uma ação, qualquer que seja ela, esta começa a escapar de suas intenções. Ela entra num universo de interações e finalmente o meio ambiente apossa-se dela num sentido que pode se tornar contrário ao da intenção inicial. Com freqüência a ação retorna em bumerangue sobre nossa cabeça”, escreve Morin no livro Introdução ao pensamento complexo (Porto Alegre: Sulina, 2005, p. 80-1).

Em outro momento, Morin explicita o princípio da ecologia da ação com outras palavras: “Uma ação não depende somente da vontade daquele que a pratica, depende também dos contextos em que ela se insere, das condições sociais, biológicas, culturais, políticas que podem ajudar o sentido daquilo que é a nossa intenção. Dessa forma, as ações podem ser praticadas para se realizar um fim específico, mas podem provocar efeitos contrários aos fins que pretendíamos.”

A emergência da preocupação ecológica está apontando para a necessidade de uma compreensão complexa da ação e da realidade, que deve ser encarada de forma trans e/ou interdisciplinar.

As decisões econômico-políticas tomadas em base à ecologia da ação são instadas a conjugar simultaneamente as dimensões econômicas, sociais e ambientais. No entanto, como viemos analisando constantemente, muitas das ações implementadas pelo Governo Lula são contraditórias justamente pela falta de transdisciplinalidade. Ou seja, Lula faz política com a “cabeça do peão de fábrica”, isto é, no paradigma industrial e desenvolvimentista no qual cresceu e amadureceu politicamente. Esse é também o problema das forças de esquerda brasileiras, em sua grande maioria.

Em razão disso, já não é mais desejável trabalhar em termos de linearidade (primeiro enfrentamos a crise econômica e depois a ambiental, por exemplo), mas de circularidade (tudo está ligado a tudo). Assim, hoje não é mais possível fazer hidrelétricas, construir casas, fazer agricultura, tratar os indígenas, implementar um PAC como há trinta anos. Porque no novo paradigma, o meio ambiente não pode mais estar subordinado ao desenvolvimento econômico, simplesmente porque não pode mais ser um elemento marginal e dispensável do processo de desenvolvimento.

A síntese do “desenvolvimentismo” é o PAC, lançado pelo governo federal em janeiro de 2007, representa um conjunto de grandes obras de infra-estrutura para alavancar o crescimento econômico do país. O PAC sempre manifestou um silêncio absoluto sobre a questão ambiental.

Característico desta mentalidade de que a questão ambiental se interpõe como obstáculo ao desenvolvimento é a menção de Lula às “pererecas”, agora, mas também aos bagres, aproximadamente dois anos atrás.

Essa mesma lógica, de que o desenvolvimento se faz contra a preservação do meio ambiente, está presente em outras políticas desse governo: na política energética, na transposição do Rio São Francisco, no incentivo ao agronegócio da monocultura da cana-de-açúcar e do eucalipto. Esta mesma lógica está por trás do desmatamento e no tratamento da questão indígena. Ela também emerge com agressividade no tratamento dado à reforma do Código Florestal, onde os interesses dos ruralistas se evidenciam com toda a força.

Para João Paulo Ribeiro Capobianco, biólogo e ambientalista, professor visitante da Universidade de Columbia, Nova Iorque, e pesquisador associado do IPAM e ex-Secretário de Biodiversidade e Florestas e ex-Secretário Executivo do Ministério do Meio Ambiente de 2003 a 2008, a aprovação à força do Código Florestal pode significar o desmonte da legislação ambiental brasileira.

A questão agrária no Brasil envolve um brutal jogo de poderes com interesses que ultrapassam o plano meramente nacional. Boa parte da produção agro-industrial – biocombustíveis, celulose – é desenvolvida com a finalidade explícita de suprir o mercado internacional, em detrimento dos interesses nacionais. De forma contínua colidem os interesses do modelo agro-exportador e a agricultura de pequena escala, voltada mais aos mercados locais e mais respeitadora do meio ambiente.

O modelo do agronegócio produz trabalho escravo, conflitos agrários, destruição da natureza em larga escala e assassinatos. Trata-se de ver, pois, não apenas os impactos ambientais de tais ações, por si só gravíssimos, mas também os sociais.

A luta da Ir. Dorothy Stang ao lado dos posseiros em Pará e o assassinato decorrente desta sua opção, simbolizam estas duas lógicas opostas. Mais do que isso, representa o tratamento dado à questão agrária no Brasil, que se evidencia também na luta do Movimento dos Sem Terra.

Estes dois projetos de desenvolvimento são bem explicitados por D. Erwin Krautler, Bispo do Xingu e presidente do Conselho Indigenista Missionário – Cimi: “Na realidade existem dois modelos de desenvolvimento, um a favor das grandes empresas e do agronegócio, exigindo capital e a concentração de terras para o cultivo de monoculturas. Este modelo considera a terra como mercadoria, destinada a compra ou venda, e explorável até a exaustão. Em seu conjunto, é orientado para a produção e exportação, concentrador de renda, visando lucros privados e resultados imediatos e muito agressivo ao meio-ambiente. O outro modelo vê na terra o lar que Deus criou em que vivem os povos e convivem respeitosamente com a natureza, a flora e a fauna. A terra exerce uma função materna. Este modelo de desenvolvimento é orientado para a Vida, a paz, a preservação ambiental e o bem-estar da população local, dos pequenos agricultores, das comunidades tradicionais, dos povos indígenas. São dois projetos que estão em confronto: um a favor da terra para a Vida, o outro a favor da terra para o negócio”.

No contexto de supremacia do paradigma desenvolvimentista, também os indígenas são vistos como entraves ao desenvolvimento. Isso ficou claro em todo o processo que envolveu a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, com o Supremo se manifestando pela retirada dos não-índios, mas também nas agruras dos povos indígenas no Centro-oeste brasileiro em busca da sobrevivência.

D. Krautler denuncia ainda que 48 das obras contempladas no “Programa de Aceleração do Crescimento – PAC – amplamente difundido pelo Governo e incensado como principal responsável pelo futuro avanço econômico do país”, “afetam diretamente terras indígenas com o agravante que tanto nessas como nas outras obras não há a realização da Consulta Prévia”. No entanto, existem “mais de 450 empreendimentos que afetam terras indígenas. Dentre estes destacam-se a Hidrelétrica do Estreito, nos Estados Tocantins e Maranhão, a Hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu, no Estado do Pará, e a Transposição das águas do Rio São Francisco que na região Nordeste atinge 26 povos indígenas”, relato o Bispo. Hidrelétricas que, por sua localização, têm enormes impactos sociais e ambientais.

Entretanto, visto a partir de outro ângulo, o movimento ambiental, os povos indígenas, parte do movimento social, e algumas pastorais, conseguem captar a mudança de paradigma que está em andamento. Aqui podem ser arroladas as lutas de resistência à transposição do Rio São Francisco, à construção de hidrelétricas, ao modelo do agronegócio, à retomada da matriz energética nuclear no Brasil, etc. A luta do frei D. Luiz Cappio une os pobres e a questão ecológica numa mesma bandeira, algo inédito. Aliás, por essa sua luta, receberá no próximo dia 09 de maio, na cidade de Freiburg, na Alemanha, o Prêmio Kant de Cidadão do Mundo, dado pela Fundação Kant.

Vinda do fundo da Amazônia e embebida por este espírito que concilia economia e ecologia, a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva, foi uma brava defensora do conceito de “transversalidade” no governo. Ideologicamente, e na prática, o conceito do “desenvolvimentismo” derrotou o conceito da “transversalidade”, com a sua saída da pasta. A saída da Marina significou, na realidade, uma vitória de uma visão conservadora e antiga de se pensar o desenvolvimento do Brasil. Dia 14 de maio próximo, fará um ano que Marina Silva pediu demissão.

O conceito de ‘transversalidade’ proposto pela ministra quando assumiu a pasta, sugeria que a temática ambiental estivesse no cerne de todas as decisões do país e permeasse todas as deliberações políticas. Por trás da concepção de ‘transversalidade’ está a idéia de que a questão ambiental não pode ser tratada apenas como mais uma política pública, mas que em função da crise ecológica se tornou a questão premente e mais importante sob a qual todas as demais deveriam estar circunscritas.

Para o jornalista e ambientalista Washington Novaes, em entrevista à Revista IHU On-Line n. 241, “a ministra, Marina da Silva, do meio ambiente falou muito em transversalidade, ao se referir ao fato de a questão ambiental permear todas as áreas do governo. Mas isso não aconteceu. As outras áreas não tomaram conhecimento disso. A ministra foi derrotada na questão dos transgênicos, (…) foi derrotada na questão de importar pneus usados do Uruguai, foi derrotada na questão de exportar álcool para outros países para reduzir a poluição deles e reduzir a proporção de álcool na gasolina aqui, aumentando a poluição aqui. E agora na questão desse plano de aceleração do crescimento que vai ambientalmente na direção oposta que ele deveria ir”.

Lula nunca se deu conta do alerta pertinente feito por Washington Novaes de que o Brasil se encontra numa encruzilhada histórica que pode ser decisiva para o futuro de nação soberana. Infelizmente, o Brasil parece não perceber que frente à crise epocal desencadeada pelo aquecimento global joga um papel estratégico. No contexto da crise ambiental, o país abre mão de utilizar racionalmente os recursos naturais limitados e parte com tudo para opções preocupantes: petróleo, etanol, celulose, transposição, hidrelétricas que miram um único objetivo: fazer o país “crescer, crescer e crescer”.

Lula sonha em transformar o País num canteiro de obras num projeto de desenvolvimento ainda tributário da Revolução Industrial. Não se deu conta que já entramos na Revolução Informacional e da crise civilizacional que se avizinha com a crise ecológica, irreversível na avaliação do IPCC.

Marina foi atropelada. O seu projeto de desenvolvimento tornou-se incompatível com a lógica impulsionada pelo governo. Certamente fora do governo continuará como militante das importantes causas ambientais.

O fundamental a ser apreendido desta reflexão é que não apenas o governo Lula, mas também a esquerda, compreendido aí o movimento sindical e social, grosso modo, olham para o mundo com um olhar economicista, tributário da revolução industrial, posta em xeque pela crise ambiental e pela mudança climática. E a urgência de mudar de registro, isto é, um novo paradigma, quer o chamemos de cultural, quer da complexidade. Isso fará toda a diferença, razão pela qual essa questão não pode ser relegada a segundo plano. Contudo, convém não esperar.

As contradições do governo Lula, bem como do movimento social brasileiro, devem ser analisadas neste horizonte, e não como ataques pessoais, que, aliás, não levariam a lugar nenhum.

(Ecodebate, 07/05/2009) publicado pelo IHU On-line, 06/05/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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