O futuro possível: onde começa o novo humanismo. Entrevista com Carlo Petrini, o fundador do movimento Slow Food
“É preciso reencontrar as coisas belas, as sementes, as hortas”, afirma o cineasta Ermanno Olmi. “Recuperar a agricultura hoje quer dizer retomar a dignidade”, afirma o fundador do movimento Slow Food, Carlo Petrini.
Nesta conversa bem informal, ambos comentam a relação com a natureza e criticam o modo de produção atual. Segundo eles, a natureza tem uma grande capacidade de se regenerar, contanto que seja deixada em paz. “A tragédia que vivemos não é econômica, mas filosófica: é preciso recuperar a essência”, afirmam.
A reportagem é de Paolo Rumiz, publicada no jornal La Repubblica, 28-04-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Virá a fome, a fome do alimento justo. Virá a rejeição aos venenos e ao desperdício. Então, o filho pródigo voltará à casa do pai, redescobrirá a Boa Terra e iniciará a resistência contra o império do consumo e o saque à natureza. A hora se aproxima, os sinais são claros: o sistema está devorando a si mesmo, o barco afunda.
Conversamos sobre esses temas com o líder do movimento Slow Food, Carlo Petrini, e o cineasta Ermanno Olmi, em um diálogo “bíblico”, às vésperas da estréia do filme “Terra madre”, dedicado aos pequenos agricultores do mundo.
Como explicar que é preciso voltar à terra?
Olmi – Pensemos. Como se trai uma mulher? Quando a reduzimos a um instrumento procriativo. Mas o que é a terra senão uma mulher? Se não entendermos a sua essência vital, não compreendemos nada… A tragédia de hoje não é econômica, mas filosófica. É hora de voltar à essência, à verdade das necessidades.
Petrini – Olhe quanta dignidade os agricultores dos países pobres têm… Fazem com que pareçamos ridículos… Diante deles, vemos que somos feios, barulhentos, envenenados pelo inútil, curvados aos celulares… Pois bem, devemos explicar melhor que, hoje, voltar à terra não é mais voltar à miséria… Para evitar esta, temos a tecnologia… Mas voltar à dignidade, à beleza.
Sim, mas a nobreza das mãos não é mais representada. Nos jornais, só vemos fotos de empresários.
Petrini – É uma coisa que irrita. Nunca um agricultor, ou um pastor… Ignoram-se os novos sinais: a mulher de Obama que planta na horta da Casa Branca quer dizer alguma coisa, não? Muitos se dão contam, entendem que o agricultor pode ser rico como um rei… mais do que um empresário ou um advogado.
Olmi – Escute. Nunca como agora os empresários sentem o vazio da sua vida, entendem que desperdiçaram inutilmente… O modelo está no fim da linha, o Titanic afunda. Sabe o que estava escrito na quilha do Titanic? “Só Deus pode me afundar”. E depois…
Mas o modelo Titanic continua. Até a FAO exorta a produzir mais.
Petrini – Tolos. Empurrar a economia com o consumo é como dizer a um diabético “empanturre-se em uma confeitaria”. O consumismo faliu e deve ser recusado em todas as frentes. A velocidade deve ser combatida com lentidão; as necessidades inúteis, com a austeridade; o desperdício, com a propensão à reutilização… Resistência dura.
Olmi – Hoje, nos partidos, triunfa a palavra Liberdade. Li-ber-da-de. Sabe o que isso quer dizer? Simples. Liberdade para recuperar um modelo clamorosamente falido. Liberdade para consertar o Titanic. Liberdade para consumir, para desperdiçar, para envenenar. Se fosse eu, fundaria um partido da pobreza, entendida como redução do consumo. Não condenação, mas conquista.
Não é fácil entender. Estamos muito envenenados.
Olmi – Tranquilo. Virá a fome, e então entenderemos… A fome, quero dizer, do alimento justo… Pense na parábola do filho pródigo. De que ele se alimentava? Lavagem dos porcos. E nós? Igual. Lanchinhos, alimentos com aditivos. Porcarias. No nosso intestino, o alimento não fermenta mais, mas se putrefaz. E, assim, os mesmos que nos envenenam nos fazem gastar com remédios para acalmar os gases… Vamos acordar quando entendamos que, por trás da nossa fome, há uma tremenda saudade da qualidade. Então, o Pai virá e fará com que assem o novilho gordo… E vocês verão, será maravilhoso.
Como organizar a resistência?
Petrini – Roma passou séculos afundando… Os imperadores dispunham, julgavam, publicavam editos, mas o controle do território era tratado com desleixo. E assim, anarquicamente, nasciam aldeias com suas próprias regras. Nós vivemos um momento semelhante. Como Roma, o totalitarismo global desaba, mas continua comandando. E então se resiste construindo novas aldeias, núcleos de solidariedade, baseados não na utilidade ou no prazer, mas no bom e no justo. Comunidades da ética.
Olmi – A estratégia justa não é o choque frontal e nem a guerrilha. É ignorar os culpados, separar-se deles. Tornar-se estranhos ao seu projeto. Ajudar o filho pródigo a construir uma horta sua, a colocar debaixo da pia azeite e cinzas no lugar dos venenos, a não comprar congelados. Olhe o meu jardim: tem uma horta de oito metros quadrados e não sei como parar com ela…
Os italianos, se pudessem, encheriam a terra com galpões industriais.
Olmi – De fato, vivemos uma crise de civilização antes que uma crise econômica. Os valores, não os números, estão errados. Quem diz que a crise ou a superação da crise se mede em números não entendeu nada. Por que Marx faliu? Porque acreditava que a economia fazia a civilização. Agora cometemos o mesmo erro. Não entendemos que o nosso mundo, nos últimos dois mil anos, expressou uma única revolução: a de Cristo. Cristo, sublinho. Não a Igreja de hoje.
Petrini – É claro, precisamos de um novo humanismo. Vivemos três crises simultâneas: climática, energética, financeira. Mas todas têm uma única causa: a ganância. Um novo humanismo.
Na prática, o que isso quer dizer?
Petrini – Retorno a uma anarquia austera, com as comunidades que decidem sozinhas… A Terra é anarquia por natureza, rejeita escolhas que caem do céu… Ao ponto que até o Slow Food deve combater a tentação de querer fazer bem o bem aos outros… Mas essa multidão de ONGs em circulação não está certo, não está certo…
O risco é que já seja tarde. Muitos venenos.
Petrini – Nããão! O Tâmisa parecia morto, e olhe como está hoje… O Bormida [rio italiano] era um esgoto e está se recuperando. A terra é como o ânimo humano. Quando está destruído, do que ele precisa? Tempo, cuidado, manutenção… Exatamente o que o nosso mundo baniu.
Olmi – Não consigo me esquecer disto. Eu estava trabalhando com Renzo Piano na recuperação da Falk [indústria metalúrgica], em Sesto San Giovanni, e em um momento me dei conta que cresciam plantas na terra envenenada após um século de industrialização… Também ali, entende? A natureza tem uma capacidade monstruosa de se regenerar. Basta deixá-la em paz.
Voes nunca se deram de cara contra o poder?
Olmi – Com os latifundiários de ontem, você até poderia se chocar. Com os de hoje, não. Não são pessoas, são fantasmas. Você não sabe quem está por trás. Bancos, crime, política, igrejas, lobby… Se você os ataca, eles não respondem. Vandana Shiva chama-os pelos seus nomes e pelos sobrenomes, os acusa de serem criminosos, e não acontece nada. Um muro de borracha.
Petrini – Os arrogantes da terra não precisam matar. Basta-lhes a imprensa para difundir apatia, descompromisso, a ideia de que toda resistência é leviana. O drama é que uma certa esquerda também pensa assim, e isso é horrível… Uma traição… Justamente eles, os meus companheiros de estrada…
Como representar a agricultura hoje?
Olmi – No filme “Terra Madre”, conta-se a história de Ernesto, um agricultor do Vêneto, que viveu em perfeita autarquia e absoluta solidão até a sua morte. Dieta bíblica sem carne, só produtos da sua terra. Certamente, não é um modelo a ser imitado. Mas a ser meditado, sim. Ele nos confiou um pedaço de terra bíblica no meio de indústrias e culturas intensivas. Mostrar a beleza desse lugar é impressionante. Faz entender como nós decaímos tão profundamente.
Petrini – Não acredito que Ernesto tenha pensado nos descendentes. O que conta é que ele nos confiou esse laboratório único… Você não tem ideia de como esse lugar é diferente do que o circunda. Outro cheiro, outra forma, outra geometria… Uma maravilha.
O que vocês dizem dos bancos de sementes nas ilhas Svalbard?
Olmi – Esse lugar não é uma conquista, é uma tragédia. Isso são as imagens que dizem, sem necessidade de comentários. Na inauguração, o comissário da União Européia, [Durão] Barroso falou de um “jardim do Éden congelado”. Mas você se dá conta? Aquele ali é o lugar onde os arrogantes da terra vão proteger a vida do colapso que eles mesmos produzem! Monsanto, Coca-Cola, Bill Gates…
Petrini – As Svalbard, um monumento à arrogância e à estupidez. Escolheram o lugar por causa do frio, não? Bem, o que fizeram? Uma caverna na rocha, quando até os burros sabem que debaixo da terra a temperatura sobe… Assim, tiveram que colocar refrigeradores… Pense que demência… Não se deve entubar as sementes, deve se fazer com que elas vivam na gratuidade e na troca…
Enquanto isso, eles se apropriam das sementes e da água.
Olmi – Você vai ver! No fim, trocaremos as sementes às escondidas, como os livros proibidos. Será o modo de despedaçar o poder deles. Não vejo outra revolta possível. Olhe esta arvorezinha que nasce. É uma macieira. Vem da semente de uma macieira que um menino de uma escola lombarda que cuidava da horta da turma me deu. Eu a plantei e agora está crescendo. Pode haver um sinal mais bonito?
(Ecodebate, 02/05/2009) publicado pelo IHU On-line, 01/05/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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