As crises econômica e climática se sobrepõem
“Imagine um avião cuja probabilidade de chegar ao destino seja de 10%. Você embarcaria nele? Evidentemente que não…”. Stefan Rahmstorf, do Instituto Potsdam de Pesquisas do Clima, adora esta metáfora para explicar o que está para acontecer: desde o último relatório do Grupo Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), publicado no começo de fevereiro de 2007, há 90% de probabilidades de que o homem esteja na origem da transformação do clima que ameaça os grandes equilíbrios planetários.
Por trás de palavras bem escolhidas, tais como “muito provável” ou “evidências muito fortes”, o relatório do IPCC foi ao mesmo tempo claro e contundente: é inequívoca a participação humana no aquecimento global. Meses antes da divulgação do relatório, o chefe do IPCC, Rajendra K. Pachauri, adiantou que o texto terá “evidências muito mais fortes de ação humana na mudança climática que vem ocorrendo”.
A polidez das palavras para se referir a algo tão dramático se deve ao fato de que o relatório necessita ser consensuado e aprovado pelos países membros da ONU. Na época, as resistências eram ainda maiores do que hoje, razão pela qual o tom do relatório fosse atenuado.
Entretanto, passados pouco mais de dois anos, o conteúdo do relatório não apenas foi se confirmando, como se anunciam os cenários mais pessimistas e extremados, caso nada for feito. Novos estudos foram apontando para a gravidade da situação climática.
Dizer que as mudanças climáticas têm origem nas atividades humanas, significa dizer que elas têm origem “econômica”, como lembra Paulo Brack, biólogo e professor no Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. No fundo, a crise ecológica foi gerada pelos interesses econômicos, pelo modo de produção e consumo vigentes. Em entrevista especial para o IHU, Paulo Brack precisa essa afirmação: “O nível de CO2 da atmosfera aumentou em cerca de 30% nos dois últimos séculos e isso estaria ligado a atividades industriais, queima de florestas e demais atividades que geram liberação de gases de efeito estufa”.
É verdade, como afirma Ricardo Abramovay, economista e professor da Universidade de São Paulo, que “o sistema contemporâneo tem extraordinária capacidade de reduzir a pobreza absoluta” no mundo. Além disso, possibilitou enormes progressos em todos os campos. Mas, como lembra Nicolas Ridoux, o crescimento não é necessariamente progresso e a condição indispensável para um desenvolvimento justo.
Os fantásticos progressos econômicos mostram hoje seus limites tanto ambientais como sociais. A lógica econômica vigente mostra que “tem pés de barro”, diz ainda Abramovay. E isso em dois sentidos: ela foi capaz de (1) gerar um crescimento sem redução de pobreza e (2) defronta-se com a impossibilidade física de universalizar o consumo atual dos países mais ricos.
Cresce o número dos estudiosos que se juntam ao coro do IPCC para alertar que o futuro da vida no Planeta Terra corre risco e sobre a necessidade de mudanças urgentes. “O Planeta necessita que mudemos de estilo de vida”, assegura Serge Latouche, professor emérito de Economia da Universidade de Paris-Sul (Orsay). Latouche é um dos teóricos do chamado decrescimento, proposta que rechaça o crescimento pelo crescimento e a sociedade de consumo.
James Lovelock tem sido cada vez mais pereptório, para não dizer pessimista. Para ele, a mudança climática acabará com grande parte da vida na Terra durante o atual século sem que a humanidade possa fazer qualquer coisa para evitar a catástrofe. No auge de seus 89 anos, Lovelock estimou que a população mundial poderá cair dos atuais 7 bilhões para aproximadamente 1 bilhão em 2100 devido a que as pessoas disputarão os escassos recursos naturais disponíveis.
O cientista britânico, autor da Teoria de Gaia – que determina que o Planeta funciona como um sistema auto-regulado – mostra-se pessimista com as campanhas de reciclagem. Nisso, no fundo, concorda com Latouche quando este afirma que o “melhor lixo é aquele não produzido”.
Anthony Giddens, um dos sociólogos mais influentes da atualidade, concorda em que “o mundo que criamos é insustentável” e que “sabemos que não podemos continuar como estamos”, mas é mais otimista. Giddens critica o tom “apocalíptico” dispensado à questão da mudança climática e propõe uma perspectiva mais propositiva: “proponho uma reorganização fundamental do pensamento, para focar muito mais nos investimentos, para ver os lados positivos do aquecimento global. Podemos criar uma genuína economia verde, quebrar a dependência do Oriente Médio, garantir segurança energética e levar a uma vida melhor por meio dessas transformações. Dizer para os empresários que eles podem se tornar mais competitivos”.
Giddens, que acaba de lançar na Inglaterra seu novo livro – The Politics of Climate Change (A Política de Mudança Climática, Polity Press, 256 págs.) –, em que aborda o aquecimento global, diz que “o caminho para lidar com a mudança climática deve ser de ousadia, inovação, o máximo uso da tecnologia”. E isso requer novas utopias: “temos de nos preparar para pensar novamente de modo muito radical lá na frente. É claro que, agora, temos de lidar com o mundo como o vemos. Mas sou a favor de um retorno parcial a certo utopismo”.
Também o ensaísta norte-americano, Thomas Friedman, está convencido de que a salvação do Planeta está no meio ambiente. Friedman publicou em outubro passado nos EUA Hot, Flat and Crowded, e que já se encontra nas livrarias da Itália, com o mesmo título: “Quente, plano e cheio”. No livro destaca a necessidade de uma “nova revolução industrial, à qual chamamos de ET (Energy Technology) ou, se preferirmos, Geo-Greenism, revolução verde. E deverão ser os Estados Unidos quem a liderará”. Para isso, defende a passagem dos “problemas do terrorismo global da era Bush aos do aquecimento global”, para os quais Barack Obama estaria apresentando maior sensibilidade.
A novidade crucial desta quadra histórica é que nos confrontamos com diversas crises –financeira, econômica, energética, alimentar e climática – que necessitam ser enfrentadas simultaneamente. E isso nos coloca diante de uma crise civilizacional. De certa forma, tudo está em suspenso, é questionado e necessitado de reorientação ou mudança. O pensamento complexo questiona a lógica sequencial e analítica subjacente à modernidade e que alavancou a sociedade industrial. Hoje, já não podemos mais pensar em resolver primeiro a crise econômica para depois nos ocupar do aquecimento global.
O novo desenvolvimento econômico já não pode ser feito contra a natureza. Pois, como diz o ecologista norte-americano Barry Commoner, faz-se necessário “mudar o motor do desenvolvimento, fazendo-o funcionar em sintonia com o meio ambiente”. E acrescenta: “Sem recuperar o meio ambiente, não se salva a economia; sem recuperar a economia, não se salva o meio ambiente”.
Há, por conseguinte, uma crescente tomada de consciente que procura relacionar as crises econômica e climática. “A crise financeira, por pior que seja, é uma crise reversível. Já passamos por isso no passado e, mesmo que seja terrível, a economia acaba se recuperando”, lembra o físico José Goldemberg. “Mas se o clima mudar mesmo, como está acontecendo, a mudança é irreversível”, garante, apontando a diferença entre as duas crises.
“A crise climática é tão real quanto a crise econômica e certamente será muito mais longa. Não há tempo a perder. Salvar o Planeta é agora ou agora”, assevera Marcelo Furtado, diretor executivo do Greenpeace no Brasil. Por via transversa – uma assustadora crise econômica global – a economia finalmente se aproximou de temas ambientais. Há riscos enormes e decisões difíceis pela frente.
“Já deveria estar bem claro que as crises climáticas e financeiras estão intrinsecamente ligadas e tentar resolver uma e deixar a outra para depois não tem como dar certo”, lembra David Norman, diretor da Ong WWF.
A crise financeira está se mostrando adversa sobretudo para com os trabalhadores e os mais pobres, que a pagam com o desemprego, o subemprego, a fome e as incertezas quanto ao seu futuro. No entanto, a médio e a longo prazos, há indícios de que o aquecimento climático pode ser mais dramático ainda, afetando também ela de maneira mais aguda os pobres. De diversas maneiras eles podem ser aqueles que pagam não apenas o pato da crise financeira, mas também o pato da crise provocada pelo aquecimento global: fome, aumento do nível do mar, migrações, secas e tempestades cada vez mais frequentes e prolongadas, recaem com maior intensidade sobre os mais frágeis da terra. E o Brasil, alertam os especialistas, está entre os países que serão mais afetados pela crise climática.
Essa relação precisa ficar cristalizada na mente de todos, especialmente dos políticos, pois uma das vantagens desta crise econômica – além de desacreditar o discurso neoliberal – foi mostrar a relevância da política. Neste sentido, a crise financeira e econômica se apresenta como uma oportunidade singular para mudanças. Entretanto, de per si, a crise pode também servir de pretexto para acirrar ainda mais o velho.
A crise econômica e a ameaça do aquecimento global podem ser uma boa oportunidade para acelerar a chamada “descarbonização” da economia e apostar em energias limpas. Estudiosos defendem taxar as energias altamente poluentes e não renováveis, como o petróleo e o carvão, e subvencionar as energias limpas e renováveis, como uma saída.
O economista espanhol, Jaime Terceiro, autor do livro A economia da mudança climática, sem tradução para o português, insiste em que “é preciso romper o vínculo entre crescimento econômico e emissão de gases de efeito estufa. Para isso, é preciso taxar as indústrias fósseis e os produtos derivados, criar um mercado de emissões de carbono e subvencionar as energias não poluentes”. E lembra que “a crise financeira é transitória e seria um equívoco que por conta disso se esquecesse a gravidade da mudança climática”.
“Deveríamos ver a crise econômica como uma oportunidade de usar a energia de forma mais eficiente e começar a introduzir as energias alternativas. Esse é o momento onde podemos taxar o carbono, porque os combustíveis fósseis estão baratos. […] Precisaremos fechar todas as usinas a carvão nos próximos 20 anos. Isso é 80% da solução e fará com que as curvas de emissão caiam muito rápido”, defende o físico James Hansen, um dos primeiros a alertar o mundo sobre a questão do aquecimento global.
Mas, insistimos, a possibilidade de os novos investimentos serem direcionados para a nova economia verde, não está dada automaticamente. A preocupação com a retomada do crescimento econômico pode inibir investimentos na chamada “economia verde”. Os planos de estímulo econômico que estão sendo implementados em todo o mundo para fazer frente à crise financeira poderão impor aos países um crescimento rápido das emissões de gases que provocam o efeito estufa, anulando em parte as iniciativas verdes neles incluídos. Esta é a crítica que se faz, por exemplo, ao Brasil. Não é de hoje a constatação de que o PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), que prevê gigantescas obras de infra-estrutura, não tem nenhuma ou pouca preocupação com a questão ambiental. Até agora, a resposta do Brasil à crise econômica não tem nada de verde. “Em alguns casos é ate antiverde”, constata Eduardo Viola, professor titular de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.
Viola compara, por exemplo, as exigências feitas às montadoras brasileiras em troca dos subsídios e aquelas de Barack Obama, nos Estados Unidos, que exigiu investimentos em veículos a hidrogênio, coisa que não aconteceu no Brasil. Aqui, a redução do IPI dos automóveis se deu para não paralisar as vendas, ou seja, para manter o consumo. A mesma coisa vale em relação à política energética brasileira. Em suma, o Brasil estaria perdendo uma oportunidade singular para uma “fuga para a frente” se investisse pesadamente em fontes alternativas mais limpas de energia, como a eólica e a solar.
Ao contrário, segue investindo em fontes como os biocombustíveis, energia nuclear, e biodiesel, que são mais limpas que as energias fósseis, mas problemáticas devido aos impactos ambientais e sociais que elas provocam. Ou seja, em boa medida, elas são parte do problema e não da solução. Segue empurrando o problema para frente. Sem falar das hidrelétricas na Amazônia, projetadas em grande medida para produção de energia para a produção de alumínio e outros produtos para exportação, como relata Philip Fearnside, em entrevista ao IHU On-Line.
Essa dissociação entre a consciência geral da gravidade do problema climático e a timidez das ações governamentais, relegando para segundo momento as questões relativas à crise ambiental, também está evidente no G-20. Em sua última reunião, as ações anunciadas para enfrentar a crise financeira foram inovadoras, ambiciosas e aplaudidas mundo afora, ao passo que para combater o aquecimento global sobrou apenas um discurso breve, vago e sem objetivos. Ainda com outras palavras, a reunião realizada em Londres no começo de abril deixou claro, nos seus resultados, que não existe vontade política por parte da maioria dos governos para resolver as questões ambientais e promover o desenvolvimento sem comprometer o futuro do planeta.
Mas, a realidade atual mescla temores e esperanças, ousadias e timidezes. E como diz o economista Abramovay, “a mais importante renovação das ciências sociais contemporâneas está no esforço de integrar de maneira organicamente articulada sociedade e natureza numa mesma estrutura analítica: é o que faz a atual economia ecológica e é o que muitos economistas de esquerda, voltados apenas à ideia de que é necessário intervir para garantir o crescimento e a melhor distribuição de renda, solenemente ignoram”. Sem, portanto, desconhecer que a crise terá seus efeitos também sobre a esquerda no mundo, como alertam Fidel Castro e Giddens.
Em relação à atual crise, entendida na sua complexidade, as forças sociais que sonham com um “outro mundo possível” estão órfãs de ideias inovadoras e mais utópicas sobre a situação. Ou será que a ideia do “fim da história”, de Francis Fukuyama, entendida como aquela “fase da história em que não podemos ver nada diferente do mundo em que vivemos”, que tem seu paralelo brasileiro no “pensamento único”, não enredou as forças de esquerda no círculo de giz circunscrito ao economicismo?
Neste caso, como diz Giddens, referindo-se particularmente à esquerda que está no poder, “na ausência de um novo modo de pensar, o Estado não será capaz de garantir uma gestão mais eficaz da atividade econômica com relação ao passado”.
A consciência planetária que se torna presente através da mudança de mentalidade e de gestos de cuidado para com a Terra, são sinais de que algo novo está acontecendo. O grito da Terra e o grito dos pobres, como diz Leonardo Boff, são o mesmo grito clamando por vida e justiça. E em cada um desses gestos, a vida, apesar das forças da morte, teima em resistir e ressuscitar.
(Ecodebate, 13/04/2009) publicado pelo IHU On-line, 09/04/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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