Surtos de hepatite e outras doenças por falta de saneamento ameaçam Marsilac, SP
Esgoto a céu aberto, em foto de arquivo
Marsilac, SP, convive com surtos de hepatite e outras doenças; Falta de saneamento faz distrito de Marsilac lançar esgoto diretamente no Capivari, ainda livre de poluição; Sabesp afirma que região terá água tratada Falta ainda contratação do projeto de instalação do poço artesiano; água contaminada mata 7 crianças por dia no País
Quando tinha 16 anos, Alan Cirillo costumava brincar no Ribeirão Claro, afluente do Rio Capivari, próximo de sua casa, em Engenheiro Marsilac, sem saber do perigo que a água contaminada trazia. “Minha mãe não gostava, mas era ela sair para trabalhar que a gente se picava para lá”, diz o rapaz de 21 anos, hoje estudante de Veterinária. Dias depois ele passou a ter náuseas e vômitos. Foi diagnosticado com hepatite tipo A.
“Volta e meia a região tem um surto de hepatite. Em 2007 foram 73 casos”, diz Maria Lúcia Cirillo, mãe de Alan e presidente da associação de moradores da área central do distrito de Marsilac. Ela afirma que, na mesma época em que Alan contraiu hepatite, um menino de 6 anos morreu de febre tifoide no bairro Evangelista de Souza. Matérias de Bruno Versolato, no O Estado de S.Paulo.
A hepatite foi apenas uma das doenças transmitidas a Alan pela água. “Já tive malária, vários tipos de verminoses e diarreia não sei quantas vezes. Agora melhorou. Mas faz uns quatro anos que só tomo água mineral.” Apesar disso, o rim de Alan acusou o golpe. Há cerca de um ano, o rapaz faz tratamento contra uma doença autoimune. “É como se o rim dele se ‘suicidasse’”, diz a mãe. “Não sabemos o que é, mas os médicos têm quase certeza de que foi algo que eu ingeri”, diz Alan.
Um folheto distribuído pela Sabesp na região alerta que, além da hepatite A, da diarreia e da febre tifoide, doenças como cólera, giárdia e salmonelose podem ser transmitidas pela água sem tratamento. A maioria delas é causada por micro-organismos eliminados pelo intestino. O corpo, como defesa, expulsa boa parte dos agentes causadores de doenças pelas fezes. Se o esgoto não é recolhido e tratado, volta ao ambiente e contamina outra pessoa, perpetuando o ciclo da doença.
As doenças causadas pela falta de saneamento básico são responsáveis por 65% das internações no Sistema Único de Saúde (SUS), afirma o infectologista Arthur Timerman, do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. A diarreia provocada por saneamento inadequado mata sete crianças com idades de 1 a 5 anos por dia no Brasil, segundo dados da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Por ano, são mais de 2,5 mil.
“O elo fraco da falta de saneamento é a criança”, diz Timerman. A ausência de saneamento interfere até na aprendizagem. “Problemas relacionados a doenças transmitidas pela água são responsáveis por 34% das faltas de crianças a creches e salas de aula.”
“As crianças sofrem mais, mas o problema não escolhe idade, raça ou condição social”, diz Timerman. Segundo ele, Ilhabela, refúgio de paulistanos abastados no litoral norte, tem só 3% do esgoto tratado. “Costumo brincar que o camarão e a lagosta, pratos associados a pessoas de alto nível social, são um grande democratizador da falta de saneamento do País. Quando pescados numa praia onde há despejo de esgoto in natura, o risco de eles serem o vetor de um vírus ou bactéria é grande.”
Fossas
Em Marsilac, riscos como os descritos por Timerman tornam-se mais graves por causa das fossas negras e poços rasos e bicas de onde os moradores tiram água para beber. A fossa negra é um buraco, normalmente de 3 a 5 metros de profundidade, onde são despejados os dejetos da cozinha e do banheiro. Ela raramente tem algum revestimento, o que faz o material sólido e líquido penetrar diretamente no solo.
Uma saída para regiões distantes da rede coletora, como Marsilac, é recorrer a fossas sépticas com sumidouro. Nesse sistema, há uma decantação do material sólido e o líquido é vazado para outro recipiente com fundo vedado e furos laterais. Assim, o líquido é absorvido pelo solo de maneira horizontal, facilitando a filtragem natural.
Segundo a associação presidida por Maria Lucia, das cerca de 3 mil pessoas da área central do distrito, 97,55% usam a fossa negra. As 2,45% restantes não têm nem fossa, deixam seu esgoto correr a céu aberto.
Alerta no único rio limpo de SP
Falta de saneamento faz distrito de Marsilac lançar esgoto diretamente no Capivari, ainda livre de poluição
Uma vez por semana, Nino Santana, de 38 anos, inicia um ritual que leva toda a manhã. O primeiro passo é ligar à caixa d’água de casa uma mangueira que segue morro abaixo até uma mina localizada num barranco coberto por vegetação. “Com estes dias quentes, tive que fazer essa romaria umas duas vezes.” Santana mora no distrito de Marsilac, extremo sul de São Paulo. Sua casa seria atendida por um poço profundo perfurado pela Sabesp em 2004, inativo até hoje. “Várias famílias usam a água da mina. Não sei até quando ela aguenta”, diz Santana, vendedor de loja afastado do emprego após um acidente de trabalho.
Os 15 mil moradores do distrito de Marsilac têm o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da capital e nível de mortalidade infantil superior à média do Nordeste. Como a maioria da população utiliza valas negras para despejar o esgoto, há risco de contaminação por doenças graves, como hepatite, cólera e tifo (mais informações na pág. H11). A falta de saneamento coloca em risco vidas e também o único rio livre de poluição que corta São Paulo – o Capivari.
“Em termos ambientais a região é de extrema importância. Na verdade, o Capivari é o único rio sem poluição que corta Marsilac, mas a região abriga vários cursos d’água intactos que nascem na Serra do Mar e abastecem o Sistema Guarapiranga”, diz Élio Neves, chefe de gabinete da Secretaria Municipal do Verde.
O Guarapiranga, que fornece cerca de 30% da água consumida em São Paulo, não é o único destino do esgoto produzido em Marsilac. Os dejetos do barraco da catadora de papel Janete Aparecida Elias, de 45 anos e seis filhos, por exemplo, são despejados todos no Ribeirão Claro, riozinho que vai encontrar o Capivari quase na chegada à Represa Billings, que passa pouco atrás da casa.
Recentemente, Janete aumentou para 5 metros a profundidade do poço de onde retira a água que usa no dia a dia. Nos últimos meses, a catadora andou às turras com o vizinho, que pretende construir uma vala negra em um terreno acima do poço dela. Se o vizinho insistir no projeto, os dejetos vão contaminar a água que a catadora e os seis filhos usam para beber, cozinhar e tomar banho.
Desempenho ambiental
O drama da população de Marsilac é exemplar para se entender o que acontece com o saneamento básico no Brasil. O Índice de Desempenho Ambiental (EPI, na sigla em inglês), levantamento feito pelas Universidades de Yale e Columbia que mede a performance ambiental de 132 países, listou o Brasil em 34º no ranking, com 82,7 pontos de média. Não muito atrás de países como Dinamarca (84) e Espanha (83,1).
Mas no quesito Adequação Sanitária o País fez feio. No levantamento de 2008 teve nota 70,8. Na comparação das Américas, ficou atrás de países como Guatemala, Paraguai, Jamaica e República Dominicana. “Mesmo São Paulo, que tem IDH de país europeu, tem seu lado africano”, diz Raul Pinho, presidente executivo da ONG Trata Brasil.
Hoje, 97% dos municípios brasileiros dispõem de água tratada em 70% das residências ou mais, só que apenas um terço do esgoto é recolhido, diz Paulo Libânio, coordenador do Programa de Despoluição das Bacias Hidrográficas (Prodes) da Agência Nacional das Águas (ANA). “O mais grave é que apenas 30% do esgoto coletado é tratado e esse é o maior fator de poluição de águas no Brasil”, afirma Marcelo Néri, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Nesse cenário, não é apenas o morador pobre, da zona rural ou de comunidades irregulares que sai prejudicado. O número de pessoas morando em cidades no Brasil corresponde a 82,7% da população. Desse total, 56% é atendido pela rede coletora de esgoto. O resto é obrigado a despejar esgoto in natura em córregos, rios ou praias.
“É o caso dos condomínios da Barra da Tijuca ou do Recreio dos Bandeirantes, no Rio”, diz Pinho. Os imóveis desses bairros, que ostentam construções de alto padrão, não dispõem de rede coletora. O esgoto produzido por eles é jogado na praia ou em fossas sépticas, cujo transbordamento por falta de manutenção pode trazer danos sérios ao ambiente.
Libânio, doutor em Saneamento Básico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica que, nos anos 1970, os investimentos no setor foram concentrados em distribuição de água. “Só a partir de 2000 é que se começou a investir em coleta e tratamento de esgoto de forma maciça.”
“Há duas décadas a política era afastar o esgoto. Jogava no mar, rio abaixo. Hoje, com as cidades crescendo e uma se juntando à outra, a população passa a ver a sujeira”, diz Pinho. Um exemplo dessa mudança de enfoque ocorreu nas últimas eleições municipais, em que candidatos debateram a questão do tratamento de esgoto. “A visão de que saneamento não traz dividendos políticos já não existe”, diz Libânio.
Mas, apesar do cenário mais favorável ao investimento em saneamento, modernizar o setor no País exigirá tempo e dinheiro. “Se começarmos agora, vamos demorar 20 anos e R$ 200 bilhões para levar água e esgoto tratado a 100% dos domicílios do País”, diz Libânio. Em coleta e tratamento de esgoto, números internacionais mostram que se gasta cerca de R$ 600 por pessoa para montar a infraestrutura. Para tratar e distribuir água potável, o número gira em torno de R$ 200 per capita.
Retorno
O gasto de R$ 200 bilhões pode parecer alto, mas o custo-benefício é atraente. Citando levantamentos do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Pinho afirma que, para cada R$ 1 investido em saneamento, o poder público poupa R$ 8 em gastos na saúde. “Em alguns casos, a relação pode ser de R$ 1 para R$ 30. É um investimento que se paga facilmente.”
Sabesp afirma que região terá água tratada
Falta ainda contratação do projeto de instalação do poço artesiano
O distrito de Engenheiro Marsilac surgiu com a construção do ramal Mairinque-Santos da antiga Estrada de Ferro Sorocabana, que começou a operar em 1937, mas foi inaugurado oficialmente em 1938, por Getúlio Vargas. Só em 2004 chegou a primeira obra de saneamento básico à região: um poço artesiano perfurado pela Sabesp com vazão de 55 metros cúbicos por hora. Hoje, o poço está tapado por um tubo preto enterrado no chão, num terreno perto do centro do distrito.
Em 2006, o Ministério Público Estadual (MPE) entrou como uma ação contra a Sabesp pedindo a instalação de um serviço de distribuição de água e esgoto. O processo ainda corre na 2ª Vara de Fazenda Pública, à espera de um estudo da Sabesp para atestar a viabilidade ambiental da obra.
Em comunicado, a Sabesp informa que já foi concluído um estudo para a construção de uma rede de distribuição de água tratada para cerca de mil moradores do centro de Marsilac. Mas falta ainda a contratação do projeto executivo de instalação do poço artesiano.
Quanto ao esgoto, a Sabesp informou que a melhor solução para o bairro será a abertura de fossas sépticas em cada habitação. A Sabesp não deu um prazo para a conclusão das obras.
O distrito não é inteiramente desprovido de saneamento. Uma parte mais habitada, próxima do Embu, tem um poço em funcionamento.
[EcoDebate, 23/03/2009]
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