O clima pesado das crises globais (financeira, ambiental e climática). Entrevista com o urbanista Mike Davis
Imagem: Stockxpert
Pelos menos duas grandes crises assustam as previsões para o decorrer deste ano – e, possivelmente, dos próximos também. Uma delas, já bastante difundida e prontamente socorrida pelos governos, diz respeito ao estado de incertezas que recobre a economia global. A outra, a crise climática e ambiental, ainda parece, no entanto, coisa de um futuro distante – embora já esteja ocorrendo agora, como alerta o urbanista Mike Davis. A reportagem e a entrevista e publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, 15-02-2009.
Professor na Universidade da Califórnia, Davis lembra que “o clima está mudando mais rápido do que a capacidade de adaptação de plantas e animais”. Cita como exemplos as nevascas que vêm atingindo a Inglaterra nas últimas semanas ou as alterações climáticas no sudoeste dos EUA, no norte do México e no leste da região banhada pelo mar Mediterrâneo, locais que têm se tornado mais secos e quentes.
Crítico das implicações ambientais do capitalismo, Davis é autor de obras como “Planeta Favela” (Boitempo) e “Cidades Mortas” (Record). Para ele, “a mudança climática ainda não assumiu um papel central na geração de um colapso econômico, embora tal conjuntura seja obviamente previsível”. Ele aponta, por exemplo, que o aumento no preço dos grãos, em 2008, foi resultado, em parte, dos desastres climáticos dos últimos dez anos. Na entrevista abaixo, Davis defende que “as mudanças para salvar o planeta devem envolver a redistribução do poder econômico e a redefinição dos padrões de consumo em níveis sociais e globais”.
Eis a entrevista.
Qual é a relação entre as mudanças climáticas das últimas décadas e a atual crise econômica?
Os desastres climáticos da última década quase destruíram a indústria global de seguradoras e contribuíram para a perigosa e recente inflação nos preços de grãos. Mas a mudança climática ainda não assumiu um papel central na geração de um colapso econômico, embora tal conjuntura seja previsível. Por outro lado, graças à crise e à campanha de Barack Obama, o “keynesianismo verde” emergiu como uma ideia poderosa que poderia reagrupar o movimento ambiental e os sindicatos em torno do investimento público no emprego, gerando investimentos públicos em infra-estrutura verde. Corporações lobistas, naturalmente, aceitam o slogan de que uma infra-estrutura verde está tão distante quanto a possibilidade de transformar uma política para indústrias de alta tecnologia e riscos capitalistas. Entretanto a simples introdução da ideia no discurso público é um progresso e oferece uma nova ligação entre verdes e trabalho.
O sr. acredita que o governo Obama irá tratar com mais responsabilidade que o governo George W. Bush os impactos da crise ambiental e climática?
Sim, e Obama não somente cooperará com a União Europeia e outros países que assinaram o Protocolo de Kyoto [tratado internacional que prevê a redução na emissão de gases poluentes na atmosfera], mas provavelmente abrirá um novo canal para negociações climáticas com os chineses. Contudo, é uma outra questão prever se as negociações produzirão resultados sérios. Os países europeus que tomaram a direção das negociações sobre o clima estão agora divididos internamente e indecisos, logo há expectativas fantasiosas – como sobre a economia e a capacidade de Obama de se tornar líder mundial. Mesmo nos EUA prometeu mais do que poderia, pois sua agenda de trabalho será moldada pelo Congresso. Além disso, ele comprometeu seu próprio programa ambiental ao demonstrar entusiasmo pelo “carvão limpo”. Pois os carros elétricos terão pouco impacto na redução do aquecimento global se a eletricidade continuar a ser produzida com carvão.
Diante da crise ambiental, que novo clima está a caminho?
Estamos vivendo em uma nova Terra. No próximo século, o sistema climático global será governado por níveis de acumulação de gases sem precedentes nos últimos 3 milhões de anos. A maior retenção da energia solar conduzirá a mais eventos climáticos extremos; contudo, e mais importante, reorganizará padrões de chuvas regionais e temperaturas, com grandes implicações para a agricultura irrigada e a qualidade da água consumida nas cidades. O papel de massas polares marítimas, produtividade agrícola, poluição urbana etc. complicará enormemente a constituição de climas futuros. Mas duas tendências estão claras: o aquecimento acelerado das altas latitudes do hemisfério Norte, com o consequente derretimento do gelo marinho, e a dramática expansão de regiões semiáridas nas latitudes médias. De acordo com os estudos de ponta de Richard Seager e sua equipe no Lamont-Doherty (laboratório da Terra da Universidade Columbia, nos EUA), as condições climáticas no sudoeste americano, no norte do México e, possivelmente, no leste do Mediterrâneo já estão mudando, com estações mais quentes e mais secas. Em muitos casos, o clima está mudando mais rápido do que a capacidade de adaptação de plantas e animais, provocando, desse modo, a extinção de espécies e simplificações ecológicas. É mais fácil, claro, visualizar os rápidos processos e as singularidades catastróficas – gigantescos furacões, secas épicas etc.- do que ver os aspectos mais lentos, porém ainda mais poderosos, da mudança do clima -diminuição gradual da produção agrícola, desertificação crescente etc.
A nevasca que caiu no Reino Unido no início deste mês foi a pior dos últimos 18 anos no país, paralisando aeroportos, o sistema de transportes e acarretando enormes prejuízos econômicos. As metrópoles serão os espaços que mais sofrerão com as mudanças climáticas?
Bem, clima atípico é clima. Os indícios científicos ligados ao aquecimento global não são visíveis apenas em algum caso particular. Por essa razão, um observador prudente hesitaria em atribuir a nevasca em Londres e mesmo o furacão Katrina [que destruiu a cidade de Nova Orleans, no sul dos EUA, em 2005] a uma mudança climática antropogênica. Por outro lado, a incidência de colapso dos sistemas urbanos por eventos climáticos extremos tem aumentado. Serão necessários trilhões de dólares para adaptar as cidades, mesmo as ricas, ao clima novo e “normal” que está chegando.
Na sua opinião, os programas de combate ao aquecimento global têm sido eficientes?
Não, falharam até em relação a expectativas modestas. Kyoto teve impacto insignificante, e as emissões de gases de 2000 a 2007 aumentaram mais rapidamente do que era previsto nos piores cenários. E há um otimismo público pequeno, em meio à crise econômica mundial, de que a conferência do clima de Copenhague [na Dinamarca, onde se discutirá, em dezembro, um acordo substituto para o Protocolo de Kyoto, que expira em 2012], produzirá uma continuação séria de Kyoto. Alguns países europeus, incluindo Alemanha e Itália, estão indo agressivamente atrás de carvão -o combustível fóssil mais sujo e mais barato. Precisamos de uma estratégia mundial para a adaptação ao aquecimento global, assim como a redução nas emissões de gases de efeito estufa. Mas, graças ao fracasso dos países ricos em reduzir as emissões, a maioria dos impactos ruins cairá sobre países mais pobres, com menos meios para adaptar seus sistemas agrícolas, recursos hídricos e ambientes construídos. Por isso é que devemos lutar para ganhar o reconhecimento da “dívida ecológica” que o Norte tem com o Sul: somente grandes transferências de renda podem permitir que os países mais pobres invistam em adaptações significativas (colheitas novas e irrigação de gotejamento, conservação da água urbana, energia solar etc.)
A defesa do ambiente exige a atuação conjunta de mudanças individuais de atitude e políticas públicas que alterem hábitos coletivos de consumo. Como implementar de maneira eficaz tais processos?
Promover uma ética verde em nível individual é importante, e nós deveríamos ser responsáveis pelos nossos impactos ecológicos. Não tenho nenhuma simpatia por ecologistas que querem salvar a Terra reduzindo a população humana a níveis pré-industriais, mas entendo a confusão sobre como traçar o círculo da sustentabilidade com a urgência do fim da pobreza.
Como todos sabemos, diversas Terras adicionais seriam exigidas para permitir que toda a humanidade viva em uma casa suburbana com um estilo de vida norte-americano, com dois carros e um gramado.
Minha própria solução abstrata para esse enigma, que será o assunto de meu próximo livro, é substituir, tanto quanto possível, o consumo público pelo privado. Acredito que a pedra angular da cidade do baixo-carvão, mais do que qualquer desenho verde ou tecnologia em particular, é a prioridade dada à afluência pública sobre a riqueza privada.
A maioria das cidades contemporâneas, em países ricos ou pobres, contém capacidades ambientais potenciais inerentes aos densos assentamentos humanos. O gênio ecológico da cidade permanece um poder vasto, quase sempre escondido.
Mas não há nenhuma deficiência planetária da sua “capacidade de carga” se nós estamos dispostos a fazer do espaço público democrático o motor da igualdade sustentável.
A afluência pública – representada por grandes parques urbanos, por museus livres, por bibliotecas e possibilidades infinitas para a interação humana – representa uma rota alternativa para um rico padrão de vida personificado em uma carnavalesca sociabilidade.
O Brasil, apesar de suas gigantescas desigualdades, tem sido um laboratório avançado para as experiências que unem democracia popular, economia verde e espaço público.
(Ecodebate, 17/01/2009) publicado pelo IHU On-line, 16/01/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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