Como entender a cultura indígena e suas transformações? Entrevista com Roberto Liebgott e Iara Bonin
Na opinião do casal Roberto Liebgott e Iara Tatiana Bonin, coordenadores da equipe do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Região Sul/Porto Alegre, “a condição primordial para qualquer relação respeitosa que se pretenda com os povos indígenas é a demarcação e garantia de suas terras”. Infelizmente, eles acrescentam, “todas as referências culturais e as formas de representação que produzimos sobre os povos indígenas nos levam a pensar que eles são frágeis, menos desenvolvidos, menos cultos, menos civilizados, menos dispostos ao trabalho, e que suas culturas são primitivas, menos complexas, menos valiosas”. As afirmações foram feitas em entrevista por e-mail à IHU On-Line. E eles enfatizam: “A grande questão é que somos impelidos a pensar a existência indígena em função de nossa própria existência”.
Iara Bonin é graduada em Pedagogia, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Educação, pela Universidade de Brasília (UnB), e doutora em Educação, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, é professora da Universidade Luterana do Brasil, no Programa de Pós-Graduação em Educação. Confira uma entrevista com Roberto Liebgott publicada no sítio do IHU em 02-05-2007, intitulada “A luta dos povos indígenas continua”, e outra, publicada em 03-04-2008, intitulada “Os arrozeiros representam o enclave da violência”.
IHU On-Line – Como o índio se relaciona com a cultura do “homem branco” atual? Quais são os principais pontos de conflito ou de convergência entre essas culturas?
Roberto Liebgott e Iara Bonin – O Brasil é, entre todos os países no mundo, um dos mais privilegiados em termos de pluralidade de povos e de culturas. São pelo menos 240 povos indígenas diferentes e que falam mais de 180 línguas, tendo uma população de 734 mil pessoas (de acordo com o censo IBGE de 2000). Esta pluralidade não pode ser ignorada e torna-nos responsáveis em assegurar, na organização do Estado Brasileiro, um conjunto de garantias legais voltadas para o respeito, a proteção e a promoção dos direitos indígenas. Neste sentido, a Constituição Federal em vigor determina que os povos têm o direito de serem diferentes, ou seja, o Estado reconhece suas culturas, crenças, tradições, organização social e fundamentalmente o direito a demarcação de suas terras. O relacionamento dos povos indígenas com a sociedade envolvente tem sido, ao longo dos mais de 500 anos de Brasil colonizado, de intensos conflitos em função da negativa de direitos por um lado (Estado Brasileiro), e de luta por direitos pelo outro (povos indígenas). Nesta relação de embate, os povos foram sendo sistematicamente agredidos fisicamente, etnicamente e territorialmente. O processo de colonização das terras brasileiras esteve fundado na noção de limpeza étnica, inicialmente por estratégias de extermínio, posteriormente por estratégias de integração forçada à dita “comunhão nacional”. Não havia saída para os povos indígenas a não ser a resistência, uma vez que seus territórios foram sendo gradativamente invadidos ou oficialmente ocupados, processo que gerou incontáveis violências. É inegável que povos indígenas resistiram. Se não fosse assim, teriam sido exterminados ou integrados ao longo desses mais de 500 anos.
Protagonismo indígena
Esta lógica integracionista e assimilacionista perdurou até os anos 1970, quando os povos indígenas, com apoio significativo da Igreja, de organismos internacionais de entidades e de movimentos, desenvolveram um processo intenso de articulação e mobilização, através das grandes assembléias indígenas. Constitui-se, nessa década, um dos marcos importantes do exercício do protagonismo indígena frente ao Estado brasileiro, o que se concretizou no texto constitucional em 1988. Apesar dos avanços, os conflitos são persistentes, e cotidianamente acompanhamos as ofensivas de grupos detentores de poder econômico e político contra os direitos constitucionais dos povos indígenas, de modo mais direto na demarcação das terras. A intolerância estabelecida contra os povos indígenas se evidencia sempre que terras indígenas são reivindicadas para a demarcação e sobre as quais o poder público passa a desenvolver o devido procedimento administrativo que assegura a posse e o usufruto indígena. Nestes períodos e contextos, tornam-se evidentes as relações de preconceito, bem como as violências, o que deixa claro o fato de que os povos indígenas são tolerados na medida em que não estejam ao nosso lado, disputando direitos.
IHU On-Line – Um relatório da Funai de 2007 indica que existem cerca de 67 grupos indígenas vivendo em completo isolamento. O senhor acredita que as comunidades indígenas devam permanecer isoladas, ou devem ser fomentados o contato e uma possível “inculturação” delas com a sociedade branca?
Roberto Liebgott e Iara Bonin – O Cimi, desde a sua fundação em 1972, tem desenvolvido ações no sentido de que as terras dos povos indígenas, de modo especial na Amazônia, onde vivem povos que não estabelecem contatos com a sociedade do entorno, sejam demarcadas e protegidas. As informações de que dispomos é de que estes povos não querem o estabelecimento de relações com a nossa sociedade. Por experiências traumáticas anteriores, ou por relatos de outros povos indígenas com os quais eles se relacionam, estes povos intuem que, aproximando-se de nossa sociedade, eles sofrerão os impactos sobre sua vida, as suas culturas, e sobre seus territórios. Em nossa opinião estes povos têm o direito de escolher qual o caminho que pretendem seguir, e nós, como sociedade, não devemos impor aos outros nossas próprias regras. O que podemos fazer é lutar para que as terras desses povos sejam protegidas de invasões, e esta é uma responsabilidade do Estado, prevista na Constituição Federal. Defendemos, então, que a eles sejam assegurados os direitos de proteção, demarcação e fiscalização das terras, tal como se assegura, na Constituição, a qualquer povo indígena do país. Nós precisamos aprender a respeitá-los na sua alteridade radical – ou seja, aceitar que eles possam exercer seu direito à diferença e as formas próprias de viver sem a intervenção ou a imposição de uma “harmoniosa integração”.
IHU On-Line – Por que houve um aumento no número de suicídios entre a comunidade indígena? São apenas fatos isolados? Falta atenção aos índios por parte do governo e da sociedade em geral?
Roberto Liebgott e Iara Bonin – O suicídio não é prática comum entre os povos indígenas. Pensamos que seja muito mais o resultado de condições desfavoráveis, que tornam vulneráveis as pessoas e a coletividade. Historicamente, a luta e a resistência dos povos indígenas têm sido motivadas pela vida e pela garantia de futuro. No entanto, em algumas realidades, como vem sendo amplamente divulgado, alguns índios praticam suicídio. Nos últimos anos, temos presenciado essa prática entre os Kaiowá-Guarani, no Estado do Mato Grosso do Sul e também em outros povos. De 2006 para cá, ocorreram 74 suicídios indígenas. Podemos afirmar, nesses casos, que os povos indígenas vivem situações-limite, ou seja, eles vivem em contextos que não possibilitam as práticas coletivas que instituem e regulam suas culturas, estão submetidos a condições desumanas, em terras exíguas, em situações de confinamento, em acampamentos provisórios na beira das estradas. O caso mais dramático é, sem dúvida, o dos Kaiowá-Guarani. As terras que hoje ocupam não possibilitam as mínimas condições de construir perspectivas de vida com dignidade. Este povo teve, ao longo das últimas décadas, suas terras saqueadas, loteadas e devastadas, entregues para a criação do gado, plantio da cana e da soja. Confinados, lutam pela demarcação. A pressão social sobre a população, de modo especial sobre os mais jovens, é intensa e na situação em que se encontram não vislumbram perspectivas de futuro. E, para algumas pessoas, a busca da terra sem mal se transporta para uma outra esfera, que não faz mais parte da vida material, e projeta-se a esperança para um mundo sem os males, alcançado pelo suicídio.
Dezenas de estudos estão sendo realizados para tentar compreender este fenômeno do suicídio existente entre os Kaiowá, e na quase totalidade dos estudos e pesquisas se constata que o problema está relacionado com a falta de terra. Ou seja, o saque e o loteamento dos territórios tradicionais deste povo os remetem para uma história de dor e sofrimento, que somente será sanada quando parcelas significativas do antigo território tradicional dos Kaiowá forem demarcadas e asseguradas e sobre o qual este povo consiga viver.
Responsabilidade dos governos
O poder público, através de seus órgãos responsáveis, é o responsável por estas mortes e pelo sofrimento imposto aos povos indígenas, uma vez que só a ele compete a responsabilidade de demarcar, garantir e fazer respeitar os bens indígenas, e aí podemos afirmar que a vida é o bem maior que o Estado brasileiro deveria resguardar. Especificamente no Mato Grosso do Sul, é gritante a omissão e negligência do governo federal no tocante à demarcação das terras e na assistência a população indígena. Gostaríamos de destacar também que a negligência do governo federal e a situação de confinamento em terras ínfimas têm sido responsáveis pelo alarmante aumento de casos de assassinato naquele estado. Para se ter uma idéia, só no ano de 2007 foram registrados 92 assassinatos de indígenas em todo o país, sendo que 53 deles ocorreram no Mato Grosso do Sul, ou seja, mais da metade dessas mortes. Neste ano de 2008, que mal começou, registram-se 14 assassinatos e 13 suicídios entre os Kaiowá-Guarani. A solução para este tipo de violência não será encontrada em estudos psicológicos, antropológicos, teológicos, que escrutinam os sujeitos e nele buscam os desajustes sociais. A solução será decorrência de um adequado tratamento a estes povos, assegurando-lhes a posse de suas terras, a restauração de condições ambientais, o estabelecimento de relações respeitosas com eles, enfim, o cumprimento das garantias estabelecidas na Constituição. Neste caso, não se espera do governo brasileiro mais do que o cumprimento de suas obrigações, sem subterfúgios, colocando a vida dos povos indígenas como uma prioridade que não se negocia por razões econômicas e políticas.
IHU On-Line – Há um conflito permanente acerca da demarcação de terras indígenas. Qual é a maior dificuldade para demarcá-las?
Roberto Liebgott e Iara Bonin – As terras indígenas sempre foram objeto de cobiça por parte de setores econômicos da sociedade aliados aos governos em todos os âmbitos. Ao longo de toda a história do Brasil, foi desencadeado um processo de exploração das terras, de seus recursos ambientais, minerais e hídricos. Aquelas populações que estivessem na ocupação de áreas de interesse destes setores eram obrigadas a ceder e entregar as terras para exploração. Quem se negava a efetuar a entrega era perseguido e paulatinamente expulso. No que se refere aos povos indígenas, a violência foi extrema. Povos dizimados, populações removidas e confinadas em pequenas reservas, genocídio e etnocídios foram praticados. Hoje, não é muito diferente. A terra é uma ambição pelo seu valor comercial, pelas riquezas estratégicas que nelas se encontram, ou pelo seu potencial agrícola e agropecuário. E aqueles que sobre estes espaços economicamente importantes estão assentados precisam ser removidos. Os povos indígenas que têm direitos constitucionais sobre as terras que tradicionalmente ocupam são vistos ainda como entraves, empecilhos ou, como o próprio presidente da República se referiu a eles, são “penduricalhos que precisam ser removidos”. E é com essa concepção que se pratica o indigenismo oficial, colocando em primeiro plano os interesses econômicos, desenvolvimentistas, que se baseiam na exploração das terras e na acumulação de bens e capitais, e em segundo plano os direitos individuais e coletivos.
IHU On-Line – Qual seria a saída mais pacífica para a questão dos territórios das reservas indígenas, como a que se vê nas disputas em Raposa Serra do Sol?
Roberto Liebgott e Iara Bonin – Na verdade, não existe uma alternativa mais ou menos pacífica no que se refere à demarcação de terras indígenas. O que está estabelecido, de um lado, é o direito que os povos indígenas têm e que necessariamente devem ser assegurados e respeitados. Do outro lado, há aqueles interesses e interessados na lucratividade das terras. Os direitos e os interesses se confrontam e cabe ao poder público a solução do “conflito”, ou seja, demarcar as terras, afastar os invasores, indenizar os ocupantes de boa fé e proteger e fiscalizar as terras demarcadas. Aqueles insatisfeitos, se agirem violentamente e na ilegalidade, devem ser responsabilizados pela prática de crimes. Vale aqui ressaltar que estas terras, depois de demarcadas, serão para o usufruto exclusivo do povo a que determinada demarcação corresponder e a propriedade da terra é da União. Portanto, a União é a dona da área, e os povos indígenas não poderão vender, doar, alienar, arrendar estas terras, ficando elas disponíveis para o seu usufruto permanente e exclusivo. Além disso, todos os títulos que incidem sobre as terras demarcadas são declarados nulos. O embate existente hoje na Reserva Raposa Serra do Sol no estado de Roraima é o exemplo mais contundente daquilo que não deve acontecer no âmbito da administração pública, do desrespeito à Constituição Federal e da impregnação de interesses políticos e econômicos no âmbito das discussões jurídicas. Portanto, se evidencia uma espécie de promiscuidade entre a política, a economia e o governo na tentativa de desqualificar os direitos imemoriais dos povos indígenas Macuxi, Wapixana, Taurepang, Ingaricó, habitantes da Raposa Serra do Sol e favorecer meia dúzia de arrozeiros invasores da terra indígena.
IHU On-Line – Na sua avaliação, como a sociedade e o governo brasileiros poderiam tratar e proteger melhor sua população indígena?
Roberto Liebgott e Iara Bonin – Acreditamos que a condição primordial para qualquer relação respeitosa que se pretenda com os povos indígenas seja a demarcação e garantia de suas terras. Não há como assegurar a vida, a cultura, a existência digna desses povos fora de seus territórios. Mas, evidentemente, esta garantia não é suficiente. É preciso estabelecer com os povos indígenas relações que tenham como ponto de partida a valorização e o respeito por suas maneiras de viver. Infelizmente, todas as referências culturais e as formas de representação que produzimos sobre os povos indígenas nos levam a pensar que eles são frágeis, menos desenvolvidos, menos cultos, menos civilizados, menos dispostos ao trabalho, e que suas culturas são primitivas, menos complexas, menos valiosas. Tudo isso precisa ser problematizado. A grande questão é que somos impelidos a pensar a existência indígena em função de nossa própria existência. Neste caso, afirmamos a tolerância para com eles, mas nunca nos perguntamos quem somos nós para tolerar, aceitar ou permitir que eles vivam do modo que desejarem. Em outras palavras, quando dizemos que devemos tolerar suas formas de vida, estamos afirmando uma relação de poder na qual nós é que determinamos o que pode e o que não pode ser. Nós é que damos as cartas, como, aliás, sempre fizemos. E aí somos impelidos a pensar na riqueza e variedade das culturas indígenas como contribuições para a nossa própria cultura, destacando o seu exotismo, a sua vitalidade, os conhecimentos medicinais, o uso terapêutico das plantas etc., como coisas que podemos com eles aprender.
Refletir sobre nossas “verdades”
Um bom começo para repensarmos as bases dessa relação seria reconhecermos que os povos indígenas possuem suas formas próprias de viver, e isso independe de nossa aprovação, aceitação ou tolerância. De nós, eles não esperam mais do que o respeito aos seus direitos, aos seus bens territoriais e culturais. E, para que possamos construir relações menos preconceituosas, menos etnocêntricas, também consideramos necessário empreender uma grande revisão nas formas como contamos a história brasileira, no modo como produzimos uma narrativa que posiciona os povos indígenas de maneira subordinada. Ainda falamos em “descobrimento do Brasil”, apesar de sabermos da infinidade de culturas e povos que aqui viviam antes da chegada dos europeus; ainda aprendemos sobre um suposto “encontro harmonioso” entre índios, negros e brancos, quando referimos a “origem” do povo brasileiro, mesmo sabendo que o que se seguiu foi um grande genocídio; ainda colocamos os povos indígenas em um lugar subordinado, como uma parte (fraca) na produção dessa nação. Refletir sobre essas e outras “verdades” que aprendemos a reconhecer como legítimas e incontestáveis é uma tarefa urgente que devemos assumir. Também é importante pensarmos nos modos como construímos imagens sobre os povos indígena no cotidiano, na televisão, no cinema, nas piadas, nos jornais, nas revistas, na literatura, nos livros didáticos e em outros meios. Em geral, produzimos representações genéricas, descontextualizadas que, de um lado, homogeneizam e esvaziam o sentido das práticas culturais indígenas e, de outro, celebram um certo exotismo e um purismo que nos faz suspeitar que os índios que encontramos no dia-a-dia estejam “deixando se ser índios”. Ou seja, inventamos uma imagem de índio para nós mesmos e acreditamos tanto nela que consideramos inaceitável que os povos indígenas sejam diferentes, vivam diferente, pensem diferente daquilo que inventamos como sendo o “natural” para eles.
IHU On-Line – A Constituição brasileira está fazendo 20 anos. O que ela representou para os índios, com relação a seus direitos e deveres?
Roberto Liebgott e Iara Bonin – A Constituição reconhece aos povos indígenas um conjunto de direitos. Destaca-se, de maneira especial, a mudança na perspectiva de relacionamento com estes povos, ou seja, não mais a integração como meta, mas o reconhecimento de suas culturas, línguas, crenças, formas de organização e a atribuição de responsabilidade direta ao Estado brasileiro pela proteção e respeito aos bens materiais e culturais indígenas. Um marco fundamental, na Constituição, é o reconhecimento da pluralidade étnica e do protagonismo indígena, especialmente no âmbito das políticas públicas. No entanto, é importante ressaltar que, a partir da Constituição, o Congresso já deveria ter aprovado um novo Estatuto dos Povos Indígenas. Neste sentido, tramita um Projeto de Lei há mais de 14 anos. O que nos leva a considerar que, por parte dos poderes executivo e legislativo, não existe efetivamente um interesse em assegurar a consecução dos direitos dos povos indígenas. Muitas coisas foram realizadas desde 1988, mas elas têm se direcionado muito mais à assistência do que à garantia efetiva das condições de vida indígena.
IHU On-Line – Alguns projetos de lei sugerem a criação de cotas para índios em concursos públicos e em universidades. Qual é a importância dessa questão para os indígenas?
Roberto Liebgott e Iara Bonin – Inicialmente, é importante registrar que, para alguns povos indígenas, a escola é uma realidade muito antiga. A escolarização foi implantada como estratégia para a integração indígena e, posteriormente, passou a ser assumida em diferentes contextos como ferramenta de luta, a serviço dos interesses dos próprios índios. Nestes contextos, é comum a reivindicação da oferta de educação escolar como forma de garantir que eles tenham seus próprios enfermeiros, professores, e também médicos, advogados e pesquisadores. É uma reivindicação antiga a existência de cursos de ensino superior destinados especificamente aos povos indígenas, fato que se concretiza em alguns estados – Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Amazonas, Roraima, por exemplo, com a criação de cursos de licenciatura Mura, Guarani , Macuxi, entre outros. De uma maneira geral, o acesso à universidade, para os povos indígenas, se dá através dos cursos já instituídos, nos quais eles ingressam depois de prestarem vestibular. A reivindicação de cotas não supõe a supressão das formas de avaliação e de seleção. O que se reivindica é o estabelecimento de algumas condições que levem em conta as diferenças. Neste sentido, as cotas seriam estratégicas para assegurar as mesmas condições de realização desta seleção, para pessoas que vêm de realidades diferenciadas.
IHU On-Line – Se partíssemos de um “perspectivismo amazônico”, como alguns estudiosos propõem, que análise o índio faria da realidade da atual “sociedade branca civilizada”?
Roberto Liebgott e Iara Bonin – Em primeiro lugar consideramos importante registrar que não é possível pensar numa “perspectiva do índio” para “ler” a nossa cultura, simplesmente porque “o índio”, essa invenção genérica, única, invariável, só existe em nossas representações. Seria então necessário falarmos de “uma perspectiva Guarani”, “uma perspectiva Kaingang”, “uma perspectiva Guajajara”, “uma perspectiva Ticuna”, e assim por diante. O que desejamos ressaltar é que não existe uma cultura indígena universal, com categorias que poderíamos conhecer, ordenar, estruturar e colocar “sob controle”. O que existe são culturas, no plural, cada uma construindo e reconstruindo continuamente suas visões de mundo, suas crenças, suas condutas, prática culturais, e formas de relacionamento com as outras culturas. Neste sentido, podemos considerar alguns argumentos utilizados por índios de um determinado povo, especificamente daqueles com os quais tivemos a possibilidade de conviver. Temos ouvido, ao longo desses anos, diversas afirmações contundentes de indígenas, acerca de nossa sociedade. Talvez a mais perturbadora interrogação que alguns deles nos fazem seja a seguinte: “Como podem deixar suas crianças morrer de fome, quando se produz tanto alimento? Como podem ver suas mulheres e crianças revirando latas de lixo, pedindo esmolas, sendo que se produzem tantas riquezas?”. E a essa interrogação segue-se, muitas vezes, a afirmação: “Por isso, nós lutamos para ter nossas terras demarcadas. Não quero ver meu povo sofrendo, solto por aí, porque no mundo dos brancos não tem lugar nem para os próprios brancos”.
Uma cultura coerente
De muitas maneiras, essas pessoas com as quais trabalhamos insistem que suas formas de vida, seus conhecimentos, suas organizações sociais não são “simples”, nem “primitivas”, nem “precárias” ou “ultrapassadas”, como se costuma pensar, mas que possuem coerência, consistência, força, racionalidade, dinamicidade. E esses ensinamentos não se dão em momentos formais, mas em conversas cotidianas, em histórias relatadas, em explicações e aconselhamentos dos anciãos, no dia-a-dia dessas vidas que, para a maioria dos índios no Brasil hoje, ocorre em interação com espaços urbanos. Ao confrontar alguns dos estereótipos que produzimos sobre eles, os povos indígenas manifestam também, de certo modo, suas impressões sobre nossa sociedade e sobre nossa cultura. Cabe-nos, então, a crítica radical às formas pelas quais colocamos em ação mecanismos (acadêmicos, midiáticos, jurídicos, políticos) que subordinam as culturas indígenas. Um bom começo é prestar mais atenção aos modos como nos referimos a eles, e reconhecer então que a maioria dos estereótipos que produzimos serve para nos tranqüilizar, confirmar nossa suposta superioridade, nossa convicção de que sempre estamos certos e que o problema está nos outros. Basta ver como facilmente nos sentimos autorizados a definir quem são os índios, onde devem viver, como devem viver, o que podem desejar para seu futuro, o que nos leva a pensar que os direitos indígenas são uma espécie de concessão ou dádiva de nossa sociedade para com as deles, ou ainda como inaceitável tipo de privilégio e, por conseguinte, continuamente questionado.
(Ecodebate, 03/02/2009) publicado pelo IHU On-line [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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