A luta contra Belo Monte no Fórum Social Mundial 2009, artigo de Rodolfo Salm
[Correio da Cidadania] Participei recentemente de uma reunião muito interessante, preparatória do 9º Fórum Social Mundial, na sede da FVPP (Fundação Viver Produzir e Preservar), em Altamira. Os representantes das populações indígenas, ribeirinhas, extrativistas, dos agricultores e dos movimentos sociais da bacia do rio Xingu pretendem fazer no Fórum uma reedição, ampliada, do encontro Xingu Vivo Para Sempre, realizado aqui em maio do ano passado. E assim, denunciar para o mundo as ameaças ao rio, decorrentes do modelo de desenvolvimento planejado para a região.
A sala estava lotada, com cerca de trinta ou quarenta lideranças (todos ali eram representantes de um movimento, associação ou localidade) – havia também alguns religiosos. A etapa de apresentações levou mais de uma hora. Mas foi particularmente interessante, pois contou com a participação do documentarista alemão Matin Kessler, que veio ao Brasil para documentar os protestos de repúdio ao projeto de construção da hidrelétrica de Belo Monte no Xingu que acontecerão no FSM que se aproxima. O documentarista filmou cada uma das apresentações, registrando as preocupações em relação à construção da hidrelétrica.
A maior parte dos depoimentos vinha de moradores da Volta Grande do Xingu, que seriam diretamente afetados pela barragem. Esta região tem uma importância histórica especial, pois foi em Altamira que se iniciou a construção da Rodovia Transamazônica, e muitos dos primeiros colonos que para cá vieram, na década de 1970, instalaram-se justamente na região da Volta Grande. Hoje, aqueles colonos e seus descendentes, os primeiros a acreditarem no sonho de país que se prometia na década de 1970, e que tinha na Transamazônica um de seus símbolos principais – justamente eles, reparem que ironia -, temem ter que deixar as suas terras melhoradas à custa de tantos sacrifícios. Novamente em busca de um “desenvolvimento” que nunca chega. E que não chegará com a barragem.
Num jogo de empurra-empurra que já começou, a Eletronorte diz que a realocação dos desabrigados não é problema dela. O que é um mau começo se ela pretendia estabelecer ao menos uma imagem socialmente positiva, especialmente na região. A maior parte dos moradores nem tem títulos oficiais de suas terras. Então nem direito à indenização teriam. E mesmo que ganhassem lotes de terra equivalentes, não teriam os seus pés de cacau cultivados ao longo de tantos anos, como vários deles disseram.
Um aspecto particular, bastante comentado, foi a questão das muriçocas ou pernilongos, que devem proliferar-se num grande trecho do rio abaixo da barragem, onde o fluxo será permanentemente reduzido. Isto porque boa parte da água será desviada para canais que cortam a volta do rio, onde serão instaladas várias das turbinas, só retornando abaixo da Volta Grande. O Xingu é um rio extremamente pedregoso e, com a descida do nível das águas, criam-se piscinas ideais para a proliferação das larvas.
Além disso, a descida no lençol freático da região, sozinha, já deve matar uma boa quantidade de árvores. Imaginem então o efeito desta mudança sobre a intensidade das secas na região. Os moradores da Volta Grande, que atualmente estão muito bem adaptados àquela região, passariam, com a criação da barragem, imediatamente a enfrentar escassez de água e uma explosão populacional de mosquitos. Já nós, em Altamira, que ficaríamos acima da barragem, sofreríamos com uma cheia constante que, além da destruição do rio e das praias (com enorme potencial turístico), comprometeria o funcionamento das fossas e do escoamento da rede de esgotos. Sobre os supostos benefícios da hidrelétrica, a Irmã Ignêz Wenzel, da Prelazia Xingu, falou: “Queremos receber os royalties do oxigênio e não de uma água podre”.
Na minha vez de me apresentar, falei rapidamente sobre a minha preocupação especial com a multiplicação dos acessos rodoviários nas regiões das barragens (ou as benfeitorias em estradas já existentes), que desencadeiam catastróficos e incontroláveis processos de colonização e degradação ambiental. No caso específico de Belo Monte, para a construção da usina será necessária a pavimentação da Transamazônica e isso sozinho já terá um efeito devastador sobre a região. Altamira ainda é uma cidade tranqüila, com baixa criminalidade e poucos carros nas ruas. E isso só acontece porque estamos “protegidos” por centenas de quilômetros de estradas de terra, sem contato por asfalto. Com a construção da hidrelétrica, que, estima-se, atrairia para a região cerca de 100 mil pessoas (mais do que a população atual do município), e a pavimentação da Transamazônica, o estado de relativa tranqüilidade e preservação ambiental em que vivemos mudaria radicalmente em poucos anos.
Este é o argumento central (nunca respondido) de um antigo debate que tenho no Correio da Cidadania com o consultor no campo da energia, Joaquim Francisco de Carvalho (ver A hidrelétrica de Kararaô e os movimentos populares), que defende o aproveitamento hidroelétrico dos rios amazônicos para satisfazer a futura demanda brasileira por eletricidade. Na edição 328, de 2003, ele escreveu: “Os rios amazônicos permitirão que o Brasil satisfaça a demanda por eletricidade nas próximas décadas, sem recorrer em grande escala a usinas termelétricas a carvão, óleo ou gás natural, que lançam na atmosfera muitos poluentes e gases de estufa, como o gás carbônico”. Esta projeção é o pesadelo para quem sabe dos impactos das hidrelétricas e se preocupa com a preservação da floresta. E seguiu defendendo, especificamente, a construção de Belo Monte, no Xingu, o que me perturbou especificamente pela minha vivência nas terras dos índios kayapó, e ainda mais agora que vivo em frente ao rio, na área que seria afetada pela barragem.
É interessante como este argumento aparece agora com crescente força à medida que o debate acerca da construção das hidrelétricas na Amazônia esquenta. A idéia de que o combate às hidrelétricas é responsável indireto pela poluição das termoelétricas foi o ponto central do editorial da Folha de São Paulo de 8 de janeiro deste ano (“Energia poluidora”). O texto refere-se ao Plano Decenal de Expansão de Energia, divulgado maliciosamente pelo governo no apagar das luzes de 2008 e que prevê a criação de quase uma centena de unidades termelétricas até 2017, mais que dobrando o número atual, e triplicando as emissões de gás carbônico do setor. Para a Folha, os dados indicam que a expansão da matriz energética “caminha na contramão dos esforços para minimizar os efeitos do aquecimento global, que podem ser obtidos sem a utilização do combustível fóssil – com a hidroeletricidade, por exemplo”.
E concluíram “os radicais do ambientalismo (como aqueles senhores e as senhoras da reunião a que assisti, preocupados com o rio, com a multiplicação das muriçocas e a destruição das suas roças de cacau), quando bloqueiam a exploração racional (quem julga o que é ou não racional?) da bacia amazônica, ajudam a despejar toneladas adicionais de gás carbônico na atmosfera”. Isso porque o plano prevê que a fonte hídrica deverá cair na participação na matriz elétrica, mesmo com a construção prevista de 71 novas hidrelétricas, Belo Monte entre elas. Reparem que mesmo com a derrota dos índios, ribeirinhos e ambientalistas e a construção da hidrelétrica de Belo Monte – além de várias outras, diversas das quais com seus problemas ambientais e sociais particulares -, ainda somos acusados pela construção das termelétricas. Claro, porque se não fosse o barulho dos ambientalistas, não estaria oficialmente prevista “apenas” a construção de Belo Monte, mas de toda a sequência de barragens que sabidamente se planeja para este rio, uma vez que esta resistência inicial seja quebrada. Resultando não apenas na morte do rio, mas na destruição completa de toda a metade oriental da floresta amazônica.
As hidrelétricas geralmente não são limpas porque trazem desmatamentos em grande escala com muita emissão de carbono. Além do mais, elas mesmas lançam para a atmosfera grandes quantidades de gases causadores do efeito estufa. Está claro que, ao invés de se pensar em expandir obsessivamente a matriz energética a todo custo, na verdade devemos tentar torná-la mais limpa, substituindo as fontes mais poluidoras por outras realmente limpas, sem mencionar a redução do consumismo, causa básica de todo este frenesi por energia. É evidente que há de se reduzir o consumo, pois até mesmo as fontes mais limpas, como seria a eólica, alimentam um sistema falido de produção e consumo insustentável.
Reduzir a demanda por energia. Essa é a verdadeira meta. Se isso é o óbvio ignorado ou um delírio de “ambientalista radical” vai de cada um. Acredita-se ou não que “outro mundo é possível”. A luta contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte no Xingu é uma questão da maior importância para a toda a humanidade e o 9º Fórum Social Mundial, em Belém (que é o portão de entrada da floresta amazônica), é uma oportunidade de ouro para dar a ela a evidência que merece.
Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da Universidade Federal do Pará.
*Artigo enviado pelo Autor e originalmente publicado no Correio da Cidadania, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[EcoDebate, 24/01/2009]
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