Um modelo de consumo a serviço do capitalismo e do patriarcado, artigo de Esther Vivas
Imagem: Corbis/Charles Waller
[Ecodebate] O atual modelo de consumo é resultado da evolução histórica do sistema de produção capitalista que, como dizia Marx, se baseia na produção generalizada de mercadorias. A sociedade de consumo contemporânea nasce com o advento da produção de massas fordista e com a implementação das políticas keynesianas, depois da 2ª Guerra Mundial, que permitiram um aumento do nível de vida da classe trabalhadora e dos setores populares, assim como seu conseqüente acesso ao consumo de massa.
A própria lógica do sistema capitalista gera a criação artificial de necessidades de consumo, com o objetivo de manter um nível de produção constante. Cria-se a percepção de que necessitamos mais para viver melhor e aparecem novos produtos que se tornam indispensáveis e que fomentam uma cultura do gasto permanente. Trata-se de um modelo de produção que se baseia na obsolescência planejada dos produtos e da inovação constante: a vida dos produtos é cada vez mais curta ao mesmo tempo em que aparecem outros com novas características.
Em definitiva, dá-se uma produção e um consumo massivo de mercadorias que é insustentável social e ecologicamente. Se todo o mundo quisesse viver tendo como base a média do Estado espanhol necessitaríamos o equivalente a três planetas Terra e uma pegada ecológica de cinco hectares e quatro de cultivos, pastos, bosques e mar para cada um de nós, ao passo que no planeta dispomos de menos de dois hectares por indivíduo.
O modelo de consumo vigente, seguindo Marx, converte as mercadorias em “pessoas”, ao passo que, paradoxalmente, as relações entre as pessoas se mercantilizam e se “coisificam”. Segundo os analistas clássicos marxistas, o capitalismo transforma as relações entre as pessoas como se fossem relações entre coisas e, por outro lado, se personifica as mercadorias. É dessa maneira que os produtos tomam vida para além de seu valor estritamente material.
Ao mesmo tempo a dinâmica do capitalismo neoliberal se baseia na mercantilização de todos os âmbitos da vida, que passam a ser regidos por critérios de mercado, transformando os cidadãos e as cidadãs em clientes. As pessoas são identificadas como consumidoras e clientes submissos que aceitam as regras do mercado e que se sentem realizadas a partir do consumo. Trata-se de anular o caráter de cidadania crítica, com consciência política e social, e utilizar o consumo como uma via para a evasão e a alienação.
Um dos instrumentos centrais deste modelo de consumo é a publicidade, que estimula permanentemente nossos sentidos com o objetivo de aumentar as vendas. A publicidade, muitas vezes através da televisão, é que nos serve na mesa o que temos que comer, comprar, vestir… E nos cria modelos de consumo com os quais nos sentimos identificados e acabamos consumindo para “ser aquilo que compramos”, vendendo-nos um estilo de vida.
A centralidade da mulher
Mas, neste modelo de consumo, qual é o papel da mulher? Se tomarmos os dados de um estudo realizado pela revista norte-americana Business Week (14-02-2005), nos Estados Unidos, as mulheres entre 24 e 54 anos, cerca de 55 milhões, são as que realizam 80% das decisões de compra tomadas no núcleo familiar, apesar de receberem menos dinheiro que os homens (por cada dólar que um homem ganha nos Estados Unidos, a mulher recebe 78 centavos).
É preciso considerar, como indica o relatório, que o poder de compra das mulheres nos Estados Unidos aumentou substancialmente nos últimos trinta anos. Neste período, a média dos ingressos dos homens cresceu apenas 0,6% enquanto que a das mulheres aumentou até 63%. Além disso, o relatório indica que 30% das mulheres trabalhadoras nos Estados Unidos ganham mais que seus companheiros. É neste contexto, aplicável com matizes a outros países do Norte, que as mulheres emergem como uma potente força no mercado, mudando a maneira como as companhias desenham, posicionam e vendem seus produtos.
Mas, de que modelo de “mulher compradora” estamos falando? Em última instância, trata-se de um modelo delimitado pelos parâmetros do sistema capitalista e patriarcal: “mulher para consumir mais” e “mulher que consome para”.
Em primeiro lugar, podemos identificar o sujeito “mulher dona de casa”: compradora de produtos para o lar, com o objetivo de manter o bom funcionamento da casa. Em segundo lugar, “mulher mãe”, aquela que se encarrega da família e compra o melhor para os seus: alimentos, vestidos… Em terceiro lugar, “mulher esposa”, aquela que se ocupa das compras para o marido. Por último, não podemos esquecer o modelo de “mulher compradora para si mesma”, ainda que na maioria dos casos, compradora de produtos de beleza ou de vestir para estar mais elegante, mais jovem, mais magra, com menos rugas… seguindo o padrão de beleza feminino do sistema capitalista e patriarcal. E tudo isso sem falar do uso instrumental que a publicidade faz da mulher como objeto para vender mais.
Portanto, o atual modelo de consumo não só é insustentável, gerador de necessidades, supérfluo… mas que reforça o sistema patriarcal. Um modelo de consumo que reconhece várias facetas de mulher (dona de casa, mãe, esposa…), mas que permite tão somente um tipo de feminidade subjugada ao sistema de dominação patriarcal.
Mudança de sistema
Ao colocar a necessidade de uma mudança de modelo de consumo é fundamental que partamos de uma estratégia de ação coletiva. Freqüentemente se fala do poder individual do consumidor, da estratégia dos boicotes de determinados produtos, mas é preciso reconhecer que uma mudança no modelo de consumo implica uma mudança estrutural que só será possível a partir da organização coletiva.
Como assinala Albert Recio (Consumo responsable: una reflexión crítica, em Mientras Tanto, n. 99), é necessário desenvolver meios de debate, de participação e de ação coletiva que vão além das respostas individuais, uma vez que as propostas para um consumo responsável têm que se situar num marco mais amplo de mudança social. É preciso ter presente que o modelo de consumo individualiza o consumidor, e é aqui que as campanhas para um consumo alternativo têm que atuar. É fundamental desenvolver amplas iniciativas em aliança com outros movimentos sociais de consumidores, camponeses, trabalhadores… que nos permitam ir definindo um outro modelo de consumo hoje mais necessário que nunca. É neste sentido que temos que promover campanhas, com forte visibilidade pública, que denunciem o modelo de consumo vigente e proponham alternativas.
O peso da mulher como consumidora assim como as conseqüências que o modelo de consumo tem em sua condição de dependência lhe outorgam um papel central na mudança deste modelo. Mas, esta metamorfose de “mulher compradora” em “mulher para a mudança” só será possível se formos capazes de realizar uma profunda análise das conseqüências que tem para nós, enquanto mulheres, o atual sistema consumista. É neste sentido que a perspectiva feminista é fundamental para a proposição de uma mudança radical de modelo, que deverá passar necessariamente por uma mudança de paradigma que ponha fim ao sistema capitalista e ao sistema patriarcal.
Esther Vivas está vinculada a organizações do Comércio Justo da Espanha, México, França e Equador. Ela é, ao lado de Xavier Montagut, organizadora do livro ¿Adónde va el Comercio Justo? (Icaria, 2006). Eis o artigo traduzido pelo CEPAT.
* Artigo enviado pela Autora, colaboradora e articulista internacional do EcoDebate.
[EcoDebate, 20/01/2009]
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