Aqueles que querem comer o mundo: as corporações 2008
Imagem: Stockxpert
A partir do documento do Grupo ETC “De quem é a natureza – O poder corporativo e a fronteira final na mercantilização da vida“, Silvia Ribeiro analisa a relação entre a produção e comercialização de alimentos e sementes, a crise econômica e o papel dos movimentos sociais que combatem os oligopólios agroalimentares.
O artigo foi publicado no sítio America Latina en Movimiento, da Agencia Latinoamericana de Información, 29-12-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Imersos em uma enorme crise do capitalismo, mãe de muitas crises convergentes, resgata-se com dinheiro público às maiores empresas privadas do planeta, enquanto os pobres, os famintos e o caos climático seguem aumentando. Segundo o economista mexicano Andrés Barreda, estamos em uma crise de brutal sobreacumulação capitalista: gigantesco vômito daqueles que acreditaram que podiam engolir o mundo, mas não puderam digeri-lo.
Amplamente acunhadas, as crises atuais têm um contexto de concentração crescente do poder corporativo, apropriação de recursos naturais e desregulação ou leis em favor das empresas e especuladores financeiros, que aumentaram sem pausa nas últimas décadas. Em 2003, o valor global de fusões e aquisições foi de 1,3 bilhões de dólares. Em 2007, chegou a 4,48 bilhões de dólares. Na indústria alimentar, o valor das fusões e compras entre empresas duplicou de 2005 a 2007, chegando a 200 bilhões de dólares. O desastre financeiro acabou com algumas empresas, favorecendo oligopólios ainda mais fechados.
O que isso significa para as pessoas comuns? O documento do Grupo ETC, “De quem é a natureza” (disponível em http://www.etcgroup.org/es), oferece uma análise no contexto histórico da concentração corporativa de setores-chave nas últimas três décadas. Desde então, o Grupo ETC seguiu as manobrs de mercado das autodenominadas “indústrias da vida” (biotecnologia em agricultura, alimentação e farmacêutica). No novo informe, agregam-se as empresas atrás da convergência de biotecnologia com nanotecnologia e biologia sintética, que promovem novas gerações de agrocombustíveis e ainda mais: tentam gerar uma economia pós-petroleira baseada no uso de carboidratos e vida artificial.
O setor agroalimentar segue sendo um dos exemplos mais devastadores, por ser um campo essencial: ninguém pode viver sem comer. É, além disso, o maior “mercado” do mundo. Por ambas as razões, as transnacionais se lançaram agressivamente para controlá-lo. Nas últimas três ou quatro décadas, ele deixou de estar altamente descentralizado, fundamentalmente em mãos de pequenos agricultores e mercados locais e nacionais, para ser um dos setores industriais globais com maior concentração corporativa. Para isso, foi necessária uma mudança radical nas formas de produção e comércio de alimentos. Graças aos tratados de “livre” comércio, a agricultura e os alimentos se transformaram cada vez mais em mercadorias de exportação, em um mercado global controlado por duas dezenas de transnacionais.
Segundo um documento da FAO sobre mercados de produtos básicos, no começo da década de 60, os países do Sul global tinham um excedente comercial agrícola próximo dos 700 milhões de dólares anuais. Em fins da década de 80, o excedente havia desaparecido. Hoje, todos os países do Sul são claros importadores de alimentos.
Na década de 60, quase a totalidade das sementes estavam nas mãos de agricultores ou instituições públicas. Hoje, 82% do mercado comercial de sementes estão sob propriedade intelectual, e dez empresas controlam 67% desse campo. Essas grandes sementeiras (Monsanto, Syngenta, DuPont, Bayer etc.) são, em sua maioria, propriedade de fabricantes de agrotóxicos, área em que as dez maiores empresas controlam 89% do mercado global. Que, por sua vez, estão representadas entre as dez maiores empresas em farmacêutica veterinária, que controlam 63% desse campo.
Os 10 maiores processadores de alimentos (Nestlé, PepsiCo, Kraft Foods, Coca-Cola, Unilever, Tyson Foods, Cargill, Mars, ADM, Danone) controlam 26% do mercado, e 100 cadeias de vendas diretas ao consumidor controlam 40% do mercado global. Parece “pouco” em comparação, mas são volumes de venda imensamente maiores. No ano 2002, as vendas globais de sementes e agroquímicos foram de 29 bilhões de dólares, as de processadores de alimentos, 259 bilhões, e as de cadeias de vendas ao consumidor, 501 bilhões. Em 2007, esses três setores aumentaram respectivamente para 49 bilhões, 339 bilhões e 720 bilhões de dólares. Segue sendo o supermercado Wal-Mart a maior empresa do mundo, sendo a número 26 entre as 100 maiores economias do planeta, muito maior do que o produto interno bruto (PIB) de países inteiros como Dinamarca, Portugal, Venezuela ou Singapura.
Das sementes ao supermercado, as transnacionais ditam ou pretendem ditar o que plantar, como comer e onde comprar. Frente às crises, receitam-nos mais do mesmo: mais industrialização, mais produtos químicos, mais transgênicos e outras tecnologias de alto risco, mais livre comércio. Não é estranho, já que todas estão entre os que mais lucraram com o aumento de preços e escassez de alimentos: obtiveram lucros que vão até 108% acima do que em anos anteriores.
A disparidade de rendas individuais no mundo também cresceu. A riqueza acumulada dos 1.125 indivíduos mais ricos do mundo (4,4 bilhões de dólares) é quase equivalente ao PIB do Japão, segunda potência econômica mundial depois dos Estados Unidos. Essa cifra é maior do que os ingressos somados da metade da população adulta do planeta. Cinqüenta administradores de fundos financeiros (hedge funds e equity funds), os grandes especuladores que provocaram a “crise”, ganharam durante 2007 uma média de 588 milhões de dólares, cerca de 19 mil vezes mais do que o trabalhador norte-americano comum e cerca de 50 mil vezes mais do que um trabalhador latino-americano médio. O diretor executivo da financeira Lehman Brothers, agora em bancarrota, embolsou 17 mil dólares por hora durante todo 2007 (dados do Institute for Policy Studies).
Resumindo, uma absurda minoria de empresas e uns quantos multimilionários que possuem suas ações controlam enormes porcentagens das indústrias e dos mercados básicos para a sobrevivência, como alimentação e saúde.
Isso lhes permite uma pesada ingerência sobre as políticas nacionais e internacionais, moldando, à sua conveniência, as regulamentações e os modelos de produção e consumo que se aplicam nos países, que, por sua vez, são causadores das maiores catástrofes alimentares, ambientais e de saúde.
Assim, foi possível avançar a privatização e conversão do sistema agroalimentar há até poucas décadas descentralizado e baseado majoritariamente em sementes de livre acesso, água, terra, sol e trabalho humano, para convertê-lo em uma máquina industrial petrolizada, que exige grandes investimentos, maquinários caros, devastadoras quantidade de agroquímicos (melhor chamados de agrotóxicos) e sementes patenteadas controladas por algumas poucas empresas. Ainda que tenham se produzido maiores quantidades de alguns grãos, isso não solucionou a fome no mundo tal como prometiam, mas sim a aumentou. O saldo de erosão de solos e biodiversidade agrícola e pecuária, junto à contaminação químico-tóxica das águas, não tem precedentes na história da humanidade. Tudo acompanhado, como se fosse pouco, por uma crescente crise de saúde humana e animal (que também é negócio para as mesmas empresas).
O paradigma mais significativo dessa “involução verde”, são os transgênicos, sementes patenteadas viciadas nos produtos químicos das empresas, promovidas como panacéia para resolver os atuais problemas de fome que o próprio modelo criou. Outro ingrediente do mesmo modelo, agora impulsionado com mais força, é a altíssima requisição de fertilizantes, que, por seu nome, parece menos nocivo do que o resto dos agrotóxicos. Mas o uso de fertilizantes industriais, em vez do equilíbrio de nutrientes naturais dos modelos anteriores de agricultura, também gera adição e dependência e está nas mãos de um fechado oligopólio transnacional. Tal como o petróleo, baseia-se no uso de produtos finitos e não-renováveis: segundo dados da PotashCorp, a primeira empresa global de fertilizantes, as reservas de fósforo, ingrediente fundamental dos fertilizantes, diminuem em ritmo acelerado. Globalmente, o consumo industrial de fertilizantes aumentou 31% entre 1996 e 2008, devido ao incremento da produção de gado industrial e a produção de agrocombustíveis. E, com a crise, o preço disparou em mais de 650% entre janeiro de 2007 e agosto de 2008. A Mosaic, terceira empresa de fertilizantes em nível global (55% propriedade da Cargill), aumentou seus lucros em mais de 1.000% nesse período.
Apesar de que as transnacionais pretendam controlar tudo, 1,2 bilhões de agricultores e agricultoras no mundo seguem tendo suas próprias sementes. Ainda que a Wal-Mart seja a maior empresa do mundo, 85% da produção global de alimentos é consumida próximo de onde se semeia – a maioria no mercado informal.
Urge, por bem de todos e para frear as ameaças ao ambiente que nos sustenta, o questionamento profundo do modelo de agroalimentação industrial e corporativo, incluindo a crítica radical aos que, em nome das crises alimentares e climáticas, querem nos impor mais do mesmo modelo com transgênicos e agrocombustíveis. As soluções reais já existem e são diametralmente opostas: soberania alimentar, como propõe a Via Campesina, a partir de economias agrícolas descentralizadas, diversas, livres de patentes, baseadas no conhecimento e as culturas campesinas, que são as que, por mais de dez mil ano, provaram sua capacidade de alimentar sustentavelmente a humanidade.
(Ecodebate, 12/01/2009) publicado pelo IHU On-line, 11/01/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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