Projeto de Irrigação Baixio de Irecê na Bacia do São Francisco expulsa pequenos agricultores
Considerado uma “transposição baiana”, o Baixio de Irecê abrange áreas dos municípios de Xique-Xique, Itaguaçú da Bahia, Jussara e Sento Sé, no sertão baiano. É o maior projeto de irrigação em construção no país. Além de retirar muita água do rio São Francisco, o projeto vem desalojando comunidades ribeirinhas e catingueiras e prejudicará assentamentos de reforma agrária.
O projeto corresponde a uma área de 59 mil hectares, divididas em oito etapas, na região do sub-médio São Francisco, sendo que as maiores áreas estão nos municípios de Xique-Xique e Itaguaçú da Bahia. Já recebeu da Agência Nacional de Águas (ANA) outorga para retirar 58,055 m³/s de água que serão levados por um canal de aproximadamente 87 km. O principal objetivo é a produção de agroenergia – cana de açúcar para etanol e plantas oleaginosas (mamona, pinhão manso etc.) para diesel, além da fruticultura irrigada. O custo total está estimado em R$ 880 milhões, sendo R$ 547 milhões previstos no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).
Quem promove
A estruturação desse projeto está sendo coordenada pelo Ministério da Integração Nacional (MIN) e pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (CODEVASF). Para investir no projeto formou-se um consórcio entre a CODEVERDE (Companhia de Desenvolvimento do Vale do Rio Verde), empresa liderada pelo Grupo Odebrecht e a estatal líbia LAFICO (Libyan Arab Foreign Investiments), na perspectiva de uma Parceria Público-Privada. O MIN firmou contrato com o Banco Mundial para uma análise crítica dos estudos já feitos e modelagem do projeto. Os estudos iniciais foram realizados por um consórcio formado por incorporadoras e bancos privados, entre eles Banco Santo André, FNP, Odebrecht, CODEVERDE e LAFICO.
O projeto, que estava parado desde 1999, hoje já tem 14 km de canais construídos pela Andrade Gutierrez. O fato do projeto se tornar uma prioridade no PAC se dá a partir da crescente demanda pelos agrocombustíveis. Em vista de casos precedentes e diante de grande montante de recursos, não é absurdo suspeitar que a obra possa se prestar a desvios de verbas públicas, “caixas 2” etc.
Outra visão sobre esta realidade
Em visita à área do projeto, em meados de agosto passado, agentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Paróquia de Xique-Xique estiveram em 18 comunidades que serão atingidas diretamente e mais cinco que estão nas proximidades, totalizando 23 comunidades. O sentimento de todos, após as visitas, é de grande indignação, diante da falta de informação das comunidades, que vivem em condições de pobreza extrema e estão perdendo suas terras, algumas há apenas 4 km do canal.
Na comunidade de Boa Vista, município de Xique-Xique, às margens do São Francisco, próximo de onde começa o canal, 500 famílias sentem-se inseguras com as conversas alarmantes dos engenheiros da Empresa Sul Americana de Montagens (EMSA) e da CODEVASF, dizendo que terão de sair.
Alguns moradores da comunidade já perderam suas áreas de roçados e “soltas” (áreas devolutas de uso comum para pastagem), historicamente da comunidade. Segundo moradores “a maior preocupação é ter que sair, como disseram os engenheiros; além disso, já foram feitas ofertas irrisórias pelas posses, no valor de R$ 5.000,00 até R$ 25.000,00”. A situação é de desespero, pois não há consenso entre a comunidade. Alguns dizem “antes pouco do que nada” e outros pretendem “resistir, enfrentar, ficar…”
Algumas comunidades às margens do Rio Verde, como Conceição, São João e Muquém, dentre outras, para continuar a criar seus animais são obrigadas a pagar à CODEVERDE por ano uma cabeça de cabra a cada cinco animais criados e uma cabeça de bovino a cada oito animais criados. Esta empresa se diz proprietária do que era a área de “solta” destas comunidades. Como pode a empresa se dizer dona de tais terras, se estas comunidades nelas vivem e criam animais há decênios, ou mesmo desde tempos imemoriais? Por estarem no coração do Baixio de Irecê, estas comunidades correm o risco de perderem suas terras e suas bases de vida.
30 anos depois…
Em Carneiros, moradores – alguns com mais de 80 anos – trazem viva na memória a expulsão provocada pela construção da barragem de Sobradinho, no final dos anos 70. Além de vítimas da barragem, sofreram com violenta grilagem de terra que os expulsou e os marcou profundamente: “Fomos retirados das ilhas e da margem do São Francisco pela CHESF para a construção de Sobradinho, fomos para a Serra do Rumo e quando nós já estávamos produzindo e criando fomos expulsos por pistoleiros que queimaram nossos barracos e roças, não deixaram nem os poleiros das galinhas. Agora estamos aqui e o que vai ser de nós?”.
No município de Itaguaçú, já são vistos os impactos indiretos: as grandes fazendas, típicos latifúndios do sertão baiano, em volta de assentamentos de reforma agrária com mais de 20 anos, estão sendo “vendidas” para grandes empresas, como a Brasil Ecodiesel, já instalada na região. Novas e extensas cercas demarcam o espaço de novos donos, entre os quais “compradores” estrangeiros. Tal como os antigos moradores, também os assentados têm sua sobrevivência ameaçada, pois sua principal fonte de renda é a criação de animais nos “fechos de pasto”.
Todo o investimento público feito na reforma agrária está sendo anulado por outro investimento público, agora no chamado negócio dos agrocombustíveis. Este, muito mais vultuoso, terá, com certeza, “milhões” de chances a mais de sucesso, para o bem do “desenvolvimento sustentável”. A bem de quem mesmo?
Sobram perguntas
O que se pretende fazer com as 18 comunidades afetadas, que perfazem um total aproximado de 800 famílias e 5000 pessoas – que já estão na insegurança -, não só quanto ao futuro? Este futuro é a mão-de-obra barata nas empresas agrícolas, a marginalidade econômica e social? Quais as compensações para os tamanhos impactos sociais, econômicos e ambientais? Quem responde? São as questões de sempre sobre o “nosso desenvolvimento”, que continua voltado para poucos, a um alto preço para muitos.
Nosso apelo
Por razões humanas e pastorais derivantes da nossa fé, apelamos para que as famílias destas comunidades tenham seus direitos garantidos, no mínimo sejam devidamente informadas do projeto em andamento e recebam as justas indenizações por suas terras e benfeitorias.
Diocese de Barra
Comissão Pastoral da Terra – CPT – BA/SE.
Publicado originalmente pelo Correio da Cidadania.
[EcoDebate, 30/09/2008]