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Teoria Gaia: de idéia pseudocientífica a teoria respeitável, por Nei de Freitas Nunes Neto, Marina de Lima-Tavare e Charbel Niño El-Hani

A teoria Gaia foi proposta na década de 1970 pelo cientista inglês James Lovelock, a partir de estudos realizados no começo da década de 1960 para a NASA, com o objetivo de detectar vida em outros planetas, especialmente Marte. Em parceria com a filósofa Dian Hitchcock, Lovelock buscou elaborar experimentos para a detecção de vida que fossem suficientemente gerais, ou seja, independentes do tipo de vida particular que surgiu na Terra.

Desse modo, poderiam ser aplicados para a busca de qualquer forma de vida, mesmo que fosse significativamente diferente daquela encontrada na Terra. Um dos testes elaborados por Lovelock e Hitchcock consistia em comparar a composição química da atmosfera de outros planetas, como Marte e Vênus, com a da atmosfera terrestre.

A base teórica do teste era simples: se um planeta não apresentasse vida, a composição química da sua atmosfera seria determinada apenas por processos físicos e químicos e, desse modo, deveria estar próxima ao estado de equilíbrio químico. Em contraste, a atmosfera de um planeta com vida apresentaria uma espécie de “assinatura” química característica, uma combinação especial de gases que indicaria uma atmosfera em estado de constante desequilíbrio químico. Esta assinatura seria o resultado da presença de organismos vivos, que usariam a atmosfera (assim como os oceanos, os solos etc.) como fontes de matéria-prima e depósitos para resíduos de seu metabolismo.

Ao analisarem as composições químicas das atmosferas de Marte e Vênus, Lovelock e Hitchcock chegaram à conclusão de que nossos vizinhos no Sistema Solar não possuem vida, uma vez que suas atmosferas se encontram em um estado muito próximo ao equilíbrio químico, sendo dominadas por dióxido de carbono (acima de 95%) e apresentando pouco oxigênio e nitrogênio e nenhum metano. Comparando-se as atmosferas de Marte e Vênus com a da Terra, diferenças significativas são encontradas em suas composições químicas. Nitrogênio (78%) e oxigênio (21%) são os gases dominantes na atmosfera terrestre, enquanto o dióxido de carbono contribui com apenas 0,03% (embora a ação antrópica esteja atualmente acarretando um aumento desses níveis). Além disso, a atmosfera terrestre possui vários outros gases, todos altamente reativos. Esta situação de instabilidade ou desequilíbrio se mantém na atmosfera terrestre há um longo tempo, o que não deve ser esperado, caso a composição química atmosférica resulte somente da ação de mecanismos físicos e químicos. De fato, essa composição atmosférica reflete a dinâmica de trocas gasosas entre a atmosfera terrestre e os organismos vivos. Ou seja, o que leva a atmosfera terrestre a ter uma composição química singularmente diferente daquela de Marte ou Vênus é simplesmente o fato trivial de que a Terra possui vida. Se toda a vida fosse eliminada do planeta repentinamente, as moléculas dos gases atmosféricos reagiriam entre si, o que resultaria numa atmosfera com a composição química muito próxima à de Marte ou Vênus. A atmosfera da Terra é, portanto, um produto biológico, sendo constantemente construída e consumida pelos seres vivos.

A partir desses resultados e, também, de evidências de que a temperatura do planeta Terra não sofreu alterações significativas nos últimos 3.3 bilhões de anos, Lovelock propôs a teoria Gaia. Esta teoria propõe a existência de um sistema cibernético de controle, que compreenderia a biosfera, a hidrosfera, a atmosfera, os solos e parte da crosta terrestre, e teria a capacidade de manter propriedades do ambiente, como a composição química e a temperatura, em estados adequados para a vida. Após apresentar sua teoria à comunidade científica, pela primeira vez, na carta, “Gaia as Seen Through the Atmosphere” (1972), publicada no periódico Atmospheric Environment, Lovelock a desenvolveu em artigos publicados em colaboração com a microbiologista Lynn Margulis. Nesses artigos, Lovelock e Margulis propuseram a existência de uma rede complexa de alças de retroalimentação que, em sua visão, relacionariam intimamente seres vivos e ambiente físico-químico, resultando numa auto-regulação do sistema planetário. Por meio desses mecanismos de controle, os seres vivos seriam capazes de alterar o ambiente de modo a manter as condições físico-químicas adequados para eles próprios.

Uma crítica importante à teoria Gaia tem como alvo a afirmação de que a vida na Terra busca condições adequadas para si mesma. Esta afirmação não define de maneira clara quais seriam essas condições adequadas ou os benefícios para a biosfera como um todo. Afinal, o que é bom para uma espécie pode ser ruim para outra. Como organismos com interesses divergentes, e até conflitantes, podem agir em sinergia para a produção de condições ótimas para o conjunto total de seres vivos sobre a Terra? Não há uma condição ou um conjunto de condições que sejam adequadas para os seres vivos como um todo. Por exemplo, enquanto os organismos aeróbicos precisam de oxigênio atmosférico para sobreviver, os anaeróbicos estritos tem seu crescimento inibido por esse gás. Lovelock não foi capaz de responder a essas críticas. Entretanto, mais recentemente, respostas interessantes foram propostas por alguns autores. Por exemplo, Axel Kleidon propôs, em 2002, que é possível definir alguns objetivos muito gerais que corresponderiam a condições adequadas para toda a biota, como, por exemplo, os aumentos da produtividade primária bruta, da diversidade ou da entropia do ambiente circunvizinho. Estes não seriam, portanto, benefícios para uma espécie em particular, mas para a biosfera como um todo.

Entre outros fatores, a falta de uma definição clara de termos centrais da teoria, associada ao uso, em alguns escritos de Lovelock, de uma linguagem muito vaga, aberta a interpretações e apropriações diversas, rendeu à teoria Gaia uma má reputação. Logo após sua proposição, ela não foi bem recebida por muitos cientistas, que a criticaram vigorosamente, chegando a acusá-la de ser pseudo- ou mesmo anti-científica. É interessante notar, no entanto, que algumas idéias de Lovelock despertaram uma reação entusiástica por parte de grupos ambientalistas e espiritualistas. Estes últimos se sentiam particularmente atraídos pelas polêmicas afirmações de Lovelock de que a Terra é viva. Ao longo da década de 1990, a resistência da comunidade científica à teoria Gaia diminuiu substancialmente, apesar das controversas afirmações de James Lovelock. Isso resultou da realização por Lovelock, em parceria com vários colaboradores, de uma grande quantidade de trabalhos, que, a partir da década de 1980, relataram novas evidências a favor de Gaia, desenvolveram modelos baseados na teoria e propuseram importantes modificações estruturais na mesma, além de apresentar uma maior preocupação em tornar mais claras as afirmações que a constituem. O modelo mais conhecido – o do mundo das margaridas (Daisyworld) – foi desenvolvido por Lovelock e Andrew Watson.

Trata-se de um modelo matemático da regulação da temperatura planetária. Esse modelo parte da construção de um mundo fictício, que consiste em um planeta com aproximadamente o mesmo tamanho da Terra e ambiente reduzido a uma única variável, a temperatura. A biota do planeta, por sua vez, se limita a margaridas pretas e brancas. A temperatura média do planeta resulta do balanço entre o calor recebido da estrela ao redor da qual ele orbita e o calor perdido para o espaço na forma de radiação infravermelha. Lovelock e Watson demonstraram que a presença e variação na quantidade de margaridas pretas e brancas ao longo do tempo influenciam diretamente na regulação do calor recebido e perdido para o espaço, sendo fundamentais para a regulação e manutenção do clima desse planeta fictício.

Uma quantidade crescente de pesquisadores de diversos campos do conhecimento vem dedicando-se à articulação teórica e ao teste de previsões derivadas de Gaia. Atualmente, é possível encontrar uma verdadeira comunidade formada em torno de questões relativas à teoria Gaia, merecendo destaque nomes como Timothy Lenton, Tyler Volk, Axel Kleidon, Stephen Schneider, entre muitos outros. Provenientes de áreas diversas como Biologia Evolutiva, Biogeoquímica, Climatologia etc., eles constituem uma comunidade multidisciplinar vigorosa, que se ocupa de problemas teóricos e empíricos de importância central na teoria Gaia. Contudo, muitos deles rejeitam algumas das proposições iniciais de Lovelock, como a de que a Terra é um organismo vivo.

A teoria Gaia já deu contribuições importantes para a compreensão dos ciclos biogeoquímicos, das relações evolutivas entre organismos e ambiente, e até em estudos sobre o clima global. Um estudo empírico que utilizou a teoria Gaia como base e contribuiu para fortalecer a teoria de Lovelock se ocupou da relação entre algas oceânicas, que liberam o gás sulfeto de dimetila (DMS), e a formação de nuvens sobre os oceanos. As nuvens, por serem brancas, refletem boa parte da radiação solar que vem do espaço, esfriando a superfície oceânica e o planeta como um todo. A partir dessa constatação, Lovelock e colaboradores propuseram o que ficou conhecido como hipótese CLAW (pela junção dos nomes dos autores do artigo em que ela foi apresentada). Esta hipótese propõe que o resfriamento da superfície oceânica causado pelas nuvens leva a uma queda na liberação de DMS pelas algas, o que, por sua vez, reduz a taxa de formação das próprias nuvens. Isso permite que mais radiação solar atinja a superfície oceânica, o que, supostamente, causa maior liberação de DMS pelas algas, fechando assim o ciclo. Os autores da hipótese propõem, então, que há um mecanismo de controle do clima, baseado numa alça de retroalimentação negativa que conecta algas e nuvens ao resto da biosfera.

Obviamente, outros organismos seriam também beneficiados por esse mecanismo, o que levanta a questão de se as algas estariam ou não agindo altruisticamente, de modo a contribuir para a regulação do clima global, beneficiando também outras espécies. Biólogos evolutivos freqüentemente têm criticado a teoria Gaia nesse ponto. Eles questionam como a competição entre os organismos poderia dar origem a um altruísmo em escala global, conforme proposto por essa teoria. Ou seja, por que razão as algas liberariam o DMS, se não fosse para seu próprio benefício. Os defensores da teoria Gaia respondem a estas críticas apresentando possíveis vantagens para as algas individuais, como a maior dispersão de esporos e maior oferta de alimentos, resultado da presença de mais nuvens sobre os oceanos. Apesar das polêmicas em torno da hipótese CLAW e da teoria Gaia como um todo, é importante notar que as investigações de Lovelock sobre o DMS levaram à criação de toda uma nova área de pesquisas, conhecida como “conexão algas-nuvens”, na qual se avalia se a alça de retroalimentação proposta pela hipótese corresponde de fato a um mecanismo de controle do clima. Atualmente, a hipótese CLAW está sendo submetida a testes por muitos grupos de pesquisa ao redor do mundo.

Muitas críticas atuais à teoria Gaia estão dirigidas a afirmações controversas de Lovelock, como as de que “A Terra é viva” ou “Gaia é um superorganismo”. Consideramos que essas afirmações devem ser evitadas, uma vez que uma série de problemas importantes surge quando as aceitamos. Em primeiro lugar, Lovelock não fornece uma justificativa teórica apropriada para a afirmação de que a Terra (ou Gaia) é viva. Os principais argumentos que oferece recorrem a analogias entre algumas propriedades dos organismos e da Terra, como a manutenção da ordem interna ao sistema graças ao aumento da entropia no ambiente circunvizinho. Entretanto, essa não é uma propriedade exclusiva dos sistemas vivos, caracterizando, antes, uma categoria mais ampla, que inclui os seres vivos, mas não se restringe a eles: a classe dos sistemas dissipativos, que também incluem, por exemplo, vórtices e chamas. É preciso notar, também, que parece haver mais diferenças do que semelhanças entre os organismos vivos e Gaia. Por exemplo, o conhecimento biológico trata os organismos, há mais de um século e meio, como partes de populações que evoluem por seleção natural, ainda que estejam sujeitas também a outros mecanismos evolutivos. Seres vivos, além disso, são capazes de se reproduzir, transmitindo material genético para seus descendentes. Gaia não forma populações, não evolui por seleção natural, não se reproduz, não deixa descendentes e não há indícios de que possua algo similar a um material genético. Até que ponto devemos deixar que algumas possíveis semelhanças entre Gaia e organismos nos seduzam, diante de tantas diferenças e da possibilidade das propriedades similares caracterizarem, no fundo, uma classe mais ampla de entidades, que incluem seres vivos, mas também Gaia?

Uma tendência atual tem sido estudar Gaia como um sistema cibernético, estudando suas propriedades emergentes, como a auto-regulação do clima. Desta perspectiva, os estudos têm enfocado o uso de modelos matemáticos derivados da vida artificial e da teoria da complexidade, com o objetivo de analisar as alças de retroalimentação que ligam, de acordo com a teoria, a vida ao ambiente físico-químico e seriam responsáveis pela capacidade de auto-regulação de Gaia. Desta perspectiva, Gaia não é considerada um organismo vivo, mas apenas um sistema complexo, o que julgamos ser muito mais apropriado.

Assim, é interessante notar que as pesquisas atuais sobre Gaia têm mudado o foco para questões que podem ser testadas empiricamente, evitando compromissos com proposições muito controversas, de difícil sustentação, como a de que a Terra (ou Gaia) é viva. A proposição de que a Terra é viva continua sendo mal vista pela maior parte da comunidade científica, por ser patentemente incompatível com conceitos centrais do pensamento biológico. Mas isso não torna os estudos atuais acerca de Gaia menos interessantes. Ao contrário, eles parecem altamente promissores, podendo contribuir significativamente para a investigação em campos de grande interesse e relevância social, como, por exemplo, os estudos sobre mudanças climáticas globais.

Nei de Freitas Nunes Neto, Marina de Lima-Tavares e Charbel Niño El-Hani pertencem ao Grupo de Pesquisa em História, Filosofia e Ensino de Ciências Biológicas, Instituto de Biologia, Universidade Federal da Bahia

Referências
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(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado em Revista ComCiência, SBPC/Labjor, Unicamp